O acervo de Lucio Costa, criador de Brasília, foi doado à Casa da Arquitectura de Matosinhos, acendendo uma viva polêmica sobre a perda

por Danilo Matoso
Este é o primeiro artigo da trilogia “Lucio Costa fora de casa”, que trata da doação do acervo do arquiteto para a Casa da Arquitectura de Portugal, que prossegue com “Patrimônio, patrimonialismo” e “Europa, Portugal etc.“
Na última terça (19) a Casa da Arquitectura de Portugal anunciou que se encontra em fase final o recebimento do acervo documental de Lucio Costa (1902-1998), doado por sua família. São mais de 11 mil documentos, entre desenhos, fotografias e textos, que registram a vida profissional de um dos mais influentes arquitetos brasileiros de todos os tempos. A família e o centro português de documentação exultavam. O tom era de comemoração. Para Nuno Sampaio, diretor executivo da instituição, a doação “reveste-se de uma enorme responsabilidade e compromisso da Casa da Arquitectura para tratar, arquivar e promover o estudo de tão notável espólio”.
O sentimento de diversos pesquisadores brasileiros, porém, não foi nada positivo. Por exemplo, para Rolando Piccolo, editor do perfil Oscar Niemeyer Works, no Instagram, a Casa da Arquitectura “consolida seu caráter predatório ao ignorar as discussões éticas contemporâneas em relação à posse de bens culturais”. Segundo o pesquisador, “de maneira similar à transferência do acervo de Paulo Mendes da Rocha, a Casa da Arquitectura novamente se aproveita da frágil situação em que se encontra a cultura brasileira para ganhos próprios. Ignorados por sucessivos governos, nossos acervos, tão relevantes para a identidade nacional, não encontram sequer nas pessoas mais próximas a eles, mobilização para que fosse desenvolvida no Brasil a infraestrutura necessária para mantê-los onde eles possam melhor exercer seus papéis social e cultural”.

O problema é outro
Há pouco mais de um ano, em meio a grande polêmica coberta pelo Partisano, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha anunciou a doação de seu acervo à instituição portuguesa. Embora controversa, se tratava ali da doação de um acervo por seu próprio autor, um dos grandes artífices da arquitetura mundial, que viria a falecer em maio deste ano. Havia ali um constrangimento geral em contrariar a vontade do próprio mestre, a ponto de cerca de 200 personalidades haverem subscrito “Um abraço no Paulo” em sinal de desagravo – num texto esotérico e carente de sentido senão pelo apoio pessoal, que considerava a doação uma “ação civilizadora, que supera questões históricas”.
Agora a situação é diferente. É a família de Lucio Costa, herdeira do acervo, que faz a doação. A origem do fundo era um apartamento caótico no Leblon, em que o arquiteto vivia e onde guardava todas as suas produções, mas a atual coleção já fora devidamente tratada, classificada, digitalizada e acondicionada ao longo de mais de duas décadas pelo Instituto Tom Jobim, em parceria com a Casa de Lucio Costa – a sociedade criada pela família e admiradores para gerir o acervo.
Tentou-se porém repetir o argumento “civilizatório”. A neta de Lucio Costa, Julieta Sobral, replicou às críticas no Facebook: “o Lucio é e sempre será brasileiro, assim como o seu legado, e não é a posse fisica dos documentos que vai mudar isso! Ao contrário!”. Segundo Sobral, “o fato do acervo estar numa instituição que tem capacidade de preservar e difundir esse pensamento nos ajuda a dar um recado importante pro mundo e, nesse sentido é o oposto do ‘movimento colonialista’ percebido por quem pensa na ‘posse’ e não na difusão”.
Na verdade, segundo se noticiou, a doação do acervo já fora negociada em 2019, após uma visita de Maria Elisa Costa – filha de Lucio – e Julieta Sobral a Portugal. O anúncio foi feito sobre o fato consumado há tempos – e talvez até mesmo atrasado por conta da repercussão negativa do exílio do acervo de Paulo Mendes da Rocha.

Ataque à memória, exílio de acervos
Dizemos exílio porque, sob o governo Bolsonaro, nossa cultura e nossos acervos documentais estão vivendo em estado de exceção inédito. O abandono das políticas culturais, o ataque aos artistas e pesquisadores são de uma magnitude e de um obscurantismo inédito – algo que não foi visto sequer nos tempos da ditadura. O Ministério da Cultura foi extinto e subordinado à pasta do turismo, entregue primeiro ao discípulo de Goebbels, Ricardo Alvim, passou pela ex-namoradinha do Brasil, Regina Duarte, e está há um ano e meio sob a batuta do tosco playboy Mário Frias – ator aposentado de Malhação.
Convém lembrar, sempre, que em tempos de revisionismo histórico sobre a época da escravidão, sobre as mortes da ditadura, tentativa de revogação da Lei Áurea, negação da ciência e outros elementos da pauta obscurantista, a disputa pela memória – ou a luta por seu apagamento – é prioridade. Nesse período, os acervos bibliográficos, museográficos e documentais – como de resto todo nosso patrimônio cultural, estão sob constante ataque. O Iphan está em permanente estado de desmonte, com corte de verbas e nomeação de pessoal desqualificado; um painel artístico de Acácio Gil Borsói (1904-2009) foi demolido arbitrariamente a mando da Reitoria da Universidade Federal da Paraíba (UFPB); um incêndio atingiu o acervo do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NPD-FAU/UFRJ), ameaçada de extinção; o Museu Nacional, incendiado em 2018, corre o risco de voltar a servir à família Orleans e Bragança (que ainda se diz a “Família Real Brasileira”); parte do acervo da Cinemateca Brasileira pegou fogo em julho último por falta de gestão; a biblioteca da Fundação Palmares, sob o comando de Sérgio Camargo, está encaixotada em algum porão da Capital Federal e quase passou por um bisonho expurgo ideológico promovido por sua diretoria – sua extinção teve que ser evitada por decisão judicial.
Não há dúvida que a cultura nacional e nossos acervos, sob o governo Bolsonaro, estão sob ataque e correm risco real de desaparecimento. Daí que o exílio de acervos parece, à primeira vista, uma solução para mantê-los vivos, como já dissemos n’O Partisano. Como também já foi dito ali, ao contrário de exilados políticos de carne e osso, porém, os acervos documentais e artísticos dificilmente voltam – que o digam os gregos e italianos, que têm as obras de suas eras clássicas espalhadas por museus de todo o mundo há séculos, como a Vênus de Milo, os mármores de Elgin ou a Mona Lisa. Parece pouco recomendável, portanto, exilar “preventivamente” acervos que na realidade não correm diretamente risco de extinção – o que certamente não eram os casos dos acervos de Paulo Mendes da Rocha e de Lucio Costa.
O acervo vivo de Lucio Costa
É certo que nossa cultura está sob ataque, que nossas instituições estão em processo de desmonte. Mas também é certo que num país dessas dimensões há centenas de acervos e museus em boas condições de conservação, geridos com competência, tratados por técnicos qualificados e com amplo acesso público. Para o observador externo, parecia ser esse o caso do Instituto Tom Jobim, que gerenciava o acervo de Lucio Costa e que até a data de publicação desta matéria ainda disponibiliza gratuitamente na internet milhares de documentos bem organizados, minuciosamente descritos e digitalizados em alta resolução.

Os pesquisadores e promotores culturais brasileiros, inclusive a Casa de Lucio Costa, sempre fizeram e seguem fazendo amplo uso desse material. Vejamos alguns deles. Em 2002, por ocasião do centenário do nascimento do arquiteto, o Centro Cultural Banco do Brasil realizou a exposição itinerante Lucio Costa 1902-2002 – com catálogo; em maio daquele ano, a Casa de Lucio Costa e as universidades cariocas realizaram no Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, o seminário internacional Um século de Lucio Costa – que gerou o livro Um modo de ser moderno: Lucio Costa e a crítica contemporânea; em 2009, a Casa de Lucio Costa promoveu a exposição Acervo Lucio Costa – documentos pessoais, achados, com curadoria de Maria Elisa Costa, com catálogo trilíngue (português, francês e inglês); em 2010, por ocasião do aniversário de inauguração de Brasília, circulou a exposição itinerante Lucio Costa: arquiteto – com um grande catálogo de primeira linha; em 2012, a Caixa Cultural do Rio de Janeiro promoveu a exposição A arquitetura portuguesa no traço de Lucio Costa: bloquinhos de Portugal, com reproduções das folhas dos cadernos de notas do arquitetos em duas viagens investigativas que fez ao país europeu nas décadas de 1940 e 1950 – com catálogo bilíngue (português e inglês). Isso para não falar da matriz de todas as memórias costianas, a monumental coletânea de textos, desenhos e fotos Lucio Costa: registro de uma vivência – editada pela primeira vez pela Universidade de Brasília e Empresa das Artes em 1995 – com autoria do próprio arquiteto e de sua filha, Maria Elisa Costa. Como a muitas grandes personalidades, inclusive Oscar Niemeyer e Le Corbusier, interessava a ele dar o tom de sua biografia.
Tanta atividade rendeu diversos frutos significativos. Além de um maior reconhecimento popular nacional e internacional, muitos artistas e pesquisadores redobraram seu interesse pela obra de Lucio Costa. Vejamos alguns exemplos significativos. Em 2001, a École d’Architecture de Saint-Étienne publicou uma tradução parcial do Registro de uma vivência chamada Lucio Costa: XXe siècle brésilien: témoin et acteur organizada por Jean-Loup Herbert; em 2003, realizou-se o filme O risco: Lucio Costa e a utopia moderna, de Geraldo Motta Filho, com roteiro de Guilherme Wisnik, com depoimentos de diversas personalidades e belas imagens em Super 8 feitas pelo próprio arquiteto em suas viagens.

Diversos livros foram escritos desde então sobre a atuação de Costa, como em 2007 o livro Carradas de razões: Lucio Costa e a arquitetura moderna brasileira, fruto da tese de doutoramento de Otavio Lenonídio; ou como Lucio Costa e as missões: um museu em São Miguel, organizado por Carlos Eduardo Comas em 2009.
Há cerca de dez anos, a pesquisadora gaúcha Anna Paula Canez – então na UniRitter – coordenava a disponibilização de uma “Obra Completa” de Lucio Costa na internet. A pesquisa resultou no livro Sobre a obra de Lucio Costa, publicado em 2015. A própria Maria Elisa Costa retornaria à carga em 2014 com o livro Lucio Costa: inventor de Brasília, incluindo novos documentos sobre a Capital acompanhados de sua análise. Isso para não falar em dezenas de artigos, dissertações e teses sobre sua obra que surgem regularmente.

Centros de documentação
O que relatamos aqui certamente não é o retrato de um acervo em perigo, esquecido ou “morto” – para usar a expressão abominada por arquivistas. Trata-se aqui de um acervo que, embora relativamente pequeno, vinha sendo gerenciado com tenacidade pela Casa de Lucio Costa e bem guardado pelo Instituto Tom Jobim, produzindo diversas exposições, livros e pesquisas. No entanto, segundo se divulgou, “em julho de 2019, o Instituto Jobim passou por uma reestruturação jurídica e percebeu que não era viável manter o acervo, com a responsabilidade legal e altos custos implicados, como o de seguro. Era preciso tirar tudo de lá até o fim daquele ano”.

Uma decisão drástica e de caráter aparentemente irrevogável, da maneira que foi narrada. Não se deu publicidade a tal catástrofe, porém. Nenhuma campanha de financiamento, nenhuma articulação com a Prefeitura, o Aeroporto do Galeão ou a seguradora Icatu, que aparecem como patrocinadores do Instituto Tom Jobim. Não se buscou o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, o Instituto de Arquitetos do Brasil, ou o Docomomo – Comitê de Trabalho Internacional de Documentação e Conservação de Edifícios, Sítios e Vizinhança da Arquitetura Moderna. Segundo a história até aqui narrada, a família tratou a questão como assunto exclusivamente privado e aceitou o convite para visitar a Casa da Arquitectura. Note-se que a Casa de Lucio Costa não é uma associação composta somente por familiares, mas tem também conselheiros de relevo como o arquiteto e pesquisador Lauro Cavalcanti. Não se tem notícia sobre como isso foi discutido por lá.
Segundo Julieta Sobral, a escolha da Casa da Arquitectura se impôs: “no Brasil não tem nenhum lugar com essa infraestrutura, reserva técnica, a capacidade de treinamento e cuidado do acervo. Infelizmente a gente não tem nada assim para arquitetura”. Os portugueses aparentemente fazem um bom trabalho – assim relatam todos os que tiveram contato com o centro de documentação luso – e causaram boa impressão em Maria Elisa Costa e Julieta Sobral, em visita em 2019, a ponto de, a partir daquele contato inicial, dispensarem outras hipóteses sem mais pesquisas. Por isso, esta última declarou na última semana que sequer procurou algum órgão público.

De fato, no Brasil não há ainda centros de documentação internacionais, que captam acervos de projetos de todo o mundo, como o fazem não apenas a Casa da Arquitectura, mas também, em Paris, o Centre Georges Pompidou ou a Cité de l’Architecture et du Patrimoine; em Los Angeles, o Getty Center; em Nova York, a Avery Library da Columbia University e o Museum of Modern Art; ou; em Montreal; o Centre Canadien d’Architecture. É um tipo de negócio global que envolve disputa por poder, prestígio, gosto e – evidentemente – dinheiro: é um negócio. E convenhamos que, mesmo em países centrais da Europa, não há centros similares – e aqui falamos de Espanha, Suíça, Itália, Inglaterra etc.. A regra é que boas instituições de abrangência local cuidem de seus acervos. Há no Brasil, como no resto do mundo, diversos centros de documentação de arquitetura com tratamento profissional, boa catalogação e atendimento aberto a pesquisadores, como o Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, a Fundação Oscar Niemeyer, além das seções de arquitetura dos diversos arquivos municipais, estaduais e federais e, claro, os centros de documentação de universidades como a UFRJ e a USP.
É evidente que, sim, os acervos são sempre secundarizados pelos gestores públicos e, como se descreveu aqui mesmo, estejam hoje sob pesado ataque do obscurantismo e do governo Bolsonaro. É evidente que devemos denunciar a destruição de nossa memória. Isso não significa em absoluto que todas as dezenas de acervos de arquitetura do Brasil estejam automaticamente correndo risco de destruição imediata e que devam tanto quanto possível ser entregues ao estrangeiro. Parece uma afirmativa tautológica, mas talvez convenha reafirmar o óbvio diante do argumento fatalista recorrente para justificar a evasão de acervos. Fazendo uma parábola, seria algo como dar por certo que o Museu Britânico deveria receber todo o acervo do Louvre após o incêndio da vizinha Notre Dame de Paris – já que o ocorrido foi fruto de cortes de verbas nos sistemas de prevenção; seria algo como exilar todos os militantes de esquerda do país durante a ditadura porque alguns foram presos ou assassinados. Seria, enfim, impensável.

Foi Lucio Costa quem fez questão de reafirmar, em meados da década de 1980, às vésperas da declaração pela Unesco de nossa Capital como patrimônio da humanidade: “Brasília, cidade que inventei”. A invenção de Brasília, por Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Juscelino Kubitschek e por milhares de brasileiros que a tornaram uma realidade é sua grande conquista. Brasília é até hoje um monumento à epopeia de sua construção, ao gesto de autoafirmação do Brasil como nação. É no mínimo contraditório, por isso, que os gestores do acervo de Costa, que vinham fazendo um excelente trabalho até aqui, tenham jogado a toalha. Afinal, ninguém melhor que as famílias de Costa e Niemeyer para inventar um centro de documentação internacional da arquitetura no Brasil: prestígio e apoio político não faltam e nunca faltaram a ambos – nem durante a ditadura militar. A Casa de Lucio Costa e a Fundação Oscar Niemeyer, em que pesem todos os problemas administrativos, sempre arregimentaram pessoal altamente qualificado para pesquisar, descrever, digitalizar e disponibilizar seus acervos. E, claro, se as famílias desejarem abrir mão de tal tarefa, não falta quem se disponha a levá-la a cabo, sobretudo por influência da geração daqueles mestres.

O rabo abanando o cachorro
Há um aparente consenso em torno à competência arquivística da Casa da Arquitectura, inaugurada em 2017 em Matosinhos, na região metropolitana do Porto. Custeada e dirigida pelo governo português e pelos municípios vizinhos, a Casa tem como pedra fundamental a guarda dos acervos dos arquitetos da chamada Escola do Porto de Arquitetura: dentre eles Fernando Távora, Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura – dois deles vencedores do Pritzker. E de fato é necessário um centro documental de qualidade internacional para guardar esses documentos que testemunham, há mais de cinco décadas e na atualidade, a produção de uma das melhores arquiteturas do mundo (e, na minha opinião, a melhor).
Por isso a Casa da Arquitectura é promissora. Com a importação de acervos brasileiros, prometem-se bolsas de estudos aos pesquisadores d’além-mar, promete-se ampla difusão do acervo digital, prometem-se as melhores condições de guarda dos documentos.
A realidade atual, porém, é que ainda não há em seu site sequer uma lista dos arquitetos cujos acervos estão disponíveis para pesquisa, não está claro para o público e para a comunidade de arquitetos e pesquisadores como será franqueado o acesso à obra; não há qualquer ferramenta de busca e pré-visualização pública visível na internet; circula nas redes sociais uma tabela de preços em Euros para reprodução de qualquer documento do acervo – que portanto não será gratuita como hoje ocorre em outros arquivos públicos.
É curioso – e no caso de acervos permanentes é imprudente – que se confie na guarda prolongada por uma instituição tão jovem apenas com base em promessas. Quando a Casa de Lucio Costa, que guarda e promove de modo competente seu acervo há mais de 20 anos, entrega seu mais valioso bem a um centro de documentação recém-criado no interior de Portugal, é inevitável a sensação de inversão. É o rabo abanando o cachorro.

Os sentidos do acervo
A polêmica trouxe consigo ainda o argumento de que, garantido o acesso digital, seria supérflua a consulta aos originais, guardados apenas como garantias de autenticidade do documento digital. Em entrevista à rádio CBN, Julieta Sobral explicou inclusive que sua preocupação “era garantir a preservação do acervo, e não que o país permanecesse de posse de documentos, porque acho que isso não faz mais sentido hoje em dia. O pensamento do Lucio, a importância desse acervo, transcende os limites territoriais”. Se tal argumento prosperasse, teriam sido inúteis todas as exposições de originais realizadas pela própria Casa de Lucio Costa, teriam sido e são vãs todas as mostras itinerantes de documentos históricos e de arte que circulam pelo mundo.
É especialmente significativa a perda de contato direto dos brasileiros com os documentos originais de Lucio Costa. Isso porque perde-se facilmente a noção de escala de seu risco, amplamente reproduzido em diversos meios, plotado, projetado, ampliado, vetorizado, editado. Ao ver-se, por exemplo, o original do Plano Pilôto de Brasília vencedor do concurso, é surpreendente sua delicadeza, seu tamanho diminuto, a clareza da síntese de seu desenho. De frente à folha de papel – e só ali – vê-se que o Costa artista descende de um Frans Post e não de um Diego Velázquez. Comparando o seu traço com o de Niemeyer em sua fase inicial, se afere ali o íntimo contato dos dois. É uma “questão de escala”, para usar uma expressão cara a ele mesmo. É claro que tal compreensão não se constrói por meio de imagens digitais.
Enfim, como resumiu num debate online o arquiteto José Roberto Bassul: “nenhum acesso digital substitui a realização simbólica de termos no Brasil a documentação criativa de um de seus heróis. Falamos da possibilidade perdida de manter aqui um acervo apto a mostrar à nossa população que o Brasil é capaz de se inserir, com destaque, nas vanguardas internacionais. Ensinar aos adolescentes e crianças de onde surgiu a capital do país. Tornar disponível aos pesquisadores e estudantes o material textual e visual da própria criação. Mostrar aos turistas as origens constitutivas da maior e mais importante realização modernista do mundo. Não é pouco o que perdemos…”
Não vamos falar aqui de mentalidade colonialista, de colonizados e de colonizadores. Seria desnecessário, tautológico e rescenderia a falsa novidade. Mais ainda ao se tratar da obra de um arquiteto que, diante das críticas de alguns europeus à recém construída Brasília, respondeu: “Não vale a pena sair de seus cuidados para visitar Brasília se vocês já têm opinião e ideias civilizadas preconcebidas. Fiquem onde estão”.
Vamos, isso sim, falar da relação de Lucio Costa com a arquitetura portuguesa e com nossas instituições de tutela do patrimônio cultural – as mesmas que ele próprio ajudou a criar e que têm como fundamento a territorialidade das obras de arte. Mas isso fica para as próximas partes deste texto.
Ótima análise. Aguardamos os próximos capítulos!
Danilo eu o saúdo pela abordagem perfeita do seu texto. A doação do acervo de Lucio Costa, o inventor de Brasília, para um centro português de documentação dói como um soco no estômago em todos nós. Até a questão da escala dos desenhos, que você coloca – importa. É sensorial, e você alertou muito bem, realmente a digitalização não resolve. A despeito de toda a malversação da cultura nacional nestes tempos sombrios, é uma lástima que a obra de Lucio, que tanto produziu inclusive para salvaguardar a brasilidade nas artes e na arquitetura, não permaneça no Brasil. Um acervo tão importante quanto este merecia diversas tentativas e tratativas para que o mantivessem no país. Será que quem decidiu por isso, sabe a real dimensão do que perdemos? Estou com Bassul, perdemos identidade. Perdemos MUITO.
Parabéns Danilo pela análise critica minuciosamente densa e bem informada. Acompanho sua posição crítica assim como a dos colegas Bassul e Torelly. Lastimo que sob pretextos pragmáticos, pretensamente cosmopolitas e progressistas, se propague a desistência da territorialidade e defesa da Cultura produzida no Brasil para ser vendida “a peso de ouro e euro” com grife européia. Tristes trópicos.
[…] Este é o segundo artigo da trilogia “Lucio Costa fora de casa”, que trata da doação do acervo do arquiteto para a Casa da Arquitectura de Portugal, que começou com “Notas sobre o exílio de seu acervo”. […]