Perseguição e intimidação de funcionários, arma na cintura, censura, comentários racistas. Você vai morrer de medo com as trapalhadas de um secretário muito tosco

por Danilo Matoso
Há mais de um ano à frente da Secretaria Especial da Cultura do Governo Federal, o ator Mário Frias começa a mostrar a que veio: implementar uma política cultural federal racista e ideologicamente excludente. Alguns sinais tornaram-se mais explícitos recentemente. No último dia 15, Frias afirmou no Twitter que Jones Manoel – educador, comunicador e militante negro do PCB – “precisa de um bom banho”. A equipe da Secretaria tem buscado tocar uma política de destruição dos instrumentos de incentivo cultural – como a lei Rouanet – enquanto divulga um ainda débil discurso de fomento de uma arte que valorize o “belo”. A um ano e meio do fim do atual mandato de Jair Bolsonaro, a esperança de todos aqueles envolvidos com o campo cultural é de que o secretário não tenha tempo nem articulação suficientes para amadurecer e levar a cabo seu projeto.
O fim do Ministério
Criado em 1985, no centro do processo de redemocratização do país, o Ministério da Cultura foi extinto no primeiro dia do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, transformado em uma Secretaria subordinada primeiro ao Ministério da Cidadania e depois ao Ministério do Turismo. Desde então, a pasta foi assumida por Henrique Pires, Ricardo Braga, Roberto Alvim, Regina Duarte e Mário Frias – no poder desde junho de 2020 –, além José Paulo Martins duas vezes como interino.
Essa alta rotatividade no cargo se deu, aparentemente, devido a uma inconsistência entre dois projetos políticos diferentes. De um lado, o velho sonho da extrema direita de implementar uma política cultural capaz de alavancar a propaganda nacionalista, excludente, de ascendência puramente europeia – tratada pela deputada Bia Kicis (PSL-DF) por “haute culture”. De outro lado, a completa ignorância de Bolsonaro e sua curriola sobre o que possa vir a ser cultura e uma absoluta falta de propostas para a área. Até aqui vem ganhando a segunda corrente, a do desmonte por inanição. Jogam a seu favor ampla falta de pessoal competente e o eterno discurso neoliberal da austeridade fiscal – significando que os investimentos estatais devem evitar políticas sociais, mas essa é outra estória.
Na realidade, os defensores de uma política cultural assumidamente fascista pecaram até aqui por sincericídio. Acreditaram que teriam força para surfar na onda do extremismo ideológico para anunciar abertamente seu projeto de capachismo cultural. É uma estratégia que afinal funciona nas Forças Armadas, onde o alto comando presta homenagens abertas aos seus pares dos Estados Unidos. O caso dos militares, porém, é fruto de décadas de imposição da Doutrina da Segurança Nacional em seus cursos de formação.
Na Cultura, forçosamente múltipla e diversa, fica mais complicado. Foi assim que Roberto Alvim, então à frente da Secretaria, caiu ao se travestir de Joseph Goebbels. Como se sabe, em janeiro de 2020, ele foi exonerado após lamber o cabelo com brilhantina, ligar Richard Wagner ao fundo e proferir em tom solene um trecho copiado de um discurso do ministro da Propaganda de Hitler: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada”. Não fosse plágio seria uma síntese da dicotomia colocada ao governo Bolsonaro.
Mesmo com a queda de Alvim, parece ter persistido no Governo uma pressão interna para manter o viés “heróico”, sobretudo de grupos ultraconservadores olavistas (seguidores do astrólogo Olavo de Carvalho). Talvez tenha sido essa pressão aquela a desorientar a antiga “Namoradinha do Brasil”, Regina Duarte. Mal aterrissara no cargo de secretária e a atriz, incapaz de articular minimamente um discurso coerente com a política que pretendia levar, acabou por falar demais numa antológica entrevista à CNN em que tratava a tortura da ditadura militar como algo natural. “Sempre houve tortura”, disse a secretária, que arrematou: “Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas e não desejo isso pra ninguém. Eu sou leve, sabe, eu tô viva, estamos vivos, vamos ficar vivos. Por que olhar pra trás? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões”. Era uma clara alusão ao clássico de Mário Vaz Filho Um pistoleiro chamado Papaco (1986), feita como demonstração de que ela entende de cinema de verdade, e não apenas de novelas da Globo.
“Ele nunca pensou…”
O ator cinquentão Mário Frias, aparentemente é conhecido no meio artístico por ter sido par romântico de Priscila Fantin na série infantil Malhação no final da década de 1990. Aos 25 anos, em 1996, Frias teria sido induzido pela mãe a aceitar trabalhar de figurante na novela da Record, “O Campeão”. Ela teria dado o ultimato: “vagabundo não fica aqui em casa”. Segundo Leandro Neri, diretor de dramaturgia da TV Globo, “ele nunca pensou em virar ator”. Talvez por ser pouco pensada, sua carreira nunca decolou. Frias seguiu fazendo papeis secundários e eventualmente trabalhou como apresentador em programas de auditório, além de ter tentado a sorte como vocalista de uma banda de pop rock chamada Zona Zero.
Talvez aqui valha a pena relembrar uma passagem do documentário Arquitetura da destruição (1989), do sueco Peter Cohen, dedicado a destrinchar a política cultural do Partido Nazista alemão. O filme mostra que “artistas fracassados eram constantes entre as lideranças do Terceiro Reich. Muitos dos homens próximos a Hitler haviam se empenhado seriamente em carreiras artísticas. Goebbels, por exemplo, havia escrito uma novela, bem como peças de teatro e poesia. […] O próprio Hitler era um pintor frustrado e sonhava em ser arquiteto”. Desnecessário apontar o óbvio mecanismo psicológico de compensação operado aqui. Basta indicar que essa frustração leva a uma visão excludente de arte “clássica” que deve ser preferida em lugar de outras formas de expressão consideradas “degeneradas”.
Foi por meio de seu cunhado, Christiano Camatti, que Frias se aproximou de Daniel Freitas, hoje deputado federal pelo PSL em Santa Catarina e bolsonarista convicto. O político abriu as portas do círculo presidencial ao ator, que se tornou próximo de pessoas como Filipe Martins, Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro. Diz-se que, em seus tempos de ator e apresentador, Frias apresentava um temperamento calmo. O político Frias porém rapidamente se mostrou paranoico, controlador e agressivo. Nas redes sociais, passou a responder com vitupérios a seus críticos – chamou o humorista Marcelo Adnet de “crápula” e “criatura imunda”. Passou também a postar fotos com fuzis e pistolas não mão – inclusive numa visita ao Bope com Daniel Freitas e o “Zero Três”.
Perseguição, censura, intimidação
Na Secretaria Especial de Cultura, Frias comandou a elaboração de dossiês e planilhas destinados a perseguir servidores públicos considerados de esquerda, que deveriam ser exonerados. Em abril deste ano, uma tabela intitulada “Mapeamento Funarte 2020-2021”, cheia de caracterizações e orientações nada sutis como “servidora comissionada há anos e é militante esquerdista, tirar cargo de gratificação”, seguido de quase um lamento na coluna ao lado que deveria indicar seu substituto: “não temos servidores concursados conservadores para cargos”. No documento há também pareceres elogiosos, como um certo advogado descrito como “jovem conservador ativo” ou outro “secretário da ala conservadora da OAB-RJ, reconhecido jornalista conservador por nomeação”.
Ainda em abril, Frias não lançou edital para novo mandato da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic), em que representantes da sociedade civil avaliam projetos para obtenção de incentivo fiscal via Lei Rouanet. Desde então, a avaliação dos projetos passou a ser feita pelo secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciúncula. Ex-capitão da Polícia Militar da Bahia e sócio de uma empresa de segurança predial, o militar não tinha qualquer relação prévia com o meio cultural até sua nomeação para o cargo em setembro do ano passado. No último mês, Porciúncula tem postado nas redes sociais montagens com um uniforme verde e amarelo em que abraça o apelido de “Capitão Cultura” que teria recebido de Mário Frias. Seu crivo censório tem a finalidade de atender a uma demanda antiga de todo bom bolsonarista tiozão do Zap: “acabar com a mamata da Lei Rouanet”.
Pessoalmente, Frias também não tem feito por menos. Em maio, veio a público que o secretário da Cultura tem por hábito dirigir-se com xingamentos e aos berros aos funcionários da pasta. Para reafirmar sua pouca autoridade, passou a exibir uma pistola na cintura – atitude garantida por um porte de armas recebido da Polícia Federal no final do ano passado. É nesse contexto comportamental agreste que se situa o episódio recente com Jones Manoel.
“…ou então não será nada”
Como todo bolsonarista, Frias depois negou o caráter racista de seu comentário. Disse que foi um ataque meramente ideológico porque afinal o militante marxista “louva um genocida como Stálin”. A verdade é que Frias sequer sabia que Jones era comunista ou que tecera comentários sobre o líder soviético. Basta retomar seu próprio comentário original, em resposta ao de outro propagandista da Presidência da República, Tércio Arnaud, que indagou: “quem caralhas é Jones Emanuel?”. A resposta completa de Frias foi: “Realmente eu não sei. Mas se eu soubesse diria que ele precisa de um bom banho”. Claro, vale conjecturar se Frias se manteria no cargo caso Jones Manoel fosse algum ator global ou liderança liberal, e não um educador do PCB.
É evidente que Frias e seu “Capitão Cultura” são apenas idiotas voluntariosos que não têm a menor ideia do que estão fazendo em seus cargos. Como eles, há dezenas em todo o Governo Federal e sobretudo na pasta da Cultura. Basta lembrar que o octogenário Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) está há mais de um ano sob o comando de uma jovem turismóloga, esposa de um ex-segurança de Bolsonaro, devidamente apoiada por diversos superintendentes regionais igualmente carentes de credenciais práticas ou acadêmicas na área. O desmonte do Iphan por meio das nomeações espúrias é, aliás, ponta de lança na política cultural bolsonarista.
Isso não significa que o grupo defensor de uma arte “heróica e nacional” esteja inativo. Basta lembrar da pressão pela destinação do edifício do Museu Nacional ao culto da monarquia – que aliás tem um de seus sacerdotes à frente da Superintendência do Iphan no Rio de Janeiro. Em discussão recente no Twitter, o cineasta Josias Teófilo – autor de documentário sobre Olavo de Carvalho – questionou ausência de política cultural: “o que está sendo feito para o Bicentenário da Independência? Nada foi divulgado até agora, e não existe nem tempo hábil para lançar um edital”.
O fato de que a Cultura esteja infestada de idiotas úteis não significa que eles sejam ingênuos ou inocentes. Esses “bons militantes conservadores” que em nome do carreirismo e do oportunismo se prestam a esse ridículo papel estão de fato destruindo nossas políticas culturais. Se aparelhados de recursos e de um gabinete minimamente letrado, podem fazer um estrago ainda maior, dando lastro narrativo à máquina de propaganda da extrema-direita – que até aqui se fia somente de notícias falsas em redes sociais. O comportamento agressivo e os comentários racistas de Frias são provas de que o ex-ator de Malhação está aí para mostrar que não é só mais um rostinho com Botox e que pode ir muito além. Sua gestão, ou a de qualquer bolsonarista, pode causar sérios e irreversíveis danos ao nosso patrimônio, além do profundo vazio que já se anuncia no campo da produção cultural.
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