O bilionário inimigo dos trabalhadores e golpista assumido coloca a rede a serviço da extrema-direita global em nome de uma suposta “liberdade de expressão”

por Danilo Matoso
A última semana de abril começou quente no mundo online. Na segunda-feira (25) o Twitter anunciou que aceitara a oferta de Elon Musk pela compra da gigante das redes sociais. Por 44 bilhões de dólares, o sul-africano adquiriu a empresa e pretende fechar seu capital – ou seja, o Twitter deixará de ter ações negociadas na bolsa de valores, passando a ser controlado não por um conselho administrativo de acionistas majoritários, mas por seu único dono.
A narrativa vigente na imprensa corporativa é de que, como o bilionário com nome de perfume já é o homem mais rico do mundo, não se trata de um negócio visando mais lucros, mas sim uma espécie de ação militante de Elon visando a garantir a “liberdade de expressão” a todos, uma vez que ela vem sendo ameaçada pelas políticas de censura implementadas pelas redes sociais.
É evidente porém que não há santos nessa estória. Por um lado, o chamado “combate às fake news” e, mais recentemente, o bloqueio informacional à Rússia mostraram que as corporações das redes sociais pretendem estabelecer-se como uma espécie de Ministério da Verdade, censurando indiscriminadamente tudo o que lhes aprouver e deixando correr solto o que lhes convier.
Por outro lado, sabe-se que hoje em dia os maiores defensores de uma suposta “liberdade de expressão” irrestrita nas redes sociais são grupos da extrema-direita global – incluindo Donald Trump, Steve Bannon, Bolsonaro e seus seguidores. Isso porque de fato essas pessoas têm postagens excluídas por conterem mentiras e desinformação, e porque Trump chegou a ter sua conta no Twitter cancelada após a sua frustrada tentativa de invasão do Congresso dos Estados Unidos.
Rede da política, rede do ódio: uma falsa liberdade de expressão
Convém lembrar que o Twitter é definitivamente a “rede da política” (além do BBB e do futebol). Com seu espartano limite de 280 caracteres por postagem não editável, o microblog tornou-se a plataforma pela qual órgãos públicos, entidades internacionais e personalidades políticas fazem anúncios oficiais. Foi nela que cresceram e se fortificaram Trump e Bolsonaro, com a torrente de mentiras e polêmicas deletérias que compõem da manjada tática do “falem mal, mas falem de mim”.
Por suas limitações de formato e pela autonomia de cada resposta, o Twitter desfavorece o aprofundamento de qualquer diálogo, transformando-se também numa influente “rede do ódio”. É o ambiente ideal para a proliferação da política de troll usada pela extrema-direita para chamar a atenção, mobilizar sua base fanatizada e ser alçada ao poder. Para levar a cabo esse tipo de campanha, eles necessitam de total “liberdade de expressão”, que não os impeça de produzir desinformação e compartilhá-la milhares de vezes por meio de “robôs”.
Em nome da tal “liberdade de expressão” ameaça-se o Brasil de golpe militar e o Congresso dos Estados Unidos de golpe armado. Um mote que sempre serviu à garantia das liberdades democráticas dos oprimidos é cinicamente usado hoje para servir à retirada de direitos do povo, à destruição das políticas públicas, à entrega de nosso patrimônio ao estrangeiro — nada menos que os pontos programáticos do governo Bolsonaro, que se intensificariam drasticamente num regime autocrático, e que seriam acrescidos de perseguição da esquerda com prisão e assassinato de suas lideranças. É enfim uma bandeira que hoje tem lado, e não é o da classe trabalhadora que compõe a maior parte dos quase 190 milhões de usuários do Twitter no mundo.
Como já ponderava Lênin há mais de um século, logo após a Revolução Russa, “os capitalistas sempre chamaram ‘liberdade’ à liberdade de obter lucros para os ricos, a liberdade dos operários de morrerem de fome. Os capitalistas chamam liberdade de imprensa à liberdade dos ricos de subornarem a imprensa, à liberdade de utilizar a riqueza para fabricar e falsificar a chamada opinião pública”. Não parece ser outra a intenção de todos os envolvidos nessa causa agora: tornar ainda mais confusos e menos transparentes os critérios pelos quais se manipula a informação nessas redes.
O papel da esquerda, ou pelo menos de qualquer marxista que se preze minimamente, não é a defesa de fascistas em nome de um ideal de liberdade de expressão, mas sim a defesa da liberdade de expressão da classe trabalhadora por meio da pressão popular e da regulação participativa. Assim podem-se combater os meios pelos quais os poderosos concentram nas mãos de poucos a visibilidade de suas opiniões, a capacidade de multiplicação de sua ideologia, a formação de falsos consensos populares por meio do compartilhamento por perfis automatizados — os chamados “robôs”.
Um balcão de negócios a serviço da extrema-direita
Ao comprar o Twitter e prometer a “liberdade de expressão” ampla e irrestrita, Elon Musk praticamente escancarou um balcão de negócios para a extrema-direita. Como já era sócio majoritário na empresa desde o início de abril, quando adquirira 9% de suas ações, foi-lhe possível demonstrar o que poderia fazer pelos neoconservadores mundo afora. No Brasil não foi diferente. Dezenas de milhares de “robôs” outrora bloqueados foram subitamente permitidos na semana passada, dando a políticos e “influenciadores” fascistas uma legião instantânea de falsos seguidores, capazes de multiplicar suas opiniões para os milhões de eleitores reais que frequentam o Twitter no Brasil.
Bolsonaro repentinamente ganhou quase cem mil “seguidores”, quase a totalidade composta por perfis criados poucos dias antes. Carla Zambelli (PL-SP) foi agraciada com mais de 60 mil seguidores. O ex-secretário especial de Cultura, Mário Frias, uma das figuras mais bisonhas do governo Bolsonaro e hoje pré-candidato a deputado federal por São Paulo, comemorou: “a velocidade do crescimento de seguidores de hoje no meu Twitter, é diretamente proporcional ao crime de censura de ontem. Estou sentindo cheiro de liberdade!”. Sérgio Camargo, o ex-presidente da Fundação Cultural Palmares, também exultou sem qualquer pudor: “continuo ganhando seguidores. São mais de 20 mil em 48 horas. Só gente limpa e decente, sem fixação no cu nem cabelo verde, gente que trabalha, respeita pai e mãe, não ouve Caetano e não usa drogas”.
Não estão em jogo apenas micropoderes negociados de modo difuso com atores secundários. Como se sabe, a disputa pela hegemonia no Twitter, Facebook, YouTube, Instagram, TikTok, Telegram ou Whatsapp foi crucial em importantes processos eleitorais da última década, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos. Além da mera opinião, está em jogo aqui uma importante capacidade de mobilização popular. Foi por meio dessas redes que foram organizadas as chamadas Revoluções Coloridas levadas a cabo mundo afora com interferência direta do imperialismo em países tão díspares quanto o Egito ou a Ucrânia.
Foi por meio dessa conjunção entre interesse estrangeiro e capacidade de manipulação das redes sociais que se formaram os grandes grupos de extrema-direita que temos hoje no Brasil, como Revoltados Online, Movimento Brasil Livre ou Vem pra Rua, gestados no bojo das megamanifestações de junho de 2013. Esse é o modus operandi dessa turma escancarado desde dezembro de 2016, quando se descobriu o chamado escândalo da Cambridge Analytica – a empresa de Steve Bannon que manipulou as redes sociais nas eleições dos Estados Unidos e no plebiscito do Brexit na Inglaterra. Descobriu-se então todo o mecanismo de análise de dados em massa de redes como o Facebook, elaboração de perfis psicológicos e campanhas políticas direcionadas. Todas as redes, evidentemente, negaram envolvimento direto e disseram ter sido hackeadas.
Vale lembrar: as redes são corporações multinacionais que visam o lucro, e não a democracia, a redução da desigualdade etc.. O seu lado sempre foi e sempre será o do grande Capital e do imperialismo. E se há contradições entre liberais do establishment e neoconservadores, trata-se apenas de conflitos entre setores do mesmo imperialismo. Que significa então o fechamento de capital do Twitter? Bem, significa que a empresa deixa de prestar contas a milhares de acionistas e passa a servir exclusivamente aos interesses de poucos proprietários – normalmente os diretores. Se uma corporação com ações na bolsa é um mecanismo desumano, uma com capital fechado serve unicamente ao seu dono. O que já era ruim, vai ficar pior.
Ele vai dar golpes de Estado em quem quiser
Elon Musk, em julho de 2020, já fez questão de dizer com todas as letras que “nós vamos dar golpes de Estado em quem quisermos! Aceitem isso”. Ele se referia então ao golpe militar perpetrado no ano anterior contra a Bolívia, com claro apoio externo estadunidense. Sua indústria de veículos elétricos, a Tesla, depende do lítio para fabricação de baterias duradouras imprescindíveis a esses carros e, bem, casualmente a Bolívia tem grandes reservas desse mineral. Enfim, difícil ser menos explícito.
O problema é que, na era dos grandes monopólios, ele não apenas se tornou o ser humano mais rico de todos os tempos, mas tem conseguido se impor mesmo frente a outros monopolistas. Quando foi considerado “a personalidade do ano” pela revista estadunidense Time, a editora de política da revista, Molly Ball, atestou que “é difícil escapar da dominação de Elon Musk sobre tantas coisas na vida americana de hoje. Ele tem uma empresa de foguetes que está dominando completamente o ramo dos lançamentos espaciais. Ele tem uma empresa de automóveis que está dominando completamente o mercado de veículos elétricos. Ele tem 65 milhões de seguidores no Twitter, e ele gosta de fazer piadas estranhas e de detonar as pessoas, e às vezes com um único tuíte ele consegue controlar o mercado de ações ou o valor de várias criptomoedas diferentes. Então esse é um sujeito que se tornou onipresente em diversos setores”.
Já apontamos antes n’O Partisano que, por sua personalidade e por sua prática empresarial, Elon é um verdadeiro convite ao ódio de classe. Como no caso da Bolívia, sempre que pode, ele esmaga, persegue e oprime trabalhadores, organizações ou mesmo nações periféricas, ostentando sempre o tipo de comportamento e opinião mais abertamente elitista.
Basta lembrar de quando tentou impedir os operários de sua fábrica de se sindicalizarem no ano passado, de quando forçou o retorno dos mesmos ao trabalho presencial durante a pandemia de Covid-19, contagiando centenas deles, ou de quando anunciou que havia adquirido imóveis em bunkers subterrâneos de luxo destinados a abrigar a ricos em caso de alguma hecatombe ambiental ou nuclear. O homem de fato faz questão de ser o inimigo número um da classe trabalhadora global. Enfim, ele parece ter conseguido.
Além da falsa “liberdade de expressão”: por redes de código aberto e com controle popular
No caso dessa nova investida do magnata com o Twitter, há duas frentes de combate delineadas diante da esquerda. No campo institucional, buscar frear a compra e o fechamento do capital da empresa, pugnar pela regulamentação das redes sociais, pela abertura de seus algoritmos e por uma maior transparência nos mecanismos de controle de conteúdo. É uma alternativa parcial, submissa ao próprio imperialismo e de pouco alcance de longo prazo, mas pode ser o possível por agora.
No campo de construção de um poder popular global, deve-se buscar impulsionar socialmente redes que já funcionam de modo mais democrático por possuírem código aberto. Iniciativas como o Mastodon são excelentes, mas ainda são guetos com pouquíssimos usuários. Há um longo percurso ainda para torná-las atraentes e viáveis para um público maior – além de efetivamente auditáveis, de modo a permitir mecanismos transparentes de controle popular sobre o que ali ocorre. É uma tarefa de longo prazo e mais difícil, e vale lembrar que nem mesmo os neoconservadores ou tradicionalistas banidos do Twitter, entupidos de dinheiro e apoio internacional, conseguiram até aqui alavancar redes alternativas como o Parler.
Uma coisa é certa: de nada adianta pedir compaixão a Elon Musk ou democracia a uma empresa privada de capital fechado. Trata-se afinal de uma luta política em que ele se coloca como o principal adversário.