Extrema direita se animou com a chacina, e nisto está uma pista de possíveis motivações políticas e deliberadas por trás da ação da polícia

por Alexandre Lessa da Silva
Em 6 de maio de 2021, a Favela do Jacarezinho, localizada no bairro homônimo na Zona Norte carioca, foi palco da “maior matança policial da história do Rio de Janeiro”. A chacina ou massacre, como algumas publicações preferem, teve seu início com uma operação para prender 21 suspeitos, identificados pelo Ministério Público através de fotos em redes sociais, sendo que todos possuíam mandado de prisão expedido. O aliciamento de menores por traficantes foi o principal motivo citado pela polícia para a existência da operação. Entretanto, o relatório final do inquérito da Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA), responsável pela origem da operação, sequer menciona tal motivo, o que desmonta a justificativa oficial para burlar a restrição do Supremo Tribunal Federal a operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia.
O massacre, que teve seu início por volta das 6 da manhã, acordou os moradores do Jacarezinho com o barulho do voo de duas “águias” (como são chamados os helicópteros) e saraivadas de balas por todos os lados. Sangue e massa encefálica começam a ser encontrados em todos os cantos da favela, assim como adultos e crianças correndo desesperados com a possibilidade, a cada instante maior, de serem atingidos por uma bala de fuzil ou coisa ainda pior. O resultado de toda essa violência foi a morte de 28 pessoas, 1 policial e 27 outras pessoas que se encontravam no local do massacre, dois passageiros do metrô, que passa ao lado do Jacarezinho, feridos, assim como outros dois policiais civis também.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro defendeu a operação, afirmando, através do delegado Rodrigo Oliveira, que “não houve erros ou excessos”. O governador do Estado, Cláudio Castro (PSC) também o fez, dizendo que a ação policial “foi pautada e orientada por um longo e detalhado trabalho de inteligência e investigação, que demorou dez meses para ser concluído”. Dez meses para preparar uma ação que matou 28 pessoas, muitas delas sem ficha criminal ou investigação relativa aos mandados, e ferir inocentes que apenas passavam perto do local; realmente, um “grande” trabalho de inteligência.
O vice-presidente Hamilton Mourão, mesmo sem provas e sem ter conhecimento da identidade dos mortos, fez referência aos mortos como “tudo bandido”, demonstrando assim todo preconceito racial e social que acompanha esse governo. Bolsonaro, por sua vez, parabeniza a polícia carioca e aproveita para criticar a mídia e a esquerda ao dizer que “ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os iguala ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo”, mais um dog whistle para seus seguidores.
Toda imprensa mundial repercutiu negativamente a chacina do Jacarezinho, falando em “banho de sangue” e “carnificina”. Se a imagem do Brasil já estava em uma situação lastimável por tudo que o governo Bolsonaro fez, o massacre do Jacarezinho só reforçou a ideia de um país extremamente violento que não respeita os direitos humanos de sua população, algo que infelizmente corresponde à realidade. Todavia, não só a imprensa internacional acompanha toda essas violações dos direitos fundamentais que ocorreram no Jacarezinho. O governo dos Estados Unidos, através do Departamento de Estado, declarou que acompanha todo desdobramento dessa operação policial, assim como os relatos de “execuções extrajudiciais cometidas por policiais”.
Por quê?
A violência, contida nessa chacina, está descrita em todas as páginas da mídia, no Brasil e no mundo, mas poucas procuram os verdadeiros motivos de tal brutalidade. Para isso, é preciso ir além do fato em questão e buscar as causas dessa política de violência pública.
Uma das hipóteses mais defendidas para explicar a chamada “guerra contra o tráfico” é que a polícia está limpando o terreno para o crescimento das milícias que, por sinal, já ocupam mais da metade dos territórios tomados pelos grupos armados no município do Rio de Janeiro. Assim, o Jacarezinho, região chave para a principal facção do tráfico no Rio, o Comando Vermelho, seria uma área importante para a ampliação miliciana. Para entender essa hipótese, contudo, deve-se esquecer todo discurso sobre a violência pública no Rio transmitido através da grande imprensa. Não há como falar, por exemplo, em “poder paralelo” da criminalidade em relação ao Estado. O Estado, através de agentes públicos e de um grande projeto político, está presente nas organizações criminosas, principalmente nas milícias. Assim, há no fundo uma grande mise-en-scène, pois ambos os lados, polícia e milícia, são formados e comandados pelos mesmos indivíduos. Dentro dessa formação, o tráfico de drogas pode ser exercido por milícias, trabalhar em conjunto com os milicianos ou estar nas mãos de facções de traficantes rivais aos milicianos, não havendo, assim, um único padrão para a venda de substâncias proibidas.
As milícias já ocupam 58,6% do território criminoso no Rio de Janeiro. Entretanto, não é visto um ataque tão furioso da polícia, seja ela civil ou militar, no combate a grupos milicianos. Não se escuta falar em chacina ou massacre de milicianos, apesar da violência de seus métodos e da gama de crimes a eles atribuída. De assassinatos ao corte de cabos e sinais de TV, internet e telefone, visando obrigar moradores locais a compra dos serviços vendidos pela milícia, tudo é feito pelas milícias. Mesmo a construção civil no Rio já está sendo tomada por esse tipo de criminosos que brotam do Estado e criam a “naturalização de uma sociabilidade violenta no Rio de Janeiro”, através de uma falsa dimensão moral positiva.
Além da milícia
A relação direta entre milícia e Estado pode explicar boa parte do que aconteceu no Jacarezinho, mas não chega a exaurir o tema. Há um mandante da ação, e esse mandante certamente não foi um miliciano que atua no local ou um membro da polícia. O governador do Rio de Janeiro, por sua vez, é uma figura sem expressão e não teria, por conta própria, ímpeto o suficiente para isso. A ação em questão, portanto, parece ter sido encomendada com um objetivo que ultrapassa a legalidade e, assim, parece vir de uma instância que, ao menos nesse momento, é superior a todas aquelas citadas.
“Bolsonaro é um projeto dos generais” afirma o Intercept Brasil, através de uma entrevista do professor Piero Leirner, da Universidade Federal de São Carlos. Nessa entrevista, Leirner utiliza o conceito de “guerra híbrida”, afirmando ser ela uma das categorias mais estudadas pela cúpula das Forças Armadas brasileiras.
O conceito de “guerra híbrida” é definido como “o uso sincronizado de múltiplos instrumentos de poder adaptados para vulnerabilidades específicas em todo o espectro de funções sociais para alcançar efeitos sinérgicos”. Diferente de uma guerra convencional, portanto, a guerra híbrida é marcada pela falta de exclusividade do poderio militar convencional e aceita, por sua vez, os usos dos mais diversos instrumentos, como ataques cibernéticos, mídia, redes sociais, law fare, instrumentos econômicos, políticos e diplomáticos, todos juntos visando uma determinada vulnerabilidade do inimigo e agindo conjuntamente. A guerra híbrida, portanto, não é linear e não exclui, em nenhum momento, o uso da força e da violência para atingir seu objetivo. Assim, através de uma visão mais holística e utilizando ações disruptivas e Blitzkrieg (ataque ou guerra relâmpago), a guerra híbrida visa desestabilizar os processos internos e externos de um Estado, com o objetivo de enfraquecê-lo. Pensando dessa maneira, mesmo antes do golpe contra Dilma já passávamos por uma guerra híbrida, sendo Bolsonaro um dos resultados mais nefastos dela.
Os militares, assim, passaram a tomar frente dessa guerra, talvez a partir do momento em que Trump se tornou presidente dos Estados Unidos, e “produziram uma operação psicológica de alto impacto que abriu caminho para as eleições de 2018”.
Todas as características de uma guerra híbrida são encontradas no Brasil, mas faltava um uso claro da violência no sentido de uma guerra. Uma tentativa foi realizada contra a Venezuela, mas sem o apoio dos Estados Unidos, mesmo durante o governo Trump, resultaria em um grande vexame para os militares brasileiros, por isso foi abortada.
É importante lembrar que Bolsonaro é um legítimo representante da extrema direita mundial, defendendo ideias e valores desse espectro político. A chacina do Jacarezinho pode representar, então, um dog whistle para seus fiéis apoiadores e a tentativa do início de uma falsa guerra contra o tráfico de drogas, completando o quadro de uma guerra híbrida e, ao mesmo tempo, tentando reforçar a tão querida oposição da extrema direita populista entre “nós” (cidadãos de bem) e eles (todos os outros). Portanto, talvez não seja à toa que Bolsonaro tenha dito que quem tomar vacina vai virar jacaré.
[…] De fato, é bem difícil imaginar que a extrema-direita no poder deseje ver grupos de militantes de esquerda armados se defendendo de jagunços – fardados ou não – nas ruas das cidades e no campo. O que Bolsonaro quer é incentivar a formação de grupos armados que constituam milícias capazes de exercer pressão política real a seu favor e contra os trabalhadores para além da institucionalidade – até que o Estado, ele mesmo, esteja amplamente capturado. Foi o que ocorreu nos Estados Unidos no ano passado, com movimentos como o Back the Blue [“Apoie o Azul, em referência à cor dos uniformes policiais], responsáveis por passeatas pró-Trump. Esses grupos agiram diretamente na repressão violenta de manifestações contrárias ao então presidente estadunidense, resultando inclusive em mortos a tiros de fuzil em setembro de 2020. Desde a formação do grupo dos 300 do Brasil de Sara Giromini – hoje arrependida – essa base ganha contornos bastante reais em nossas terras, como se viu por exemplo no apoio da base bolsonarista ao massacre do Jacarezinho. […]