Após o exílio do acervo de Lucio Costa para Portugal, perguntamo-nos: afinal, qual era atitude do arquiteto diante da cultura europeia? Há algo que indique

por Danilo Matoso
Este é o terceiro artigo da trilogia “Lucio Costa fora de casa”, que trata da doação do acervo do arquiteto para a Casa da Arquitectura de Portugal. O primeiro artigo é “Notas sobre o exílio de seu acervo” e o segundo, “Patrimônio, patrimonialismo”.
Qual a relação de Lucio Costa com a Europa, Portugal e os profissionais de outros países? Como vimos no segundo texto desta série, o interesse público de um acervo suplanta os desígnios até mesmo do seu próprio autor. Mas, ainda assim, o arquiteto teria nos dado alguma indicação de que preferiria ter seu acervo guardado no exterior?
A relação de Lucio Costa com Portugal é antiga e, pode-se argumentar, antecede ao seu nascimento em 1902. Sua mãe, Alina Marçal Ferreira, estudara no internato de uma certa Mademoiselle Roussel em Lisboa, onde acabaria por se casar na igreja de São Jorge com o engenheiro naval Joaquim Ribeiro da Costa. O futuro arquiteto propriamente dito teve uma infância tão cosmopolita quanto a carreira militar de seu pai impôs. Nascido em Toulon, passou a infância entre Brasil, França, Inglaterra e Suíça até pousar definitivamente no Rio de Janeiro em 1916, onde foi matriculado aos 14 anos na Escola Nacional de Belas Artes, para formar-se arquiteto aos 20 anos, em 1922.
Ainda estudante, frequentou os escritórios do italiano Raffaele Rebecchi e de Heitor de Mello. Este último era um verdadeiro abrigo de imigrantes, como “Francisco” Cuchet – que anotava em francês seus desenhos –, o desenhista Augustino Baldassini e o calculista suíço “João” Müller. Ambas as firmas haviam participado das obras da Avenida Central (atual Rio Branco) e eram responsáveis por arquitetura eclética de primeira linha – e dentre os estilos em que projetavam e construíam incluía-se também o neocolonial.
Alguns estudiosos atribuem o início da arquitetura neocolonial no Brasil à vinda do arquiteto português Ricardo Severo a São Paulo – mais especificamente a sua conferência sobre A arte tradicional no Brasil, proferida na Sociedade de Cultura Artística em 1914. A realidade, porém, é que entre nós jamais se deixou de praticar arquitetura de cariz luso. Nem a missão francesa de Grandjean de Montigny em 1817, nem a vinda dos imigrantes germânicos, italianos e eslavos no final do século 19, com seu ferro fundido, tijolos, gesso e estuque, tirou dos artífices brasileiros o hábito da pedra e cal – ou madeira e taipa. Tal fenômeno é visível não apenas num certo “aportuguesamento” de Montigny quanto também nas polêmicas devidamente registradas no livro As obras da nova Praça do Commercio (Typ. de G. Leuzinger, 1884) pelo alemão “Luiz” Schreiner. No Brasil, sempre se construiu à maneira portuguesa. Talvez valha relembrar que sob os auspícios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) se gestou ainda no segundo quartel do século 19 a ideia de uma identidade nacional brasileira como uma mistura única das três raças – branco português, negro africano e índio americano. Justamente aquela que seria desenvolvida por um Adolpho de Varnhagen – na segunda metade do século 19 – e, claro, por um Gilberto Freyre na década de 1930.
Como se sabe, ao longo da década de 1920, Lucio Costa seguiu a trilha aberta por sua formação acadêmica e prática. Destacou-se como arquiteto eclético e, sobretudo, como expoente carioca do estilo neocolonial. Ele sempre tivera porém uma visão bastante própria do estilo, a começar por seu próprio contato com a arquitetura colonial setecentista. Ao se graduar, por exemplo, viajou comissionado pela Sociedade Brasileira de Belas Artes a Diamantina, Minas Gerais: “lá chegando caí em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha pra mim”.
Em 1926, já um profissional feito, Costa viajaria a bordo do navio “Bagé” para a França e a Itália. No caminho, passaria por Lisboa, onde conheceria o Mosteiro dos Jerônimos, o Museu dos Coches e o Palácio das Janelas Verdes – reformado no século 18 pelo paulistano Mathias Ayres Ramos da Silva de Eça, autor do Problema de Architectura Civil. Conta-nos ainda que ali fizera questão de visitar os antiquários locais e adquirir “uma mesa com pés de bolacha – então erradamente conhecidas como ‘manuelinas’ –, uma pequena arca entalhada – linda –, duas cadeiras, uma de sola, outra de gracioso desenho D. José, e mais umas tantas quinquilharias”, pelo que quase se veria impossibilitado embarcar no navio e seguir viagem.
Embora falasse francês e inglês fluentes e tivesse densa formação, Costa não afetava superioridade aberta por seu cabedal cultural ou por sua vivência estrangeira. Ao contrário, diria mais tarde: “o fato de ter passado a infância fora do país faz com que me sinta mais integralmente, mais “equilibradamente” brasileiro, livre das baldas regionalistas daqueles outros, de filiação portuguesa, nativa ou africana, nascidos aqui e ali; ou daqueles brasileiros de outras ascendências: européias – nórdicas ou mediterrâneas –, muçulmanas, israelenses ou asiáticas. Sinto-me assim em casa, das orlas do Atlântico à Chapada dos Guimarães, do Oiapoc ao Chuí, como se diz”.
Quando dirigiu a Escola Nacional de Belas-Artes entre 1930 e 1931, Lucio Costa abandonou o estilo neocolonial. A história é conhecida: teria sido o momento da “conversão” do arquiteto ao “credo” moderno, à arquitetura purista, racionalista, condizente com aquela das vanguardas europeias e soviéticas, ao mesmo tempo que decididamente nacional – como de resto todo modernismo daquela época o era.

Auriverde jornada
Como já foi destacado no segundo texto desta série, desde cedo a palavra de Lucio Costa era muito estimada por seus pares. Por isso, quando esteve no Brasil em 1935 para proferir conferências a convite do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o arquitecto português Raul Lino fez questão de ter com Lucio Costa – então com pouco mais de 30 anos. Conforme relata em seu Auriverde Jornada (Valentim de Carvalho, 1937), o almoço, arranjado por José Cortez, aconteceu no Jockey Clube e contou ainda com a presença de Angelo Bruhns. A realidade, porém, é que ele “estava cheio de curiosidade por conhecer Lucio Costa”, que então gozava “do merecido prestígio de um verdadeiro mentor dos jovens arquitetos do Brasil, havendo-se distinguido na sua fulgurante carreira principalmente por uma inesperada evolução do ecletismo tradicionalista – exercido com notável talento – para um estrito abstencionismo de feição internacional”, no que “para alguns era tido por ato de apostasia, para outros como lógica transfiguração dos seus ideais”.
Para ilustrar o diálogo, Lino transcreve passagens do texto Razões da nova arquitetura, que o brasileiro escrevera no ano anterior, mas que só publicaria na revista da Prefeitura do Distrito Federal no ano seguinte. Lino concorda, discorda, argumenta. Mais aferrado às tradições, não se convence de que haja de fato uma “estética da máquina”. Acredita que há “alguma coisa para lá da técnica e que até hoje não deixou de exercer o seu encanto entre os homens. Ou entende que naquela imagem a jóia lavrada pela mão de mestre poderia ser substituída por uma peça feita ao torno mecânico?” Costa não se convence e diz que “este encantamento do lavor pessoal há de acabar por desaparecer de todo”. O português então sentencia: “Nesta altura então abriu-se uma vala intransponível entre mim e o meu amável interlocutor. Desenhava-se agora nitidamente a velha antinomia entre racionalismo e sentimento, como se a qualidade humana pudesse ser completa sem qualquer destes dois princípios”. Talvez a “auriverde jornada” de Lino o tenha marcado profundamente, e a certa arquitetura portuguesa que até hoje nos encanta por sua erudita mescla entre arquitetura vernácula e contemporânea.
Fato é que Raul Lino comungava com Lucio Costa de um desejo de síntese. Disse o português: “a arquitetura do Brasil deve acusar, sem pejo nem desonra, as origens da sua história, mas não se deixará envencilhar no meandro arqueológico, nem prender no formalismo escolar e sem vitalidade; a arquitetura do Brasil sofrerá a influência dos tempos correntes, refletindo porém as próprias reações nacionais, e nunca se limitando a adotar fórmulas importadas do estrangeiro”. Um dos caminhos interpretativos que possibilitariam tal síntese, já adotado por Lucio Costa sob a chave do estilo neocolonial, era a valorização da dita arquitetura popular, ou vernacular, como expressão local “natural”. Não foi outra a mensagem de Raul Lino em sua exposição Casas Portuguesas do séc. XVIII, em que conclui: “nesta arquitetura, pouco acadêmica – em geral irregular, fantasiosa e por vezes um tanto desajeitada, encontra-se no entanto certa qualidade que nos é simpática e que nos dispõe bem, – qualidade que se pode designar pela palavra portuguesa, tão nossa, de graça”.
Em 1938, Lucio Costa publicaria na Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) – que ajudou Rodrigo de Mello Franco Andrade a criar – o texto Documentação necessária, em que – após traçar uma genealogia de nossa arquitetura civil – critica a diversidade de estilos do ecletismo e o próprio movimento neocolonial: “fomos procurar, num artificioso processo de adaptação – completamente fora daquela realidade maior que cada vez mais se fazia presente e a que os mestres se vinham adaptando com simplicidade e bom senso – os elementos já sem vida daquela época colonial: fingir por fingir, que ao menos se fingisse coisa nossa. E a farsa teria continuado – não fora o que sucedeu. Cabe-nos agora recuperar todo esse tempo perdido, estendendo a mão ao mestre-de-obras sempre tão achincalhado, ao velho ‘portuga’ de 1910, porque – digam o que quiserem – foi ele que guardou, sozinho, a boa tradição”.

Do neocolonial ao anticolonial
Desse desejo de síntese vem uma dupla atitude, filha da antropofagia dos modernistas: se por um lado o influxo estrangeiro e da tradição é bem vindo, digerido e remoldado, por outro, a interferência, a ingerência, a crítica estrangeira direta era vigorosamente repelida como tentativa de neocolonialismo. De fato, em diversas situações Lucio Costa assumiu para si a tarefa de defender a autonomia da arquitetura e da arte brasileiras diante de ataques externos. Se ele mesmo se valera, por exemplo, da presença de Le Corbusier no Brasil para viabilizar a elaboração do projeto do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) pelo grupo que ele liderava, por outro lado repudiou vigorosamente a tentativa do arquiteto suíço de reivindicar para si a autoria da obra. Costa enviou-lhe uma ácida missiva com uma mise au point [um acerto] em 1949 em que concluía: “o esboço feito a posteriori, baseado em fotos do edifício construído, e que você publicou como se se tratasse de proposição original, nos causou a todos uma penosa impressão”.
É bem conhecido ainda o episódio em que o também suíço Max Bill, professor da Hochschule für Gestaltung de Ulm, veio ao Brasil em 1953 a convite do casal Lina Bo e Pietro Maria Bardi e outros profissionais paulistas. O artista proferiu palestras e deu entrevistas com críticas duras, e em certa medida superficiais e arrogantes, à arquitetura moderna brasileira – notadamente aquela filiada à “Escola Carioca” liderada por Costa, cujo maior expoente era Oscar Niemeyer. Costa publicou então sua veemente resposta, intitulada “Oportunidade perdida”. Nela, por exemplo, ao argumento de que a Igreja de São Francisco de Assis – projetada treze anos antes na Pampulha –, seria uma espécie de “barroquismo”, o brasileiro responde: “ora, graças, pois se trata no caso de um barroquismo de legítima e pura filiação nativa e bem mostra não descendermos de relojoeiros, mas de fabricantes de igrejas barrocas. Aliás, foi precisamente lá, nas Minas Gerais, que elas se fizeram com maior graça e invenção”.
Na década de 1960, diante das críticas a Brasília, fez questão de responder em francês com um artigo intitulado Restez chez vous [fiquem em sua própria casa, ou fiquem onde estão]: “começaram a esnobar a cidade, acusada de ser uma oportunidade perdida porque – entre outras falhas – a população pobre estava mal alojada. Como se por uma simples transferência de capital o urbanismo pudesse resolver os vícios de uma realidade econômico-social secular”. Além disso, como é hábito de muitos até hoje, criticava-se a cidade por ser, supostamente, uma importação literal de certos princípios da arquitetura e do urbanismo modernistas que haviam gerado gigantescos bairros áridos na reconstrução da Europa no pós-guerra. Criticava-se a ideia, enfim, e não a coisa. Percebendo do que se tratava, Costa conclui: “não vale a pena sair de seus cuidados para visitar Brasília se vocês já têm opinião formada e ideias civilizadas preconcebidas. Fiquem onde estão”.
Em outra situação, em 1961, escreveu uma carta política ao presidente do Congresso da Organização dos Estados Americanos que se realizaria em Arica, Chile. O arquiteto se desculpava por não comparecer e, poucos anos antes do golpe militar apoiado pelos Estados Unidos que mergulharia o Brasil numa ditadura por 21 anos, fazia um veemente repúdio e uma sugestão política, “considerando o caráter intervencionista assumido pela república dos Estados Unidos da América e o das demais repúblicas americana”: “que a intelectualidade dos países americanos de língua espanhola e portuguesa se una num movimento coletivo tendente a tomar consciência da urgente necessidade de reclamar, dos respectivos governos, que a OEA se desprenda da velada – ou ostensiva – tutela da república dos Estados Unidos da América, e passe a designar-se OAEA, Organização Autônoma dos Estados Americanos”.

De volta a Portugal
Foi com esse espírito, de compreensão da participação efetiva das culturas europeias na construção de uma arquitetura que não pode ser considerada senão brasileira – pelo território que conforma e pelos agentes envolvidos –, que Lucio Costa buscou construir, a serviço do SPHAN, uma narrativa histórica de nossa arquitetura. Isso não apenas no já mencionado Documentação necessária, mas também em Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro (1939), A arquitetura dos jesuítas no Brasil (1941), Depoimento de um arquiteto carioca (1951, sobre arquitetura moderna) etc..
Dentro dessa empreitada, obteve autorização do Serviço do Patrimônio para viajar a Portugal por pelo menos duas vezes, em 1948 e em 1952-1953, com a finalidade de “procurar estabelecer um sistema fundamental onde fosse possível apreender os vínculos naturais de filiação das fases de expressões diferenciadas da arquitetura original da metrópole naqueles períodos e naquelas modalidades que lhe correspondessem”. Em sua “introdução a um relatório” o arquiteto diz, porém, que não alcançara tal objetivo. Isso porque “tanto é incorreta a atitude dos que estão sempre a pretender descobrir na arquitetura colonial brasileira a ‘cópia’ ou a imitação de modelos portugueses todas as vezes que aquela semelhança se torna mais viva, como a dos que atribuem a maior parte, senão todas as características a imposições de ordem funcional ou mesológica. Pois que, de uma parte, os portugueses estavam aqui na sua própria casa e, portanto, ao idealizarem e construírem a morada ou a capela à sua maneira não estavam a copiar coisa alguma senão a fazer muito naturalmente a única coisa que de fato lhes cabia”.
Diz-se que a viagem de Lucio Costa a Portugal serviria de subsídio para uma novo inventário da arquitetura no Brasil colonial, e que o incentivo do SPHAN à elaboração pelo curador do Louvre, Germain Bazin, de L’Architecture religieuse baroque au Brésil (MASP/Plon, 1956) teria deixado o brasileiro desgostoso, levando-o a abandonar o projeto. Fato é que, por outro lado, quando o também francês Yves Bruand esteve no Brasil para pesquisar nossa arquitetura contemporânea, foi indubitavelmente orientado por Lucio Costa, cuja versão dos fatos prevaleceu sobre outras narrativas num livro que, publicado no Brasil no final da década seguinte pela editora Perspectiva, se tornaria o cânon historiográfico de nossa arquitetura moderna.
Algo da experiência de Costa em Portugal foi documentado há alguns anos na mostra e catálogo A arquitetura portuguesa no traço de Lucio Costa: bloquinhos de Portugal (Caixa Cultural, 2012), mostrando que o arquiteto circulou o país de norte a sul, registrando minuciosamente em desenho as edificações que lhe interessavam. Consta no Registro de uma vivência de Costa (Unb; Empresa das Artes, 1995) que “o professor Ramos, da Universidade do Porto, declarou que o livro ‘Arquitectura Popular em Portugal’ nasceu” do artigo “Documentação necessária”. É de se imaginar que os dois monumentais volumes de tal inventário, produzido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos entre 1955 e 1961, tiveram também alguma origem nas rubro-verdes jornadas do brasileiro.
A formação cosmopolita, a relação absolutamente insubordinada e sempre ombro a ombro com profissionais de outros países, a revolta contra o pensamento e a arquitetura neocoloniais, a contribuição analítica decisiva para a compreensão de nossa arquitetura antiga e contemporânea: tudo isso nos faz pensar se em algum momento o próprio Lucio Costa pensou em sair do país, talvez visando a alargar seus horizontes – como aliás o fez o próprio Oscar Niemeyer na década de 1970. Talvez a repressão de um tal desejo em vida justificasse o exílio atual de seu acervo para Portugal mais de duas décadas após sua morte. Quem nos responde é sua filha, Maria Elisa Costa. Para ela, o arquiteto “jamais sequer cogitou viver fora do Brasil, melhor dizendo, do Rio de Janeiro. Ele nunca deixou de pensar como um brasileiro ‘puro sangue’, mesmo porque […] ele era completamente puro sangue! Acho também que a observação que faço sobre o não ser deslumbrado com Europa, embora amando a Europa, explica a opção”.

Pra mim só será lembrado como alguém que ajudou a destruiu um palácio grandioso e belíssimo como o Monroe, do qual nenhuma de suas obras conseguiu chegar nem perto, apagando uma importante parte da história brasileira.
E Brasília é uma cidade horrenda que um dia há de ser demolida bem como tudo que esse senhor projetou em nosso país.
Que seu legado vá pra Portugal e que seja esquecido pra sempre em nosso país.
Amém