Os ricos a salvo do fim do mundo?

Abrigos em instalações militares da Guerra Fria são vendidos aos super-ricos como confortáveis condomínios de luxo para a vida no pós-apocalipse

Imagem: Stokkete
por Danilo Matoso

“Muitos governos do mundo têm enormes bunkers militarizados para seus oficiais e suas elites, mas não para o resto de nós. Eles não têm nenhum plano para salvá-lo se a extinção começar. A Vivos tem!” A alegação é de Dance Vicino, suposto diretor executivo da Vivos Global Shelter Network [Rede Global de Abrigos]. Em seu site a empresa enumera as possíveis causas da “extinção”: pandemia, guerra nuclear, mega-tsunami, erupção solar, super vulcão, colisão com o Planeta X, inversão de pólos, guerra civil, colapso social, asteroide assassino, pulso eletromagnético, colapso econômico. Segue-se a pergunta, “aonde você irá quando [a merda] bater no ventilador”?

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O (fim do) mundo é dos Vivos

A empresa oferece a seus associados uma rede de abrigos subterrâneos instalados pelo menos no interior dos Estados Unidos e na Europa. Eles destinam-se a super-ricos de todo o mundo que pretendem sobreviver ao apocalipse com seus pares nesses complexos. Curiosamente, alguns deles são justamente antigas bases militares da Guerra Fria, agora adaptadas para prover “total conforto e segurança” a seus bem-aventurados condôminos. Por outro lado, também são destinos cogitados alguns conhecidos paraísos da jet-set internacional como a Nova Zelândia ou a ilha mediterrânea de Marbella, na Espanha.

Na Dakota do Sul, por exemplo, a Vivos teria transformado um antigo depósito militar em um conjunto de 575 casamatas subterrâneas batizado de xPoint. Segundo a empresa, trata-se da “maior comunidade de sobrevivência na Terra”, com uma área total equivalente a três quartos da ilha de Manhattan, em que cada abrigo custa a bagatela de 35 mil dólares (cerca de 190 mil reais). Cada um deles, com 205 metros quadrados, é vendido “no osso” e pode ser dividido ao gosto do cliente. Segundo a empresa, se devidamente preparada, cada unidade subterrânea pode receber até 24 pessoas com “conforto para todos” – incluindo depósito de água potável e comida – além de um refeitório comum.

Vista de XPoint. imagem: reprodução

Há outros empreendimentos análogos nos Estados Unidos, como o Survival Condo [Condomínio de Sobrevivência], do estadunidense Larry Hall, implantado verticalmente num antigo silo de mísseis nucleares no Kansas. São 15 pavimentos de 2.500 metros quadrados sob o solo, totalmente customizáveis pelos seus habitantes. Os valores de cada loft pós-apocalíptico são tão elevados a ponto de serem mantidos em segredo.

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Imagem: reprodução

Vivos Europa One também visa a uma faixa mais rica. Adaptado de uma antiga instalação militar soviética em algum lugar da antiga Alemanha Oriental, o complexo inclui “23 mil metros quadrados de áreas seguras, à prova de explosões, além de 4.070 metros quadrados adicionais de área comercial acima do solo, apartamentos, depósitos e sua própria estação de trem. Ao todo são mais de cinco quilômetros de câmaras em túneis contínuos” em que “famílias seletas poderão sobreviver autonomamente a praticamente qualquer catástrofe ou desastre por muitos anos sem necessidade de retornar à superfície”. Os valores vão de 35 mil euros [222 mil reais], para leitos em suítes de uso comum, até 2 milhões de euros [12,7 milhões de reais] por apartamentos privados.

Que “famílias seletas” têm investido na vida pós-apocalíptica? Segundo o cofundador do LinkedIn, Reid Hoffman, metade dos bilionários do Vale do Silício já têm “um bunker ou esconderijo preparado ao redor do mundo para o caso de o apocalipse acontecer”. Bilionários como o polêmico Elon Musk – dono da Tesla e da SpaceX – ou o trumpista Peter Thiel – cofundador do PayPal – já se anunciaram entusiastas dessa saída extrema.

A saída de Thiel porém não é bem um bunker militar. Para alguns magnatas, a Nova Zelândia tem sido a escolha para uma aprazível vida pós-apocalíptica. O país insular na Oceania, com cinco milhões de habitantes, está a 2.800 quilômetros da terra mais próxima. Segundo a BBC, mais de 13 mil estadunidenses deram entrada em processos de emigração para o país do Hemisfério Sul. Com cidadania neozelandesa, Peter Thiel adquiriu uma fazenda às margens de um lago na cidade de Wanaka em 2015, declarando que o país seria uma “Utopia”. A Vivos também oferece uma versão hedonista, por assim dizer, em Marbella, nas Ilhas Baleareas: uma mistura de resort de luxo e abrigo pós-apocalíptico com piscinas, academias, bares e cinemas adaptados a construções subterrâneas perto da praia.

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Do céu ao inferno: o Mad Marx de cada um

Seitas apocalípticas decorrentes de uma suposta iminência do Juízo Final existem desde que existe civilização. O propósito sempre foi o mesmo: formar uma rede de devotos capazes de dar ou fazer qualquer coisa, ou bem em nome de sua salvação e de sua família, ou bem em nome de uma causa religiosa supostamente superior. Desde os milenaristas da Baixa Idade Média, passando pela Igreja da Unificação do Reverendo Moon na segunda metade do século 20, muitos movimentos têm se apoiado numa suposta iminência do fim dos tempos para garantir uma rede de poder no presente.

Nesse caso, segundo matéria do El País, trata-se do movimento survivalista [ou “sobrevivencialista”, numa tradução literal]. Com a pandemia de Coronavírus, as vendas da Vivos teriam aumentado em cerca de 400% – com a possibilidade bastante real de usar os abrigos para fugir da própria Covid-19. Se grupos apocalípticos protestantes acreditam no “arrebatamento” dos puros de espírito no dia do Juízo Final, quando Deus os levaria diretamente para o Céu, os clientes da Vivos parecem querer o oposto: ir para baixo da terra – território comandado por outras deidades. Hitler já esteve por lá, em seu bunker berlinense, e encontrou o fim no próprio inferno pessoal, quando juntamente com os seus familiares e os de Goebbels deu cabo a sua própria vida, ateando fogo às instalações.

O curioso no caso dos survivalistas é que os ricaços clientes da Vivos compõem de grupo de influentes empresários do Império. Eles já possuem amplo poder político e não parecem dispostos a formar qualquer seita em sua empreitada apocalíptica. Elon Musk, por exemplo, assumiu sua participação no golpe de 2019 na Bolívia, que derrubou Evo Morales e instalou um brutal regime militar que durou quase um ano. Para Musk, os carros elétricos de luxo de sua empresa Tesla seriam um caminho para evitar um colapso ambiental global, mas tal possibilidade não estaria excluída. O magnata é também proprietário da SpaceX, que visa a vender voos espaciais capazes de, no médio prazo, levar os sobreviventes do apocalipse para outro planeta. No apoio de Musk ao movimento survivalista, há evidentemente um golpe de marketing implícito — e é bem possível que o esquema todo dos abrigos seja um golpe —, mas há também um componente de alienação e falta de perspectiva de mundo por parte da elite global.

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Aparentemente, para os adeptos do survivalismo, o colapso do capitalismo — divisado há quase dois séculos por Karl Marx — também equivaleria ao fim do mundo. Se Marx via na superação do modo de produção capitalista a possibilidade de construção de uma sociedade mais justa — o verdadeiro início da história humana, livre de opressores e oprimidos —, para os supermilionários de hoje esse seria o fim de tudo. A semelhança da configuração espacial vertical do Survival Condo com as instalações do filme espanhol O poço não parece ser mero acaso: a alienação da classe dominante em relação às forças produtivas é a via inversa da alienação do capital ao proletariado que a produz. Isso tem implicações de segregação espacial: o movimento é análogo aos condomínios de luxo murados isolados da urbe — tão comuns no Brasil de hoje. Para os ricos de todo o mundo, se a cidade colapsa, é melhor evitá-la. Para os super-ricos do Vale do Silício, caso o capitalismo venha abaixo, parece melhor se esconderem. Difícil é não serem achados depois.

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