Jornalistas da imprensa corporativa global tornam aparentes as estruturas do racismo que domina a narrativa hegemônica sobre conflitos internacionais

por Danilo Matoso
Uma correspondente da rede inglesa ITV fala ao vivo em Przemysl, Polônia, de onde cobre o conflito na Ucrânia. Sua voz está visivelmente embargada: “Agora o impensável aconteceu com eles, e isso aqui não é um país em desenvolvimento, do Terceiro Mundo, isso aqui é Europa”. Num tom igualmente consternado, o experiente correspondente da rede estadunidense Charlie D’Agata falava ao vivo de Kiev: “com todo o respeito, isso aqui não é um lugar como o Iraque ou o Afeganistão, que viram por décadas conflitos violentos. Aqui é uma cidade relativamente civilizada, relativamente Europeia – e tenho que escolher essas palavras cuidadosamente – onde espera-se que esse tipo de coisa não vai acontecer”.
Tratam-se aqui, evidentemente, de racismo e xenofobia aflorando profusamente pelos lábios daqueles encarregados de apurar e interpretar fatos históricos para a grande imprensa corporativa global. Não são deslizes, não são meros atos falhos, mas uma espécie de consciência coletiva que se expressa aqui de modo sistemático. A expressão do racismo se multiplica, explode, em diversos canais.
“Civilized”
pic.twitter.com/AiU7uVmjMr— Imraan Siddiqi (@imraansiddiqi) February 26, 2022
Na versão em inglês da rede árabe Al Jazeera, o âncora comenta as cenas de um amontoado de pessoas tentando entrar num trem para fugir da Ucrânia: “o que é mais tocante, só de ver o modo como se vestem, é que é uma gente bem de vida, de classe média, eles não são evidentemente aqueles refugiados tentando sair de áreas do Oriente Médio, numa grande guerra, não é gente tentando sair de áreas no norte da África, eles se parecem com qualquer família europeia, que poderiam ser seus vizinhos”.
Na estação francesa BFM-TV, o comentarista careca, de barba loira e olhos azuis desabafa, ao ver a fuga de milhares de pessoas de Kiev com a eclosão do conflito: “não falamos aqui de sírios que fogem de bombardeios sobre o regime sírio apoiado por Putin, falamos de europeus fugindo em carros que se parecem com os nossos para salvar suas vidas”.
“We’re not talking here about Syrians fleeing the bombing of the Syrian regime backed by Putin, we’re talking about Europeans leaving in cars that look like ours to save their lives.”
Just when you thought you’ve seen it all in this world. Beyond belief. pic.twitter.com/8COA7arGP5
— Rayane Moussallem (@RioMoussallem) February 26, 2022
Colunista do jornal britânico The Telegraph, o conservador Daniel Hannan publicou um artigo intitulado “A monstruosa invasão de Vladimir Putin é um ataque à própria civilização”, cujo tweet ressalta: “eles se parecem tanto conosco. Isso é o que torna tudo tão chocante. A guerra não é mais algo que ocorre a populações empobrecidas e longínquas. Pode acontecer com qualquer um”.

A sisuda TV estatal inglesa BBC entrevistou ao vivo o ex-procurador-geral ucraniano, David Sakvarelidze, que se diz “emocionado” por estar vendo “um povo europeu, de olhos azuis e cabelos loiros, ser morto”, no que recebe um afago do âncora inglês que diz “entender e respeitar a emoção” do jovem político.
“It’s very emotional for me because I see European people with blue eyes and blonde hair being killed”pic.twitter.com/mKVtEY4IBC
— Petty Is Praxis (@rtyson82) February 26, 2022
Afinal, é tudo gente de bem
Talvez não por acaso Sakvarelidze ascendera ao cargo após golpe de estado de 2014 promovido pelos Estados Unidos conhecido como Euromaidan. A violenta rebelião levara ao poder Petro Poroshenko e um regime alinhado com Washington e a Otan, externamente, mas que sobretudo se tornaria célebre por criminalizar das organizações populares – sobretudo as socialistas e comunistas –, por letigimar de milícias nazistas, como o batalhão Azov, e por ser leniente com uma política de extermínio promovidas por esses grupos. A opressão era tamanha que se tornou um modelo para extremistas de direita de todo o mundo – inclusive entre nós onde “Ucranizar o Brasil” virou a palavra de ordem de figuras como Sara Giromini ou Daniel Silveira.
Está em curso hoje uma campanha deliberada operada pela imprensa corporativa com finalidades políticas claras: demonizar o ataque russo como um crime contra a humanidade, enquanto todos os demais conflitos e abusos – de seus países e do regime ucraniano apoiado por eles – seriam perdoáveis. É o famoso “jornalismo de guerra”. Desde o primeiro dia de conflito, o uso das imagens de uma senhora loira e de olhos azuis ferida, com o rosto ensanguentado, correu as manchetes dos principais jornais do mundo visando a criar justamente esse efeito de empatia com uma certa camada das classes média e alta ocidentais – sobretudo os formadores de opinião. A imagem do conflito corrente na Ucrânia deveria ser a de uma civil inocente ferida, e não da milícia neonazista do Batalhão Azov, que nos últimos oito anos queimou pessoas vivas e matou ativistas antifascistas a pauladas.
São jornalistas que, enfim, sentem empatia por um regime neonazista que “se parece com eles”, mas que não sentiram qualquer empatia pelos milhares de mortos e perseguidos por aquele mesmo regime, ou pelos imigrantes negros residentes na Ucrânia estão sendo impedidos de embarcar em trens e entrar em filas para deixar o país em guerra. Menos comoção ainda tiveram pelas dezenas de guerras, pobreza, miséria promovidas pelos chamados “países civilizados” em todo o restante do mundo, que afinal não é povoado por “gente de bem” como eles. Vale lembrar inclusive que, na mesma semana em que a Rússia bombardeava os aeródromos militares ucranianos, os Estados Unidos bombardeavam a Síria a Somália e o Iêmen, sem qualquer consternação similar da parte dos emocionados âncoras de suas emissoras de televisão.
O racismo estrutural que se torna aparente pelas vozes dessa turma não é muito diferente daquele que sustenta as redações da imprensa corporativa brasileira, algo que já aflorou nas clássicas de “gafes” racistas de um William Waack ou de um Boris Casoy. Não é por acaso que recentemente a Folha de S. Paulo iniciou uma pequena campanha de predicação da existência do racismo reverso – útil pelo menos para tornar evidentes os ativistas do racismo para além dos bolsonaristas. A opressão, a exploração, a miséria ou o extermínio de qualquer não-branco é algo a ser aceito e normalizado – e exemplos dessa conduta não são poucos. A indiferença do jornalista brasileiro diante da chacina do Jacarezinho não é muito diferente daquela do âncora gringo diante dos bombardeios no norte da África.
É questão de tempo, no caso da Ucrânia, até que o mesmo tipo de “deslize” venha a ocorrer entre alguns jornalistas da imprensa corporativa brasileira. Cabe aos jornalistas conscientes denunciar essa campanha e evitar suas armadilhas.
Artigo revisado pela última vez, com alterações significativas, às 23h05 de 27/2/2022.
Como Engels dizia , o uso da indústria de emoções a serviço da burguesia liberal.
[…] suposto boicote ao povo russo é talvez o lado mais lamentável do episódio, só comparável à explosão de comoção racista por parte da imprensa europeia e estadunidense quando eclodiu o conflito: “oh, céus, é uma […]
[…] agressora. Em seguida, os jornalistas europeus cobrindo o evento fizeram questão de mostrar que o apoio tinha um viés racista: a guerra era inadmissível porque as vítimas eram brancos de olhos azuis, ao contrário das […]