Patrimônio nacional, Quinta do Tanque é ameaçada de privatização judicial em Salvador

Como um edifício tombado, que abriga o Arquivo Público do Estado da Bahia, pode ser privatizado por ordem judicial e passar às mãos de um arquiteto

A Quinta do Tanque na década de 1930. Imagem: Edgard de Cerqueira Falcão
por Danilo Matoso

No último sábado (6), o jornal baiano A Tarde estampou a manchete Patrimônio nacional, prédio do Arquivo Público da Bahia vai a leilão na segunda. A notícia era bizarra, mas dado o contexto atual de ataques à nossa cultura em geral e ao nosso patrimônio edificado em particular, não era algo completamente fora de contexto. Desnecessário repetir aqui os cortes orçamentários, a nomeação de gestores desqualificados, os incêndios, a perseguição política, a visão torpe do que possa ser a cultura de um país. Já tratamos disso em outros artigos. O caso da Bahia é especialmente desalentador porque mesmo o governador Rui Costa (PT) fez o favor de propor, há alguns meses, a transformação do Palácio Rio Branco – sede original do Poder Executivo estadual – em um hotel privado. Nesse cenário, o leilão de um edifício do século 16 tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) parecia “só mais um ataque dentre tantos”. Há porém algo de diferente aqui. O leilão seria feito às pressas não por obra dos governos federal ou estadual, mas por determinação judicial, para saldar uma dívida da antiga Empresa de Turismo da Bahia S. A. (Bahiatursa) – incorporada como órgão da administração direta pelo Governo do Estado em 2014.

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Vale lembrar que o ativismo político do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal (MPF) – por meio da operação Lava Jato e congêneres – foi em grande medida responsável pelo atual estado de coisas: um país nas mãos de um grupo de características fascistas e absolutamente inepto para gerir qualquer coisa. A Lava Jato não apenas tirou Luiz Inácio Lula da Silva da corrida presidencial por meio de acusações sem provas e um processo judicial corrompido do início ao fim por operadores parciais e venais. Ela teve uma grande parcela de responsabilidade pela quebra de grandes construtoras, pela paralisação dos investimentos da Petrobras em obras de infraestrutura, pelo desemprego e pela imobilização do crescimento em diversas áreas do país – incluindo a Bahia. Foi a Lava Jato, enfim, a ponta de lança no processo fascista de demonização e criminalização da política que, com a alavancagem da imprensa, levou à ascensão de uma extrema direita de viés autocrático. Vale dizer: tanto o judiciário quanto a imprensa continuam investindo nesse caminho, por meio da carreira política de um Sérgio Moro – a “terceira via” do momento ou um Deltan Dallagnol.

Privatização por ordem judicial

Mas voltemos a Salvador. Segundo foi anunciado pela Procuradoria Geral do Estado da Bahia, a empresa TGF Arquitetos Ltda. ajuizou em 1990 um pedido de indenização por serviços que teriam sido prestados pela elaboração de projetos à companhia. No mesmo ano, a ação foi julgada procedente e em 2005, durante a gestão do governador Paulo Souto (PFL), a Bahiatursa ofereceria à penhora a Quinta do Tanque, em que está instalado o Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb). Com a incorporação da empresa ao Estado, também teria se incorporado a dívida agora em execução, que motivaria o leilão do imóvel, a Quinta do Tanque, construída pelos jesuítas como “Casa de Campo do Colégio da Bahia” no século 16.

Segundo argumentado diversas vezes pela Bahiatursa e pelo Estado, a TGF não teria sido contratada pela empresa para elaborar projetos, que teriam sido “apresentados espontaneamente”. Segundo Rui Costa, o serviço alegado teria sido “um estudo conceitual do pavilhão de feiras de Salvador e não de um projeto” de arquitetura ou engenharia. O governador afirma, com bastante razão: “em qualquer lugar do mundo que você vá, um projeto não passa de 5% do valor da obra. A dívida que está sendo cobrada é de R$ 50 milhões. Com isso você constrói hoje, com valores atualizados, um pavilhão de feiras”. De fato, como o próprio Costa complementa: “se fosse verdade, o valor do projeto seria 5% da obra. Se a obra hoje – valor atualizado – custa R$ 40 milhões”. Com isso, o valor do projeto não poderia ser superior a R$ 2 milhões de reais.

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Não foi o entendimento do Tribunal de Justiça de Salvador, que reiteradas vezes em 2021 determinou a realização de pelo menos dois leilões de bens públicos para saldar a dívida: o Grande Hotel de Juazeiroleiloado em junho último, e a Quinta do Tanque nos últimos meses.

A boa fortuna de uma família

Originalmente dos arquitetos Jader Tavares, Othon Gomes e Fernando Frank, a TGF pertence hoje somente a este último, graduado pela Universidade Federal da Bahia em 1967. Na década de 1980, os três foram autores de importantes edifícios na cidade, como a Casa do Comércio (inaugurada em 1988) – com sistema construtivo inovador em estrutura metálica aparente. Recentemente, o arquiteto se viu envolvido numa polêmica relativa ao patrimônio cultural edificado na capital baiana. Era de sua autoria o projeto de duas torres gêmeas na região do Largo da Vitória que previa a demolição de um casarão centenário em estilo missões situado nos fundos da Igreja de Nossa Senhora da Vitória. Por ser o antigo templo tombado pelo Iphan, seu entorno imediato também era objeto de preservação, pelo que as torres não poderiam ser construídas sem anuência do órgão de patrimônio.

Apesar das medidas de salvaguarda, na manhã de um domingo, 28 de janeiro de 2007, a construtora avançou sobre o casarão, destruindo-o quase que completamente. Em seu lugar, ergueu-se uma das torres de 35 andares – acima de todos os prédios vizinhos e em destaque na barra da Baía de Todos os Santos, batizado ironicamente com o nome da casa desaparecida: Mansão Wildberger. No luxuoso edifício, cujo valor das unidades chega à casa dos R$ 23 milhões (considerado o apartamento mais caro de Salvador), hoje reside por exemplo a estrela da música Bell Marques.

Com tal currículo, é consequente a circulação de Fernando Frank nas rodas da alta burguesia soteropolitana – e o arquiteto fez questão de demonstrar esse trânsito. Nas comemorações de seu aniversário de 60 anos em 2013, por exemplo, “contou com apresentação de Nana Caymmi acompanhada de piano de cauda, show de Simone Sampaio, harpista vinda do Rio de janeiro, café da manhã com banda Olodum, carrinhos de golfe transportando os convidados, orquestra de 40 músicos para recepção, projeção em corina de água, performances circenses e performances com bartenders de Curitiba”. Naqueles tempos, a boa sorte brilhou também para seu filho, o juiz Roberto Maynard Frank, que foi nomeado desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia em outubro de 2013, tendo sido eleito presidente do Tribunal Regional Eleitoral daquele estado em 29 de março deste ano.

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A desfortuna do patrimônio

Infelizmente, a fortuna da família Frank tem sido a desfortuna do Patrimônio Cultural da Bahia e do país. Além do episódio da Mansão Wildberger, agora o Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) e o edifício que o abriga estão ameaçados. Após o anúncio do leilão, diversas entidades se mobilizaram no último final de semana, o Governo do Estado se mexeu, o Ministério Público agiu e, na véspera de sua realização, o leilão foi suspenso pelo juiz George Alves de Assis. Foi uma vitória parcial: o juiz determinou que a Fundação Pedro Calmon, gestora do Apeb, apresente um “plano de salvaguarda e remoção do acervo, no prazo de 60 dias”. Isso significa que a ameaça continua pairando sobre o patrimônio cultural. Isso porque não se muda a destinação de um edifício de 400 anos sem reformas significativas e, principalmente, não se remove um acervo de 41,2 milhões de documentos sem perdas.

A Quinta do Tanque, ou Quinta dos Padres, foi criada no século 16 como uma mansão de repouso e jardim botânico da Companhia de Jesus. A fonte, ou tanque, era um reservatório de água criado naquela baixa para irrigar as culturas de plantas alimentícias vindas de outras regiões do mundo também exploradas pelos portugueses e pelos jesuítas, desenvolvendo-se mesmo novas variedades mais produtivas. Diz-se, por exemplo, que ali foi desenvolvida a laranja de umbigo – ou Laranja da Bahia. Na Quinta residiram o célebre Gabriel Soares e o celebérrimo Padre Antônio Vieira, que reformou o edifício no final do século 17 e nele escreveu muitos de seus sermões durante sua estadia de 17 anos no local, então conhecido como Casa de São Cristóvão. Com proscrição dos jesuítas dos domínios portugueses pelo Marquês de Pombal em 1759, o imóvel foi incorporado pela Coroa portuguesa que o vendeu a terceiros e o readquiriu a pedido do governador Rodrigo José de Menezes e Castro que o reformaria entre 1785 e 1787 para ali instalar um leprosário, que funcionaria até pelo menos 1949 – então já mantido pela Prefeitura.

Em 6 de agosto daquele ano, o edifício foi inscrito nos livros do Tombo Histórico e de Belas Artes, incluindo além da arquitetura civil: os jardins que a circundam, o reservatório de água, os aquedutos antigos, o chafariz de cantaria, a bacia de outro chafariz antigo e um marco setecentista de pedra. Segundo o pesquisador Mário Mendonça (Património de origem portuguesa no mundo), “com o fim do leprosário, a Quinta do Tanque foi abandonada, o seu terreno aforado ou invadido e o edifício ocupado de maneira irregular e imprópria, sofrendo inclusive o incêndio de uma das alas”. Foi somente no final da década de 1977 que o Governo do Estado saneou e, com projeto de Paulo Ormindo de Azevedo, restaurou a Quinta nela instalando o Arquivo Público do Estado da Bahia, que ali ganhou abrigo definitivo em 1980. Recentemente, o edifício passou por novas e amplas obras de conservação iniciadas em 2012 e concluídas somente em 2020, durante as quais foram encontrados mais de dois mil artefatos arqueológicos na área. As obras incluíram recuperação das escadas, impermeabilização das paredes, recuperação de 89 janelas e 40 portas, instalação de elevador para deficientes, reforma de sanitários, pintura geral e imunização dos forros e pisos de madeira. É um patrimônio bem cuidado e que guarda muita história..

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Criado em 1890, logo após a proclamação da República, o Arquivo Público do Estado da Bahia guarda mais de quatro dezenas de milhões de itens documentais de diversas épocas. Para se ter uma ideia de sua importância, ali se encontra o fundo do Tribunal da Relação da Bahia, implantado em 1609, que virtualmente governou o Brasil até o final do século 18 – isso porque o Poder Judiciário dominava a burocracia colonial portuguesa, assumindo muitas tarefas administrativas por meio de seus juízes e corregedores, instalados em cada canto de nosso território.

Como o episódio demonstra, tal tradição persiste, e os bens do Estado estão sendo privatizados pela pena do Judiciário. O também arquiteto Zulu Araújo – presidente da Fundação Pedro Calmon, que administra o Apeb – foi pego de surpresa pelo leilão do edifício. Agora o órgão tem dois meses para elaborar um plano impossível: remover sete mil quilômetros de documentos. É Zulu quem nos lembra que “movimentar uma documentação desta, sendo que boa parte dela está em torno de 300, 400 anos de existência, requer um cuidado, uma atenção extremamente grande. Pra você movimentar um acervo como esse, você tem que ter catalogação devida, armazenamento devido, acondicionamento devido, restauração devida e higienização devida. Porque tem documentos ali que se você não restaurar e não higienizar antes de movimentar ele simplesmente esfarela”.

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Na prática, todo bibliotecário e arquivista sabe que a mudança de um acervo dessa idade e importância não ocorre sem perdas. É por isso, por exemplo, que os acervos da Biblioteca Nacional e do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro não foram transferidos para Brasília até hoje – passados 60 anos da transferência da Capital –, e é quase certo que nunca o sejam. O quadricentenário acervo do Apeb não é menos raro nem menos importante para a história nacional que aquelas instituições federais. Zulu, que já esteve à frente da Fundação Cultural Palmares, da Casa de Cultura da América Latina da UnB – entre outras atuações políticas de relevo – promete “brigar em todas instâncias” pela manutenção do acervo na Quinta do Tanque: “não cogitamos abrir mão daquele edifício, como não cogitamos a remoção desse acervo”. A disposição para a luta é a mesma de todos aqueles que lidam com a memória nacional. Mas precisamos convir que ela está cada vez mais difícil, num país em que uma operação judicial acaba de formar um partido político.

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