Incêndio da Cinemateca é fruto da política cultural do governo Bolsonaro

Antecipado pelo Ministério Público e pelos trabalhadores da Cinemateca, o incêndio é consequência da política cultural destrutiva do Governo Federal

Imagem: O Partisano
por Danilo Matoso

Em 13 de abril de 2021, os trabalhadores da Cinemateca Brasileira publicaram um manifesto em que denunciavam “os riscos que correm o acervo, os equipamentos, as bases de dados e a edificação da instituição”. Segundo o texto, “a instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real. O acompanhamento técnico contínuo é a principal forma de prevenção”. No fim da tarde da última quinta (29) um incêndio irrompeu num dos galpões da Cinemateca na Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo. Os imóveis, de mais de 6 mil m² abrigam parte do acervo da instituição, responsável de mais de 250 mil rolos de filmes, 1 milhão de documentos – roteiros, cartazes, livros, documentos administrativos relativos ao cinema –, além de equipamentos de cinema.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

No galpão incendiado, havia equipamentos e mobiliário de cinema, parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade, parte do acervo com a produção discente da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), parte do acervo de documentos da biblioteca de Glauber Rocha, bem como dos arquivos de órgãos extintos do audiovisual como a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme, 1968-1990) ou o Conselho Nacional de Cinema (Concine, 1976-1990), além do acervo audiovisual contendo parte da obra da distribuidora Pandora filmes, com cópias de filmes brasileiros e estrangeiros de 35mm, matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, elementos complementares de matrizes de longas-metragens todos potencialmente únicos. As perdas são irreparáveis, e podem ser ainda piores em caso de continuidade da política de terra arrasada conduzida por Mário Frias à frente da Secretaria Especial de Cultura – à qual a Cinemateca é subordinada.

Leia também:  Assim é a vida nos apartamentos de 4m² na Coreia do Sul

A Cinemateca tem suas origens em 1940, quando Paulo Emílio Sales Gomes e outros criaram o Primeiro Clube de Cinema de São Paulo, visando estudar e promover o cinema como arte independente. Fechado pelo Estado Novo no ano seguinte, se transformaria no Segundo Clube de Cinema de São Paulo que, em acordo com o recém-criado Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) criaria a Filmoteca do MAM/SP, com direção de Paulo Emílio a partir de 1954. Em 1956, se desligaria do Museu, transformando-se em Cinemateca Brasileira – uma sociedade civil sem fins lucrativos, gerida a partir de 1962 pela Sociedade Amigos da Cinemateca. Em 1984, seria incorporada como órgão autônomo à Fundação Nacional Pró-Memória – então incumbida de executar a política da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 2003, a então Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura incorporaria a Cinemateca, dando impulso a suas atividades de preservação e difusão de acervos.

Os filmes mais antigos eram feitos em suporte de nitrato de celulose, um material sujeito à autocombustão, tornando os acervos cinematográficos especialmente suscetíveis a incêndios – como os que acometeram a própria Cinemateca em outras quatro ocasiões, em 1957, 1969, 1982 e 2016. Além disso, os próprios galpões da Vila Leopoldina foram alagados em enchente em fevereiro de 2020. Como qualquer instituição, porém, sua ruína material se deve a uma ruína institucional – nesse caso promovida pela gestão de Bolsonaro e Mário Frias. Em julho de 2020, o Ministério Público Federal em São Paulo entrou com ação na Justiça contra a União por abandono da Cinemateca, num processo que, no último dia 20 de julho, levou a uma decisão judicial concedendo mais 60 para continuidade nas ações de preservação, alertando para o risco de incêndio. Em agosto, a Secretaria Especial de Cultura de Frias exige entrega das chaves dos imóveis da Cinemateca para uma organização privada, a Associação de Comunicação Educativa Roquete Pinto (Acerp). Desde então, os seus funcionários ficaram sem salários e foram eventualmente demitidos.

Leia também:  A mulher soviética

Frias – como Bolsonaro e seus seguidores – tenta se eximir de responsabilidade pelo que ocorre sob sua própria gestão. No dia 30, afirmou que a Cinemateca é “uma das heranças malditas do governo apocalíptico do petismo”. Isso depois de tentar sugerir uma teoria conspiracionista de incêndio criminoso, pintando de tintas dramáticas a óbvia praxe: a perícia do local pela Polícia Federal. A reação ridícula – coerente com o conjunto de sua gestão – motivou uma veemente reação do Coletivo 342 Artes, liderado pelo ator Paulo Betti, que levantou no Twitter a hashtag #MarioFriasNaCadeia, para pedir a responsabilização do ator pela ausência completa de gestão na Cinemateca. A iniciativa contou com a adesão de artistas como Emicida, João Vicente, Cissa Guimarães e Gregório Duvivier, além dos deputados Paulo Pimenta (PT-RS), Marcelo Freixo (PSB-RJ) e Jandira Feghali (PCdoB-RJ).

Evidentemente, prender Frias, ou mesmo tirá-lo do cargo não vai salvar a política cultural nacional – fosse assim, a exoneração de Roberto Alvim ou Regina Duarte teria surtido algum efeito. Como já dissemos n’O Partisano, há uma dicotomia latente no governo Bolsonaro no campo da cultura. De um lado, os defensores de uma “cultura verdadeiramente nacional” – de cunho dirigista e fascista, como vimos no caso da tentativa de destinar à “Família Imperial” o edifício do Museu Nacional ou no caso da criação de uma cultura das armas. De outro lado, mais afeito ao presidente, a “arte nenhuma” – a política até aqui vigente por abandono e nomeação de incompetentes completos para cargos-chave, como é o caso de Frias ou como vêm fazendo no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

A cultura brasileira precisa, isso sim, se reestruturar no combate ao governo Bolsonaro e aos setores que ele representa: tanto aqueles que querem impor uma visão unívoca e canhestra de cultura colonizada a um povo cuja grande identidade reside na diversidade quanto os obscurantistas terraplanistas que querem levar o país a uma nova Idade Média. É preciso buscar novas fontes de recursos, é preciso buscar apoio junto aos governos estaduais e às prefeituras. É preciso buscar apoio e participação da sociedade, do contrário, nos manteremos nessa dicotomia que nada mais faz que seguir a diretriz política de Josef Goebbels, conforme vocalizada pelo antecessor de Frias Roberto Alvim em janeiro de 2020, ou nossa cultura se limita ao que eles entendem como tal “ou então não será nada”

Deixe uma resposta