Lucio Costa fora de casa: patrimônio, patrimonialismo

Exilado o acervo de Lucio Costa para Portugal, cabe perguntar: afinal os próprios autores de documentos de interesse público, e suas famílias têm o direito de dispor deles como bem entenderem?

Lucio Costa na repartição. Imagem: O Partisano, sobre foto de Paolo Gasparini
por Danilo Matoso

Este é o segundo artigo da trilogia “Lucio Costa fora de casa”, que trata da doação do acervo do arquiteto para a Casa da Arquitectura de Portugal, que começa com “Notas sobre o exílio de seu acervo” e conclui-se com “Europa, Portugal etc.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

No último dia 19, a Casa da Arquitectura de Portugal anunciou o recebimento da última remessa do acervo documental pessoal do arquiteto brasileiro Lucio Costa (1902-1998), doado por sua família. Os 11 mil documentos registram 76 anos de uma prática profissional ímpar. Em 1937, Costa participou da criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – hoje Iphan; naquele ano, foi o artífice da elaboração do projeto do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) – obra fundamental de nossa Arquitetura Moderna; foi autor de dezenas de importantes obras no Brasil e no exterior, como o Pavilhão Brasileiro da Feira de Nova York (1939), o conjunto de edifícios residenciais do Parque Guinle no Rio de Janeiro (1948), a Casa do Brasil na Cidade Universitária de Paris (1952, depois desenvolvido pelo escritório de Le Corbusier), além de, claro, nada menos que o Plano Pilôto de Brasília; participou dos grandes debates e decisões de seu tempo, quer como participante brasileiro dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM) quer como jurado do concurso para escolha da sede da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em Paris; pesquisou história e elaborou um sofisticado arcabouço teórico próprio, que influenciou gerações de arquitetos e artistas.

Com menos de 30 anos Costa já era um arquiteto proeminente, estudioso dedicado da chamada arquitetura colonial brasileira e fora diretor da Escola Nacional de Belas Artes. Seu papel no Iphan foi sobretudo de pesquisador, consultor e parecerista e apenas ocasionalmente de projetista. De temperamento forte mas de fala mansa e escrita cuidada – até porque dividia sala com ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade –, desde muito cedo e até o fim da vida o arquiteto encarnou para todos à sua volta uma espécie de oráculo para assuntos tão diversos quanto arquitetura, arte, literatura, filosofia, desenho urbano e, claro, patrimônio cultural.

De fato, a opinião qualificada e contundente de Lucio Costa ajudou a moldar, no Brasil, o movimento moderno em arquitetura, nossa política de patrimônio, a forma de nossa capital, enfim. A palavra de Lucio Costa, literalmente, se tornou lei em vários momentos – como na regulamentação do tombamento de Brasília. A trajetória de Lucio Costa é um patrimônio cultural brasileiro e uma parte viva de nossa história. Porém, parece persistir entre nós uma visão privatista de toda produção intelectual. O próprio Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo (CAU) publicou a respeito do tema: “somos contra […] interferir unilateralmente na decisão sobre a destinação dos acervos particulares, o que cabe ao próprio profissional ou aos seus herdeiros, asseguradas tais premissas”.

Mas será que é bem assim? A família de Lucio Costa tem direito a dispor da íntegra de seu acervo da maneira que desejar? E se optassem por destruí-lo, para evitar o peso da gestão de tal espólio? Mais ainda, o que teria levado a família do arquiteto a expatriar algo dessa importância?

Lucio Costa: o sereno irascível

É uma tarde de 1962 no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. A um quarteirão da Rio Branco, o edifício de duas décadas brilha de modo magnífico sob o sol na esplanada que sua implantação abre no quarteirão do bairro central do Castelo. Dentro dele, em sua “toca” no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Lucio Costa folheia atento um livro. Diante dele está o autor da obra, um ansioso estudante de arquitetura gaúcho chamado Alberto Xavier. O diretor da Divisão de Estudos Técnicos olha para os colegas, volta-se para o rapaz e explode: “Isso é um caso de polícia!”.

Alberto está sem ar. Não sabe o que fazer. Pensava estar prestando uma homenagem ao organizar cuidadosamente a coletânea de textos outrora esparsos do mestre e dá-los aos prelos com um elegante layout de Carlos Scliar. É um pequeno volume horizontal de cerca de 360 páginas, com capa em cartão cinza e lombada de tecido negro protegidos por uma sobrecapa acetato transparente. Faceando um retrato reticulado sépia do autor dos escritos, a folha de rosto estampada em duas cores traz: Lúcio Costa: sôbre arquitetura / 1º volume / Centro dos Estudantes Universitários de Arquitetura / Pôrto Alegre 1962. Mas o arquiteto esbraveja que é muita petulância: “Você abusou, não podia ter feito uma coisa dessas sem ter me consultado antes”. O rapaz deixa a sala e Dr. Lucio vem atrás, falando. O livro já estava publicado. Não havia muito mais o que fazer. Talvez a coisa realmente fosse parar na polícia.

O caso seria contado com bom humor décadas mais tarde por Lygia Martins Costa – no livro O risco (Bang Bang Filmes, 2003) – e pelo próprio Alberto Xavier – na segunda edição do livro coordenada pela pesquisadora gaúcha Anna Paula Canez (UniRitter, 2007), que é nada menos que um fac-símile do exemplar anotado pelo arquiteto. Na realidade, quem aplacou a fúria de Dr. Lucio foi sua filha, Maria Elisa Costa: “Mas papai, como é que o senhor pode ter feito isso? O moço fez um bom trabalho”.

É um episódio interessante não apenas por ilustrar um lado irascível desse personagem frequentemente cultuado como se fosse uma serena força da natureza. Ele também expõe a dicotomia que permeia a carreira dos arquitetos – sobretudo aqueles que constroem sua carreira no Serviço Público: entre indivíduo e coletivo, entre ideal e real, entre propriedade privada e bem público. Afinal, a arquitetura é a própria conformação do espaço público, é o meio de comunicação de massas por excelência. O problema se aprofunda no caso da gestão do Patrimônio Cultural.

O “Sôbre arquitetura” de Lucio Costa, em sua primeira edição, coordenada por Alberto Xavier em 1962 e na edição fac-similar anotada, editada por Anna Paula Canez em 2007

Patrimônio histórico e artístico

Tal como se configurou no Ocidente na Idade Moderna, a patrimonialização de bens corresponde a uma declaração, por órgãos estatais (Iphan etc.) ou supraestatais (Unesco), de seu interesse público. Tais órgãos passam a exercer então uma tutela sobre o objeto de preservação. No caso de bens públicos, isso implica uma instância a mais de gestão. Ao se tratar bens privados porém opera-se uma expropriação de direitos de seu proprietário, que deixa de poder dispor daquele objeto como bem entender. O proprietário de uma casa tombada por qualquer órgão de patrimônio, por exemplo, deixa de poder executar qualquer reforma que lhe altere a feição, perde direito de explorar o potencial construtivo do lote etc.. Evidentemente, tal expropriação se estende – pelo menos em tese – aos autores de determinada obra ou aos titulares de seus direitos autorais. Uma vez tombado um bem, ele deve ou bem ser preservado tal como se encontra naquele momento ou bem ser restaurado de modo a restabelecer sua autenticidade. Nem mesmo a seu autor, por isso, é facultado o direito de alterá-lo livremente.

Leia também:  Nova investida contra o memorial Luiz Carlos Prestes em Porto Alegre

Não é exatamente o que ocorre na prática, é claro. Na realidade – e em todo o mundo – o tombamento de bens culturais é fruto de um jogo de forças políticas e segue submetido a tais forças em sua gestão. Assim, é frequente que bens culturais de extrema relevância não sejam tombados a tempo de salvaguardar suas características antes de alguma grande reforma ou demolição – como noticiamos n’O Partisano no caso da destruição de um casarão em Planaltina, DF, em 2020. Na via inversa, o tombamento muita vez serve de ferramenta de consagração de obras relativamente jovens, com seus autores ainda vivos e atuantes.

Isso ocorreu com grande parte do patrimônio recente de todo o mundo, sistematicamente tombado a partir do pós-guerra e no Brasil não foi diferente, tal expediente foi bastante comum entre os chamados “arquitetos do Patrimônio”, suas obras e de seus colegas. Basta lembrar do próprio edifício do MESP – hoje ameaçado. Projetado em 1937 por Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Carlos Leão e Ernani Vasconcellos a partir de risco original de Le Corbusier, o prédio foi tombado como Patrimônio Nacional em 1948, apenas três anos após sua inauguração. Todos os seus autores – alguns dos quais servidores do próprio órgão – estavam vivos e atuantes na ocasião.

Foi Lucio Costa quem, na qualidade de Diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos, recomendou em 8 de outubro de 1947 o “tombamento preventivo” da Igreja de São Francisco de Assis, projetada por Oscar Niemeyer (1907-2012) sete anos antes, considerando, entre outras coisas “o estado de ruína precoce” em que a obra se encontrava e “o louvor unânime despertado por essa obra nos centros de maior responsabilidade artística e cultural do mundo inteiro, particularmente da Europa e dos Estados Unidos” – o parecer está publicado no livro organizado por José Pessôa Lucio Costa: documentos de trabalho (Iphan, 1999). Niemeyer, vale notar, trabalhara com Lucio Costa regularmente entre sua formatura, em 1935, e o início da década de 1940. Os dois chegaram a projetar a quatro mãos o Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York, em 1939. Desde então a carreira de ambos se retroalimentaria num círculo virtuoso constante.

Desnecessário relembrar que ambos voltariam a trabalhar juntos a partir de 1957, quando Lucio Costa venceu o concurso do Plano Piloto de Brasília e Oscar Niemeyer já estava à frente do Departamento de Urbanismo e Arquitetura da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (DUA/Novacap). No que aqui nos concerne, porém, é mais interessante a patrimonialização do conjunto urbano de Brasília. Antes de vir pelo poder local ou nacional, ela veio dos bancos (Unesco), a partir de reunião do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), realizada em outubro de 1987, que determinou a salvaguarda da “criação urbana de Costa e Niemeyer”. Para usar a expressão de José Pessôa, era “o tombamento de uma ideia”, mais que da coisa concreta. Evidentemente, o mundo das ideias é mais fluido e menos suscetível aos procedimentos de conservação consagrados para aqueles de cal e pedra – ou cimento, aço e tijolos. Tal lógica, de certo modo até então inédita até porque Brasília foi a primeira cidade do século 20 declarada como Patrimônio da Humanidade, teve duas consequências concretas: privilegiou a documentação que registra a concepção dos autores e privilegiou os próprios autores, que seguiram então atuando profissionalmente na cidade.

De fato, a portaria do Iphan nº 314/1992, que regulamenta o tombamento do conjunto urbano de Brasília estabelece no § 3º de seu artigo 9º que “excepcionalmente, e como disposição naturalmente temporária, serão permitidas, quando aprovadas pelas instâncias legalmente competentes, as propostas para novas edificações encaminhadas pelos autores de Brasília – arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer – como complementações necessárias ao Plano Piloto original”. Estabelecia-se ali uma evidente reserva de mercado: o tombamento, que deveria assegurar a prevalência do interesse público sobre o privado na gestão urbana, fazia nada menos que assegurar uma reserva de mercado a seus criadores. Tal prerrogativa foi amplamente exercida sobretudo por Oscar Niemeyer, que deteve praticamente um monopólio na elaboração de edifícios públicos na Capital Federal até seu falecimento vinte anos após a publicação da portaria – muitas vezes garantindo aos clientes institucionais o privilégio da extrapolação de coeficientes construtivos e gabarito máximo dos lotes – como ocorreu com todos os edifícios de tribunais superiores construídos a sul da Esplanada dos Ministérios desde aqueles tempos, o que não teria sido permitido pelo Iphan a nenhum outro arquiteto.

Evidentemente, tal expediente gerou e gera inúmeros problemas – a começar pela intervenção às vezes controversa de Niemeyer em sua própria criação. Profissionalmente ativo após o seu centenário, ele se tornara um dos principais agentes de descaracterizaçãe de suas próprias obras – sobretudo em Brasília. Basta lembrar o gigantesco volume de circulação e serviço projetado pelo arquiteto em 2008 junto à colunata norte do Palácio do Planalto, ou da felizmente malograda tentativa de construção da Praça de Soberania e seu obelisco de 100 metros de altura em plena Esplanada dos Ministérios, em 2009, após viva polêmica que tive a oportunidade de registrar. Se a atuação dos autores originais era questionável, que dizer de seus herdeiros? Recentemente, o bisneto de Oscar Niemeyer, Paulo Sérgio Niemeyer passou a assumir a defesa da execução – a cargo de seu escritório – de estudos e anteprojetos deixados pelo patriarca. Numa história que ainda não terminou, tentou construir o Museu da Bíblia em Brasília, idealizado pelo bisavô em 1989. Além disso, Paulo Sérgio fundou um Instituto Niemeyer à revelia da Fundação Oscar Niemeyer – detentora de seu acervo documental e, aparentemente, dos direitos autorais do arquiteto modernista.

Leia também:  O humor e a ascensão da extrema direita

Já Maria Elisa Costa construiu uma relação profissional bastante próxima a seu pai. Ainda estudante, em 1957, ela chegou a datilografar as folhas com a memória descritiva do Plano Pilôto de Brasília para a entrega no concurso. Graduada arquiteta em 1958, trabalhou no DUA/Novacap durante as obras da capital até 1964, quando emigrou para Paris por quatro anos. De volta ao Brasil, teve seu próprio escritório na década de 1970. Foi a partir de meados dos anos 80 que Maria Elisa voltou a participar das discussões sobre Brasília, quando elaborou com o pai o estudo Brasília 57-85 – a base do documento Brasília revisitada que fundamentaria o tombamento da cidade pela Unesco e pelo Governo do Distrito Federal. Desde então, esteve intimamente envolvida na preservação da capital – sucessivas vezes como consultora e membro de conselhos encarregados de deliberar sobre planejamento urbano e políticas de patrimônio.

José Pessôa (org.). Lucio Costa: documentos de trabalho, 1999

Patrimônio privado

Lucio Costa trabalhou no Iphan de 1937 até sua aposentadoria, em 1972. Naqueles 35 anos, muito do que produziu naturalmente tinha a ver com sua atuação como servidor público. Some-se isso à experiência na Novacap e, depois, chamado a opinar sobre a cidade que projetara e dificilmente se distingue em sua trajetória uma linha de separação clara entre o público e o privado – e isso nos dois sentidos. É uma das consequências de um outro patrimonialismo – aquele identificado por Max Weber e que seria típico das monarquias e, entre nós, infelizmente corrente até hoje. Não apenas, como descrito, os atos administrativos do Poder Público serviram às idiossincrasias e interesses pessoais do arquiteto, como também algo de sua produção particular ganhou ares de coisa pública.

Os textos que escrevera fora do ofício na repartição não poderiam, por exemplo, ser publicados sem seu consentimento. Mas assim o fez não apenas Alberto Xavier como também – provavelmente – o arquiteto mineiro Roberto Sussmann, que em 1961 publicara pela editora da Escola de Arquitetura da Universidade de Minas Gerais o volume Lucio Costa: obras completas, com alguns dos textos que o estudante gaúcho coligiria no ano seguinte.

Com essa interpenetração constante entre público e privado ao longo de toda a sua trajetória profissional, é natural e mesmo compreensível que sua neta tenha se sentido à vontade para autorizar o exílio de seu acervo, de inegável interesse público, como se fosse coisa exclusivamente privada. Era essa a mentalidade dos patriarcas daquela geração e é essa a mentalidade de seus herdeiros. Parece-lhes natural que as folhinhas do Plano Pilôto de Brasília – nada menos que os documentos de criação da capital do país, patrimônio da humanidade – sejam tratadas como notas pessoais de vovô, que por sorte não foram jogadas no lixo de um apartamento caótico em que ele morara sozinho por décadas.

Pior ainda, com a doação do acervo de Paulo Mendes da Rocha e de Lucio Costa para a Casa da Arquitectura, alguns membros da comunidade de arquitetos e pesquisadores se apressaram em celebrá-la. “Finalmente está sendo doado para a iniciativa privada, já que os acervos públicos brasileiros não estão à altura de tal tarefa”. Como já foi dito no primeiro artigo dessa série, trata-se evidentemente de uma inverdade. Há vários acervos públicos capazes de cumprir tal tarefa, e a Casa da Arquitetura de Portugal, ela mesma, é custeada pelo Estado português e pelas municipalidades da região.

O argumento se aprofunda ainda, frequentemente numa lógica privatista suicida, segundo a qual somente empresas e fundações privadas seriam capazes da preservação adequada de documentação histórica. Desnecessário ponderar que toda empresa fale, toda fundação fica sem patrocínio e que as instituições estatais são as únicas capazes de realmente oferecer alguma garantia de guarda de longo prazo. A grande e efetiva consequência do argumento antiestatal, neste caso, é reforçar o ataque que o atual governo promove a todas as instituições e serviços públicos.

Roberto Sussmann (org.). Lúcio Costa: obras completas, 1961

Patrimônio público

O interesse público do acervo de Costa se dá em diversas instâncias e por diversos motivos. O primeiro, mais evidente: documentos de obras públicas – ou relativos a obras e estudos feitos no âmbito do serviço público – pertencem ao Poder Público. Isso se aplica diretamente, por exemplo, aos originais do Plano Pilôto de Brasília, cujo edital de concurso rezava expressamente em seu item 17: “Todo trabalho premiado passará a ser propriedade da Cia. Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, após o pagamento do prêmio estipulado, podendo dele fazer o uso que achar conveniente”. Aplica-se ainda aos textos, levantamentos e projetos elaborados no âmbito de seu trabalho junto ao Iphan e à Novacap.

Lucio Costa. Brasília, cidade que inventei, 1991

O segundo nível de interesse público se configura, como sugerido acima, em todos os documentos relativos à concepção e alterações em bens tombados como Patrimônio Cultural. Isso porque, em grande medida, no caso do patrimônio recente, tomba-se a ideia de obras ainda não sedimentadas pelo passar do tempo. Os documentos relativos à concepção da obra são parte da conformação de tal ideia, que de resto sempre foi fecundada pela realidade preexistente e de sua própria expressão gráfica. Além disso, conforme já apontamos quando do caso do exílio do acervo de Paulo Mendes da Rocha:

No caso da arquitetura recente em geral e da moderna em particular, os desenhos desempenham papel diferenciado na própria valoração da obra como bem cultural. A expressão gráfica do autor, técnica ou artística, é veiculada em revistas e livros junto a fotos da maquete e da obra, tornando a edificação potencialmente conhecida em todo o mundo. A partir dessa circulação, típica de nossa época e hoje amplificada pelos portais de arquitetura na internet, a obra adquire importância para um público que vai muito além daqueles que vivem no local em que foi construída e dela usufruem em seu dia-a-dia. Tal fenômeno permitiu, por exemplo, que casas em locais afastados se tornassem centros de peregrinação para arquitetos – caso da Casa de Canoas de Niemeyer, da Villa Mairea de Alvar Aalto ou da Villa Savoye de Le Corbusier. Quando uma casa como essas é tombada, patrimonializada, muito se deve à reprodução e difusão desse material documental. […] Os desenhos dos arquitetos modernos são a conexão do autor com a obra construída e por isso um instrumento dialético em que se situa, por assim dizer, a alma de seu labor.

Por fim, dada a importância de Lucio Costa para a arquitetura brasileira em particular e para a constituição de uma boa fatia de nossa identidade nacional, o conjunto do acervo pode ser declarado de interesse público por meio do tombamento de algum órgão de patrimônio brasileiro, como o próprio Iphan. O acervo tombado então passa a submeter-se ao decreto-lei 25/1937, que estabelece em seu artigo 14 que “a coisa tombada não poderá sair do país, senão por curto prazo, sem transferência de domínio e para fim de intercâmbio cultural, a juízo do Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. Por interpretação em abstrato da legislação de tombamento, o Iphan pode declarar que todos os acervos relativos a bens tombados passam a ser igualmente protegidos, submetendo à tutela automática do órgão todos esses documentos. Evidentemente, a Secretaria de Cultura do Distrito Federal, o Governo do Estado do Rio de Janeiro ou a prefeitura da capital fluminense podem proceder do mesmo modo, multiplicando-se as instâncias de proteção.

Leia também:  O surrealismo do fantástico

Tal declaração também pode acontecer – em abstrato ou para casos concretos – por determinação do Conselho Nacional de Arquivos, conforme também já se disse no caso do acervo de Paulo Mendes da Rocha:

[…] em arquivística, os chamados acervos de guarda permanente têm status similar ao dos bens culturais tombados pelo Iphan, e portanto aplicam-se também aos documentos relativos a tais bens, por constituírem que parte importante de seu processo de valoração. A lei da Política Nacional de Arquivos Públicos e Privados estabelece que em seu artigo 12 que “os arquivos privados podem ser identificados pelo Poder Público como de interesse público e social, desde que sejam considerados como conjuntos de fontes relevantes para a história e desenvolvimento científico nacional”. O artigo seguinte da mesma lei, no que aqui nos concerne, vai um pouco mais longe: “os arquivos privados identificados como de interesse público e social não poderão ser alienados com dispersão ou perda da unidade documental, nem transferidos para o exterior” tornando claro ainda que “na alienação desses arquivos o Poder Público exercerá preferência na aquisição”

Não se advoga aqui, é claro, o confisco de acervos, a expropriação arbitrária etc.. É evidente que todo autor de obras de interesse público e seus descendentes têm o direito de guardá-los, controlar seu uso, sua publicação. É líquido inclusive o direito de aferir lucros com tal exploração. Entretanto, é dever dos depositários desses documentos conservá-los e mantê-los no no território a que se referem. É dever das instituições, por outro lado, fomentar a catalogação, a digitalização e o acesso a eles.

Pode ser alegado que os atos de tombamento não aconteceram antes do exílio do acervo de Lucio Costa. Mas será que a família do arquiteto – experiente gestora de seu acervo, conforme demonstramos no primeiro artigo desta série – pode se declarar ignorante do interesse público inegável dos documentos que enviou para Portugal sem consulta ao Iphan ou a qualquer órgão de tutela patrimonial – ou pelo menos sem anunciar publicamente que não tinha mais como gerir o acervo? Afinal, por que a publicação da doação foi feita somente após o fato consumado? Sejam quais forem as respostas, urge ao Poder Público agir para repatriar essas obras, que devem ser consideradas bens culturais tombados. Urge, sobretudo, publicar com clareza normas que vedem expressamente tais práticas para que não se repitam – quer pelas mãos dos próprios autores, quer pela mão de seus descendentes.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

No primeiro artigo de nossa trilogia, explicamos que não há qualquer razão para alegar que a própria Casa de Lucio Costa ou o conjunto dos arquivos e bibliotecas brasileiras não tinha condições de guardar com segurança e eficiência os 11 mil documentos enviados à Casa da Arquitectura de Matosinhos, argumentamos ainda que a presença dos documentos físicos é essencial para a consulta de pesquisadores e para a realização de exposições, pois sua materialidade transmite um tipo de informação inapreensível pelas reproduções de imagens digitais. No terceiro e último artigo desta série, trataremos da relação de Lucio Costa com o estrangeiro em geral e Portugal em particular, e por que o exílio de seu acervo é contraditório com seu próprio pensamento.

2 comentários

  1. Prezado Danilo,

    Suas colocações realmente devem ser feitas. Deve-se exigir responsabilidade social dos proprietários e ou gestores de acervos como do Lucio Costa, do Paulo Mendes da Rocha e, quem sabe amanhã, de tantos outros.

    Contudo quais garantias o poder público daria a sociedade de que esse material permaneceria em boas condições e em exposição?
    O CAU se colocaria presente?
    As associações (, SINASP, FNA, IAB, ASBEA, ABEA, ABRAP, FENEA…) se envolveriam de fato com isso? ,
    A academia privada (digamos assim) se mostraria mais ativa, não só com pesquisa, mas com bolsas e afins?
    A Comunidade pública abriria os portões de seus castelos a um projeto maior?
    Os arquitetos e demais profissionais se uniriam em prol de um bem maior?
    A responsabilidade não seria de toda a comunidade de Arquitetura, no sentindo amplo da palavra contendo áreas correlatas, como pregava Artigas?.
    Enfim, na minha singela opinião, a responsabilidade seria de todos nós.

Deixe uma resposta