Ucraniza, Alemanha: direita quer demolir monumento comunista em Berlim

por Danilo Matoso

Na última semana, o diretório em Berlim União Cristã Democrática da Alemanha (CDU) — partido de Angela Merkel —, propôs a demolição de um colossal monumento em homenagem ao líder comunista Ernst Thälmann (1886-1944). Seu material seria vendido como entulho para levantar recursos para apoiar a Ucrânia no conflito em andamento com a Rússia.

É um passo a mais rumo a uma renazificação da Europa. Perseguir os comunistas, seus símbolos, suas organizações, está no cerne do fascismo. Ao atacar a memória dos comunistas alemães, ataca-se um símbolo da resistência dos trabalhadores daquele país contra o regime de Adolf Hitler. O direcionamento dos recursos à chamada “resistência” ucraniana, por outro lado, pode ser interpretado como um incentivo às milícias nazistas.

Ernst Thälmann e Willy Leow marchando em ato da RFB em Berlim, 1927. Foto: Bundesarchiv, Wikimedia Commons

Thälmann e os Vermelhos

Ernst Thälmann foi talvez o mais proeminente líder no período entreguerras do Kommunistische Partei Deutschlands (KPD), o Partido Comunista da Alemanha, que dirigiu entre 1925 e 1933 – quando foi preso pela Gestapo, a polícia secreta nazista.

Combatente da Primeira Guerra Mundial, Thälmann criou a tropa paramilitar de autodefesa do KPD, a Roter Frontkämpferbund [RFB, Aliança Vermelha de Combatentes] — conhecida por sua disciplina e efetividade no combate às milícias nazistas. A organização foi dissolvida em 1929 por ordem do governo alemão, dando origem à também efetiva, mas fragmentária Antifascistische Aktion [Ação Antifascista] cujo símbolo com bandeiras vermelhas ainda simboliza o movimento Antifa atualmente.

A importância da RFB na luta contra o fascismo não deve ser subestimada. Com apoio da União Soviética, foi a maior e mais organizada força efetiva de combate às milícias fascistas na Alemanha antes da ascensão de Hitler ao poder e só foi derrotada porque se opôs ao governo de frente ampla do Sozialdemokratisches Partei Deutschlands [SPD, Partido Social-Democrata da Alemanha], que Thälmann caracterizava como “social-fascista”, numa política de oposição duramente criticada em conhecidos textos de Trotsky, por exemplo. Fato é que o SPD já entregara à morte pelas mãos dos nazistas ninguém menos que Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, os fundadores do KPD. A mesma República de Weimar dissolveria a RFB.

Embora a maior parte de seus membros não fosse organizada no KPD, a Rote era hierarquizada e organizada: tinha armamento, marinha, juventude, movimento de mulheres, imprensa e um calendário intenso de encontros e manifestações. Eram comuns os conflitos armados entre a RFB e a Sturmabteilung (SA) nazista nas ruas das cidades alemãs, e diversas células nazistas foram debeladas pelos vermelhos.

Em 1926, Thälmann fundou uma Força Armada Internacional Proletária a partir da RFB, que chegou a criar grupos de autodefesa e combate “contra a guerra imperialista” na Suíça, Inglaterra e Áustria: seu objetivo era construir um verdadeiro Exército Vermelho em toda a Europa, capaz de fazer uma revolução em todo o continente. Quando foi dissolvida, em 1929, a RFB contava com nada menos de 130 mil membros.

Encontro da RFB em Berlim, 1928. Foto: Bundesarchiv, Wikimedia Commons

Legado vermelho

Preso em 1933, com a ascensão do Partido Nazista ao poder, Thälmann amargou 12 anos na solitária em Bautzen, sofrendo todo tipo de tortura, até ser transferido para o campo de concentração de Buchenwald em 1944, onde seria fuzilado e cremado por ordem do próprio Hitler. Não poucos membros da RFB se tornariam importantes dirigentes da Alemanha Oriental após a guerra, como o Secretário Geral Erich Honecker (1912-1994) ou o ministro Erich Mielke (1907-2000), o que garantiria o reconhecimento histórico da importância do líder comunista após sua morte.

Diversos logradouros e edifícios públicos ainda levam seu nome não apenas na Alemanha, mas também em lugares tão díspares quanto o Vietnam ou Mongólia. Estátuas e monumentos em cidades alemãs como Weimar e Berlim também foram erigidas em sua honra. A cidade ucraniana de Ostheim, no Oblast de Donetsk, foi rebatizada de Telmanove em sua homenagem — uma honraria revogada pelo parlamento ucraniano 2016, após o golpe do Euromaidan, quando passaria a se chamar Boikivske. A população local não aceitou a nova denominação.

Na capital alemã foi erigido, entre 1981 e 1986, um gigantesco busto em homenagem ao comunista num parque que leva seu nome no bairro de Prenzlauer Berg, antiga Berlim Oriental. É um bronze de mais de 50 toneladas esculpido por Lev Kerbel (1917-2003) — artista ucraniano autor de centenas de esculturas de Marx, Lênin e Gagárin enviadas como presentes pela URSS a outros países. Este é justamente o monumento que a CDU quer destruir. Como se vê, não é de hoje a relação entre o legado do comunista alemão e a Ucrânia.

Lev Kerbel, Monumento ao centenário de Ernst Thälmann em Berlim, 1986. Foto: Spree Tom, Wikimedia Commons

As milícias ucranianas e seu armamento

O atual regime ucraniano é fruto de um golpe de Estado perpetrado em 2014, o Euromaidan – uma Revolução Colorida financiada e organizada pelo imperialismo. Desde então, um dos pilares institucionais do país são as milícias nazistas armadas até os dentes — como o famigerado Batalhão Azov. Desde então todos os partidos e organizações socialistas ou comunistas foram perseguidos, ou colocados na ilegalidade; seus líderes foram presos ou assassinados, como no caso do massacre de Odessa, em que dezenas de ativistas antifascistas foram mortos e queimados dentro de um edifício.

Por obra do Ocidente e certa conivência russa, a Ucrânia, entreposto histórico entre a Rússia e a Europa, acabou se tornando um celeiro nazista global — e prova bastante palpável disso era a palavra de ordem bolsonarista recorrente nos últimos anos: “ucraniza Brasil”. O apoio ao regime ucraniano naturalizado na Europa, por isso, tem um viés ideológico claro.

Além disso, o envio de armas e munições táticas àquelas milícias promete ter efeito devastador na região a longo prazo – algo similar ao ocorrido quando os Estados Unidos armaram as milícias fundamentalistas islâmicas no Oriente Médio.

Novamente o nazismo, novamente os vermelhos?

Inicialmente o apoio ao regime de cariz fascista da Ucrânia tinha um viés supostamente pacifista contra a Rússia agressora. Em seguida, os jornalistas europeus cobrindo o evento fizeram questão de mostrar que o apoio tinha um viés racista: a guerra era inadmissível porque as vítimas eram brancos de olhos azuis, ao contrário das outras promovidas pelas próprias potências europeias na África ou no Oriente Médio.

Em poucas semanas iniciou-se um bizarro movimento de russofobia generalizada, com boicotes xenófobos indiscriminados a tudo o que tivesse origem país governado por Vladimir Putin: literatura, música, bebidas, pessoas. É algo bastante parecido com a demonização de judeus e comunistas pelo regime nazista, ou com o macartismo estadunidense que se desdobrou na Doutrina de Segurança Nacional nos países americanos. O fascismo parece ter saído do armário de vez.

A proposta de demolição de monumentos em homenagem a heróis de guerra comunistas talvez não vingue, pois os monumentos da era soviética são patrimônio cultural nacional. Em todo caso, ao normalizar esse tipo de proposta, a direita alemã parece avançar um passo a mais na ascensão de um novo Reich no Velho Continente.

Como tudo traz em si sua contradição, a consequência natural será uma radicalização das esquerdas europeias — hoje em grande medida tão liberalizadas quanto as dos Estados Unidos. O futuro próximo será turbulento nos países centrais do capital e o surgimento de uma nova Roter Frontkämpferbund pode ser tão mais possível quanto mais se armem as milícias nazistas. Esperemos que o governo da social-democracia não volte a proscrevê-la, sob pena de termos, 100 anos depois, algo bastante aterrador de volta ao poder na Alemanha.

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