Bolsonaro compara Lula com Jesus e reforça a dúvida: e se não houver nenhuma estratégia? E se o mundo, por acaso e por destino, é governado por asnos?

por Danilo Matoso
Na última segunda (19), como de costume, o presidente da República se deteve diante a claque que se prostra diariamente à entrada do Palácio da Alvorada. Estava bem-humorado e vivaz. Gesticulava. Resolveu filosofar: “tem uma passagem bíblica, se não me engano, quando Jesus dividiu o pão.” Sorriu com o canto da boca, olhou para o horizonte como quem aprecia a ideia. Prosseguiu: “depois ele deu uma desaparecidinha, né? Daí o povo foi atrás. Foi atrás de Jesus, para quê? Para mais benefícios pessoais.” Entre grave e conformado, ergueu as sobrancelhas e explicou a parábola, arrematando com um voto de fé: “fizeram a ligação com o PT dando bolsa isso, bolsa aquilo? É o ser humano que tá aí. A Bíblia, pelo que eu sei, eu sou cristão, é a caixa-ferramenta do cristão, não é isso?”
Sim, ele comparou seu maior adversário político, Luiz Inácio Lula da Silva, a Jesus Cristo. Gostaríamos de pensar que ele foi inspirado na imagem de uma matéria d’O Partisano, publicada na última semana. Mas vamos convir que, se ele fosse nosso leitor, ou bem teríamos mais público ou bem estaríamos na “ponta da praia.”
Crucificando o inimigo
Católico fervoroso, eleito com amplo apoio evangélico, o ex-militar meteu um “Deus acima de todos” no slogan de seu governo, completando o bordão “Brasil acima de tudo” – transcrito diretamente do nazista Deutschland über alles (“Alemanha acima de tudo”). Supostamente, para Bolsonaro, qualquer ação de Jesus deveria ser tomada como modelo. Por duas vezes, nos evangelhos, Cristo multiplicou os pães. Na última ceia, compartilhou o pão entre os apóstolos. É a solidariedade que caracteriza o pensamento e a ação socialista desde aqueles tempos. Sabe-se que Bolsonaro e seus apoiadores são hipócritas que não praticam o que pregam, mas daí a assumir publicamente que não concorda com a fraternidade cristã vai uma grande distância.
Aparentemente, Bolsonaro foi incapaz de fazer uma associação de ideias coerente que o favorecesse. Não juntou lé com cré. Tentou criar uma parábola mas fez uma narrativa que enaltece seu adversário. Não formulou um raciocínio lógico, uma narrativa coerente. Enfim: Bolsonaro foi, mais uma vez, burro. Muito burro. Ele não sabia o que dizia.
A passagem se soma a diversas outras burrices já proferidas na torrente fecal que é o pensamento da família Bolsonaro. Na semana passada, Maria Bopp anunciou que um tweet de Eduardo Bolsonaro fez os cientistas vibrarem com a descoberta da “burrice em seu estado mais puro,” com atestado de “100% burro de doer” – após uma progressiva lapidação da burrice pela família presidencial. O fenômeno se deu quando o rebento Zero-Três elucubrou: “Lockdown é o oposto de distanciamento social. No lockdown as pessoas são condenadas a ficarem confinadas em casa, aumentando a proliferação do vírus.” Incomodado com a conquista do pupilo, poucos dias depois o patriarca da família, com o episódio do Jesus petista, fez questão de mostrar que menos sabe el diablo por viejo que por diablo.
A burrice em seu estado mais puro pic.twitter.com/3vRmtvHCT6
— maria bopp (@mariabopp) April 14, 2021
E se for só burrice?
A burrice patente de Bolsonaro coloca em dúvida a crença corrente de que suas declarações polêmicas sejam parte de uma cuidadosa e calculada estratégia política urdida à luz da doutrina do lobbista estadunidense Steve Bannon. Segundo o guru de marketing político de Trump, “o personagem deve dar declarações diárias, polêmicas, mesmo que absurdas e contraditórias, com um único objetivo, o de disputar espaço no noticiário.”
Reza ainda o conspiracionismo propalado diariamente nas redes de esquerda por outro lado, que tudo é diversionismo. “Enquanto você discute/faz/presta atenção em algo, o inimigo está passando não sei o que no Congresso.” Claro. Enquanto fazemos alguma coisa, muitas outras acontecem. É natural que atribuamos ao inimigo uma sabedoria, força ou capacidade superiores à nossa. Assim nos conformamos com sua situação de mando. Afinal, um jumento completo como Bolsonaro aparenta não ser capaz de estar numa posição superior a nós, não é? Ou bem ele é muito esperto ou bem ele foi colocado lá por alguém muito esperto.
E se não for nada disso? E se o mundo de fato for governado por um punhado de pessoas muito burras que estão no poder em consequência de imponderáveis e “múltiplas determinações e relações” – para usar a expressão de Marx? Já demonstramos n’O Partisano que a pandemia escancarou o colapso mental da elite econômica, que brilhantes gestores e shareholders do mercado não enxergam um palmo à frente do nariz, embriagados pelo discurso autocondescendente dos coaches e livros de autoajuda. Eles estão destruindo o planeta, devastando nações, dizimando populações – e são burros demais para entender isso. Para esses playboys mimados, como um Roberto Justus ou um Elon Musk, se o mundo acabar numa hecatombe pandêmica, social ou climática, basta se esconderem em um abrigo subterrâneo abarrotado de provisões. Essa galera não pode ser, de fato, inteligente.
Baudelaire, um romântico, teria dito que “o maior truque já realizado pelo diabo foi convencer o mundo que ele não existe.” Mas e se for justamente o contrário? E se o Clube Bilderberg, a mesa de velhos na sala de carvalho, os donos do mundo etc., forem só um punhado de jumentos que só por acaso estão onde estão? E se não tiver nenhum grande plano, nenhum Great Reset, nenhum Protocolo de Sábios, nada disso? E mesmo se houver, será que eles conseguem ter tanto controle assim sobre o que de fato ocorre no mundo? Claro que muita gente já pensou nisso. Por exemplo, no clássico filme Muito além do jardim (1979), Peter Sellers interpreta um jardineiro que após passar toda a vida trancado numa mansão, trabalhando e assistindo televisão, se viu forçado a sair para o mundo com a morte dos patrões. Atropelado por um milionário, começa a ser considerado como um gênio, um líder político cujas platitudes e idiotices são vistas como parábolas profundas.
Eles não sabem o que estão fazendo
Para Marx, na realidade, isso seria bastante possível. Em sua visão, a totalidade do sistema, do modo de produção, da relação produtiva da humanidade com o mundo, criaria um mecanismo desumano autônomo – que só existe coletivamente – capaz de alienar todos os envolvidos: tanto oprimidos como opressores, tanto proletariado como burguesia. É bem verdade que ele tampouco foi o primeiro a dizer isso. O mesmo Jesus socialista citado por Bolsonaro, aos pés da cruz, após um doloroso calvário, comentou com seu velho: “pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo.” O grande problema é que, de perdão em perdão, muita gente vem sofrendo com a burrice dos mandatários e da classe dominante nos últimos dois milênios. Será que eles merecem esse piedoso indulto?
Na mesma manhã de segunda em que comparou Lula a Cristo, Bolsonaro dissera: “agora, pelo amor de Deus, o povo que porventura vote em um cara desses [Jesus ou Lula], é um povo que merece sofrer.” Já é ruim ouvir essa barbaridade de um presidente da República em meio a uma pandemia que já vitimou dezenas de milhões de Brasileiros e matou quase 400 mil de nós. A coisa fica mais clara se lembramos que Bolsonaro sempre admirou assassinos e torturadores como Carlos Brilhante Ustra, e que se declarou a favor da morte e da tortura reiteradas vezes. Estão nos torturando com Bolsonaro, estão nos torturando com sua burrice, e isso não é uma metáfora.
Enquanto Bolsonaro et caterva estiverem à solta e no poder, estamos todos aprisionados e torturados por obra de um burro e à mercê do capitalismo internacional. Sofremos algo como o que os sequestradores de uma personagem de Apuleio planejavam para ela:
Não perdestes certamente a memória a respeito de vossa recente decisão, que teve como objeto o burro preguiçoso, mas grande comilão, que ainda há pouco fingia, o impostor, que estava estropiado, mas era cúmplice e auxiliar a fuga da virgem. Proponho, então, degolá-lo amanhã, esvaziá-lo inteiramente de suas entranhas, costurar nua, dentro de seu ventre, a mocinha que o preferiu a nós, de maneira que só o rosto fique para fora, e o resto do corpo fique encerrado nessa besta, como numa prisão. Que assim recheado, como um pastel cheio de carne, o asno fique exposto sobre as pedras de pontas cortantes e aos ardores do sol de fogo.
Deste modo, suportarão um e outro, em sua totalidade, as justas sentenças que pronunciastes: o burro, a morte há muito tempo merecida e ela a mordida das feras, quando os vermes transformarem seus membros em frangalhos; as queimaduras do fogo, quando o ardente calor do sol inflamar o ventre do animal; o suplício da força, quando os cães e os abutres lhe arrancarem as entranhas. E não é tudo: fazei a conta dos tormentos que a atormentarão ainda: viva, habitará os flancos da besta morta. Um fedor intolerável encher-lhe-á as narinas e a sufocará. Por muito tempo sem alimento, ela se consumirá lentamente, nas garras mortais da fome, e não terá nem mesmo as mãos livres para ser o instrumento de sua própria morte.
[…] e fracassos, o que seria um ardiloso plano de comunicação inspirado por Steve Bannon. Há quem duvide dessa tese, mas, em qualquer caso, o que se deu hoje (terça-feira, 27) foi diferente. Paulo Guedes, ministro […]
[…] Essas contradições já foram apontadas em muitos textos e, inclusive, o próprio Bolsonaro já andou criticando Jesus, por ter iniciado uma prática de repartir o pão para angariar apoiadores – tática, segundo […]