“Webcomunismo”, “webmacartismo”: uma polêmica sem diálogo

Um espectro ronda as redes sociais – o fantasma do “webcomunismo”. Diversas forças online unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: os perfis anônimos, as páginas apócrifas, os blogs pragmáticos, o ator global

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por Danilo Matoso

Um espectro ronda as redes sociais – o fantasma do “webcomunismo”. Diversas forças online unem-se numa Santa aliança para conjurá-lo: os perfis anônimos, as páginas apócrifas, os blogs pragmáticos, o ator global. Que militante de partido comunista não foi acusado de webcomunista por seus adversários que almejam o poder?

Essa paródia das primeiras palavras do célebre Manifesto Comunista seria apenas uma piada, se não se referisse a um fenômeno de outra ordem. A pecha de “webcomunista”, adotada por alguns setores da militância do PT, é a chave para desqualificar todo e qualquer militante de partidos como PCB, PSOL, UP e, talvez, PSTU. É evidente: um “webcomunista” não seria um verdadeiro comunista, na visão desses detratores, mas uma espécie de charlatão que se dedica a militar exclusivamente nas redes sociais.

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A caça aos comunistas online não é de hoje, mas nessa semana parece ter atravessado um certo limite do razoável. Passaram a ser comuns nas redes passagens como “PCB é tão inimigo da gente quanto o Bolsonaro” ou “Vou me juntar com a polícia para colocar esses merdas para correr”. Na última sexta (18) o ator Zé de Abreu, árduo militante petista no Twitter, postou “Melhor Mário Frias” ao ler a sugestão do nome de Jones Manoel (PCB) para o podcast podpah. Na manhã de hoje, um perfil identificado como petista escreveu sob uma foto do historiador comunista: “tu acha que esse canalha fedorento representa alguma coisa para classe trabalhadora? só se for pros playba arrombados de faculdade”. Ambos os ataques ecoam o episódio de racismo em que o Secretário Especial de Cultura do governo Bolsonaro, Mário Frias, afirmou que não conhecia o intelectual negro, mas achava que ele precisava “de um bom banho”.

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A zueira não tem limites?

Começou como “zueira” da militância mais experiente com aqueles de uma geração que cresceu usando as redes sociais como ferramenta de formação, agitação e propaganda – e naturalmente as usa assim. É em certa medida uma crítica justa: para além disso, é preciso organizar concretamente a classe trabalhadora em seus locais de trabalho e moradia. Com o tempo, porém, o termo se estendeu a jovens comunicadores marxistas de grande alcance, como Jones Manoel, Sabrina Fernandes, Laura Sabino ou Rita von Hunty.

Nesse ponto já havia algum exagero. Não apenas porque essas figuras possuem também atuação militante real em partidos e movimentos sociais, como também porque, dentro dessas organizações, a formação, a agitação e a propaganda são atividades militantes que complementam o trabalho de base real. A generalização ficou realmente primitiva quando o termo passou a se referir a todo e qualquer militante daqueles partidos relacionados. Em meio à pancadaria virtual, até quadros da fibra de um José Paulo Netto, militante histórico do PCB, passaram a ser desqualificados como webcomunistas.

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Curiosamente, indagados, os detratores não revelam quem seriam então a seu ver os “verdadeiros comunistas” do presente. Referem-se aos heróis das revoluções da Rússia, de Cuba ou dos países africanos. Claro: a figura histórica é pronta e acabada. A ausência de materialidade no argumento – não há, de fato, um verdadeiro comunista hoje – parece refletir um fatalismo comum na defesa do reformismo e do adesismo. Não há condições hoje de realizar uma revolução, logo a política revolucionária é inviável, logo não há nenhum legítimo partido ou líder revolucionário. Para usar o bordão da Dama de Ferro, matriarca do neoliberalismo global: “Não há alternativa”.

É claro que esse é um argumento falso. A história é dinâmica, as condições não são estanques. Fazer revolução depende essencialmente de pessoas e organizações que queiram fazê-la e pelo menos tornem clara de antemão essa intenção. Além disso, há mais de um século é pacífico entre comunistas que é possível e mesmo necessário fazer política institucional com orientação revolucionária. Atacar e descartar as que existem redunda então em anticomunismo puro e simples.

Como ainda pega mal na esquerda brasileira dizer “sou anticomunista” (algo comum nos Estados Unidos, por exemplo), saem-se com essa de: “você é apenas um webcomunista” – o que é na verdade um arremedo da célebre pecha da direita aos “comunistas de iPhone”. É somente uma crítica anticomunista e de direita, enfim.

Falta açúcar e afeto

Infelizmente, esses grupos de detratores dos comunistas não pararam nesse termo. Dão-lhes o tratamento dispensado a inimigos: a substituição do nome por um apelido ou corruptela (uma chave, por exemplo, é chamar Jones Manoel de “Xones”); a extração de frases sem contexto, trechos de textos confusos, prints antigos de redes sociais, ou cortes de vídeo claramente contraditórios ou montados para parecê-lo. Vale tudo para pegar um deslize, um erro, uma frase ambígua do passado e tratá-la como se fosse a ponta de lança da política do sujeito. Algo como a insistência da direita com os deslises de Dilma ou de Lula. Afinal, políticos falam muito, e quem fala demais sempre fala de vez em quando alguma bobagem. Quem nunca?

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Mas, sobretudo, predomina nessa querela o uso de espantalhos. Nessa falácia clássica, substitui-se o objeto da crítica por uma descrição parcial e débil do mesmo. Critica-se a imagem da coisa projetada pelo próprio crítico, e não a coisa em si. Por exemplo: o estudante universitário é projetado como um esquerdista idealista, o seu professor é um intelectual descolado da realidade, o comunista é ambos: todos fazendo cirandas, clamando por lugar de fala, linguagem neutra etc. – todas alegorias não de uma esquerda marxista, mas de um progressismo liberal estadunidense.

Não apenas os comunistas são travestidos de espantalhos liberaloides para serem atacados. Ultimamente, os movimentos antirracista, feminista, LGBTQI + etc. foram todos travestidos de “identitarismo” – em sua vertente liberal: aquela cujo sujeito é o indivíduo, aquela que trata dessas lutas de modo independente da luta de classes a que estão atreladas. Em nome do que seria uma justa crítica ao “identitarismo burguês”, hoje se ataca indistintamente, por exemplo, o feminismo.

Um exemplo concreto recente foi o ataque ao cancelamento identitário da música Com açúcar, com afeto, de Chico Buarque, a partir de uma matéria com a manchete distorcida: “Chico Buarque decide não cantar mais música criticada por feministas”. Na realidade, o músico decidiu por iniciativa própria retirar a canção do repertório de seus shows há 30 anos. Não houvera cancelamento algum e não havia notícia a ser dada: ele simplesmente contara um fato passado num filme que acabara de ser lançado.

Sectarismo gera sectarismo

É claro que esse tipo de ataque não apenas desestimula o diálogo, mas estimula e amplifica os setores esquerdistas mais sectários também, abafando as vozes abertas ao diálogo. Todo ataque dessa natureza tem seu correspondente do outro lado: os apelidos de “webmacartistas”, “webpelegos”, “webdireitistas”, os recortes de falas infelizes das lideranças, a rememoração das alianças petistas com as direitas e, sobretudo, a lembrança de que o PT hoje propõe que José Geraldo Alckmin concorra pelo PSB à vice-presidência na chapa de Lula. Convenhamos que, embora possa-se chegar de fato a uma composição com tal feição em agosto, o papel dos campos populares hoje é puxar o debate para o seu lado, e não aceitar passivamente o que as direções propõem pela cúpula.

O caso é que, com o tipo de ataque que se vê, a militância petista abafa justamente as vozes mais dispostas ao diálogo entre os comunistas e fortalece os setores mais dispostos ao esquerdismo distante da política institucional. Afinal, é isso o que se estimula, e não o contrário. Chega a ser curioso que o mesmo PT que é capaz de ouvir todas as vozes internas e fazer todas as alianças externas seja tão intolerante com a própria esquerda.

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Com a escalada de animosidades de parte a parte, estimula-se assim tudo menos o diálogo, o debate frutífero e a oposição construtiva entre forças do mesmo campo – o antibolsonarismo. Ao contrário, os ataques de viés racista dessa semana mostram que alguns setores estão incorporando os valores e métodos bolsonaristas, e isso sim parece bastante grave. Afinal, não podemos nos tornar aquilo contra o que lutamos.

Hora de um chamado ao diálogo?

Talvez seja o momento de um chamado à ordem por parte das lideranças partidárias – sobretudo do PT em nome do qual falam – que devem manifestar claramente o repúdio ao racismo, à misoginia, à homofobia, ao anticomunismo e mesmo a um antissemitismo que levantou a cabeça recentemente.

Não é possível que militantes do PT não saibam reconhecer valor e legitimidade à militância de um jovem negro pernambucano, filho de uma empregada doméstica, que conseguiu estudar, cursar mestrado e se tornar um dos grandes comunicadores da esquerda nacional. Se o fez, foi em parte graças a algumas políticas inclusivas do PT.

Jones Manoel deveria ser considerado um garoto-propaganda do petismo e não tachado sumariamente de “antipetista” (até porque suas críticas ao Partido são relativamente moderadas). Se Jones é fruto de políticas públicas do PT e da militância no PCB, é justamente isso que dá a ele e a outros de sua geração condições de alavancarem uma superação dos ciclos anteriores, rumo a políticas cada vez mais populares e revolucionárias.

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Para além das polêmicas virtuais, talvez seja hora de um encontro entre as lideranças dos partidos de esquerda, com vistas a uma elaboração estratégica mais unitária e contundente contra o governo fascista de Bolsonaro. Tal unidade não significa, necessariamente, apoio incondicional de partida à candidatura de Lula – algo sem efeito prático, na verdade, se não se pretende compor governo. Ela pode passar também por multiplicar as vozes antifascistas durante a etapa de campanha.

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