Vídeo de kardecistas bolsonaristas chama para ato e provoca polêmica entre espíritas

Alguns repudiam, outros recomendam simplesmente o não compartilhamento. A maioria concorda que bolsonarismo e espiritismo – como de resto todo o cristianismo – não combinam

Imagem: O Partisano
por Danilo Matoso

É um vídeo caseiro e está circulando nos grupos de WhatsApp. Com o hino nacional num arranjo de piano ao fundo, surge a imagem de uma coroa de espinhos e a epígrafe: “foi por amor”, complementada por “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Fundação Caminho, Verdade e Vida”. Já dá pra imaginar o que vem em seguida. Reunidos em torno ao câmera, que gira focalizando um por um, um grupo de cerca de quinze pessoas vestidas de branco e com bandeiras do Brasil nas mãos dão mensagens de apoio à manifestação golpista convocada por Bolsonaro para o próximo 7 de setembro.

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A linha é dada pela primeira fala: “eu sou espírita e apoio você, meu presidente”. Um casal empunhando uma bandeira de Israel diz sorridente: “Força, Bolsonaro!”; “Eu sou espírita, amado presidente, estamos com você até o fim”; “Bolsonaro, somos espíritas, somos cristãos, estamos com você” – o homem aponta para o desenho de um rosto estampado no peito da camisa usada por todos – “esse aqui é nosso guia, Emmanuel”. O desenho de Delpino Filho feito a pedido de Chico Xavier na década de 1940 mostra as feições do espírito que teria sido o guia espiritual do médium brasileiro mais célebre do século 20.

Uma senhora vai mais longe. Sorridente, diz: “Bolsonaro, sou espírita, conservadora e te autorizo a fazer o que for necessário para defender nossa pátria”. Seguem-se mensagens similares de mais alguns religiosos, inclusive crianças, reafirmando seu apoio ao ex-capitão e a suas intenções de implementar uma nova ditadura militar no país. Uma moça explica suas motivações, comuns a muitos bolsonaristas: “Bolsonaro, te acho muito simpático, autêntico, verdadeiro e sei que você está cuidando e fazendo o melhor pelo Brasil”. Uma das últimas tenta fazer o vínculo com a religião: “querido presidente Bolsonaro, somos espíritas, e por isso acreditamos que você está em missão, junto com Jesus Cristo, para libertar nosso Brasil”.

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Em grupos espíritas, o vídeo vem sendo duramente criticado. Muitos pedem o repúdio explícito da Federação Espírita Brasileira (FEB), outros recomendam simplesmente que não seja mais compartilhado.

 

Cristãos pelo anticristo

Há ali, no vídeo, um ou outro com os olhos vidrados, como que em transe, e os histriões bolsonaristas habituais. Mas a peça é curiosamente dissonante justamente porque a maioria dos depoentes tem aquele tom de voz e o olhar serenos típicos dos kardecistas. Desnecessário reforçar aqui que o que o presidente prega e faz é o oposto da doutrina cristã – pelo menos aquela que consta nos evangelhos. Cristo pregava a solidariedade e uma forma de coletivismo, Bolsonaro pratica a omissão e prega e o individualismo – com o nome de “liberdade”; Cristo pregava o amor incondicional ao próximo, e Bolsonaro fez sua carreira em cima do conflito permanente – inclusive com seus superiores no exército. Essas contradições já foram apontadas em muitos textos e, inclusive, o próprio Bolsonaro já andou criticando Jesus, por ter iniciado uma prática de repartir o pão para angariar apoiadores – tática, segundo ele, adotada também pelo PT.

Como se sabe, o apoio da bancada evangélica – sobretudo dos neopentecostais – foi fundamental para a vitória de Bolsonaro. É fácil identificar com Bolsonaro a verve inflamada e cheia de cacoetes de um Silas Malafaia. É também fácil associar ao conservadorismo a batina de um padre católico branco com sotaque estrangeiro. Em cada religião, independentemente de seu habitus, há elementos mais reacionários e outros mais progressistas. Além disso, diversas pautas progressistas como o aborto entram em conflito direto com praticamente todas as religiões.

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Grupos espíritas kardecistas foram apoiadores do golpe militar de 1964, da candidatura de Fernando Collor de Mello e do impeachment de Dilma Rousseff. O patriarca Divaldo Franco, autor de diversos livros, sempre se manifestou politicamente em favor da direita. O médium declarou publicamente apoio à candidatura de Bolsonaro em 2018 e tem sido cobrado por isso. O blog espírita Faxina Espiritual indagou em junho do ano passado: “Divaldo não sabia que estava apoiando um neonazista?”.

“Eu autorizo”

A frase “Eu autorizo” é palavra de ordem bolsonarista e significa a “autorização” ao presidente a dar um autogolpe, fechando o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Ela está presente em algumas postagens na página do Facebook do grupo espírita Fundação Caminho, Verdade e Vida, sediado em Belo Horizonte – autor do vídeo que está circulando no WhatsApp. Um outro vídeo postado em abril, também ao som do hino nacional, clama: “Presidente Bolsonaro, o povo pede: comande o Exército Brasileiro contra o comunismo e a favor do Brasil”.

Alguns kardecistas que frequentaram o centro não concordaram com sua linha política. Na avaliação da página, uma espírita comentou: “Fui a uma reunião de desobsessão e o que ouvi foram várias citações referentes a passeata pró-Bolsonaro, um homem completamente desrespeitoso que destila ódio, totalmente equivocada com a intenção kardecista, saí de lá péssima”. Outra, com base no que viu na página, sentenciou: “não estão de forma alguma seguindo os ensinamentos de Allan Kardec e muito menos de Jesus”. Outro adverte: “Cuidado com essa casa! local de puro animismo e mistificação!”.

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A mistificação corresponderia, no jargão kardecista, à prestidigitação e à impostura. Seria o falso espiritismo. No Livro dos Espíritos – uma das obras fundamentais de Allan Kardec – consta: “os Espíritos vos vêm instruir e guiar no caminho do bem e não no das honras e das riquezas, nem vêm para atender às vossas paixões mesquinhas. Se nunca lhes pedissem nada de fútil, ou que esteja fora de suas atribuições, nenhum ascendente encontrariam jamais os enganadores; donde deveis concluir que aquele que é mistificado só o é porque o merece”. É uma espécie de “faz arminha agora” avant la lettre.

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É sabido que a maioria dos espíritas é conservadora, mas uma passagem do evangelho de Jesus Cristo, cara aos kardecistas, predica o afastamento de religiosos das questões políticas: “Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Talvez caiba às lideranças espíritas reforçar esses valores junto a sua comunidade e contrapor o ativismo golpista de alguns de seus grupos.

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