Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional encomenda estudo para preservação e destinação de armas de fogo, sinalizando nova tentativa de constituição de política cultural de extrema-direita

por Danilo Matoso
Em 28 de maio, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) criou um grupo de trabalho destinado a apresentar “subsídios para formulação da Política de Proteção de Bens Culturais”, voltada para regulamentação afeta à questão da preservação e destinação das Armas de Fogo de Valor Cultural. O ato foi publicado em portaria do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (Depam) do órgão, nomeando um servidor do Centro Lucio Costa (CLC), do Rio de Janeiro, e outro do Iphan de Minas Gerais para a tarefa, estabelecendo um prazo de um mês para elaborar um relatório sobre o tema. A iniciativa veio à tona na Folha de São Paulo, pouco mais de uma semana após a notícia de que o secretário especial da Cultura, Mário Frias, comparece armado às atividades do órgão.
Armas de fogo, de fato, são parte da história do país. Diversas peças de artilharia compõem testemunho da defesa da América Portuguesa diante das sucessivas ondas de invasões francesas, holandesas, inglesas etc. desde o século 16 até a independência – que também envolveu duros combates sobretudo no Nordeste. A história da arquitetura colonial brasileira e da constituição da engenharia como campo profissional e de ensino entre nós passa forçosamente pela presença dos engenheiros militares em nosso território – ao lado dos jesuítas, nosso principal corpo de técnicos com treinamento formal. O brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim (1700-1765), por exemplo, autor de um plano urbanístico da cidade de Mariana, do risco do Palácio dos Governadores de Ouro Preto, ou da reforma do Aqueduto da Carioca que deu a feição definitiva aos Arcos da Lapa, foi também lente de artilharia e autor de dois importantes tratados sobre o tema em meados do século 18.
Tal fato é bem conhecido e bem estudado pelo técnico do CLC encarregado de elaborar o estudo, Adler Homero Fonseca de Castro. Autor de diversos estudos sobre o tema, o pesquisador já publicou quatro massivos volumes na obra intitulada Muralhas de pedra, canhões de bronze, homens de ferro (Funceb) – possivelmente o mais amplo levantamento de fortificações no Brasil. Também José Neves Bittencourt, servidor do Iphan/MG, tem trajetória de pesquisas na área de museologia e atuação no Museu de Artes e Ofícios.
Em condições políticas normais, o estudo seria parte constituinte necessária das tarefas próprias do Iphan. O armamento é parte de nossa história material tanto quanto o são as fortificações em que se encontram ou os conflitos em que esteve envolvido – e como tal deve ser valorado e preservado. Ocorre que não estamos em condições normais. Por um lado, a promoção do armamento hoje em dia faz parte de uma agenda política determinada que tem mais a ver com a opressão do próprio povo brasileiro que com a defesa do território. Por outro lado, o estudo é encomendado num contexto de brutal desmonte das políticas culturais em geral e das políticas de patrimônio em particular.
A cultura das armas
O discurso armamentista é a ponta de lança da política bolsonarista – cujo gesto característico é justamente “fazer arminha” com as mãos. O armamento é o mote que o presidente levanta e com o qual acena a sua militância sempre que acuado – mesmo que totalmente fora de contexto, como no caso da famosa reunião ministerial vazada em que bradou do nada: “eu quero todo o mundo armado”. É sabido, também, que Bolsonaro não quer armar a população. Assim o vem demonstrando nas políticas de ampliação de acesso a armas de fogo, que seguem demandando poder econômico da parte dos interessados – além de um proibitivo calvário burocrático.
De fato, é bem difícil imaginar que a extrema-direita no poder deseje ver grupos de militantes de esquerda armados se defendendo de jagunços – fardados ou não – nas ruas das cidades e no campo. O que Bolsonaro quer é incentivar a formação de grupos armados que constituam milícias capazes de exercer pressão política real a seu favor e contra os trabalhadores para além da institucionalidade – até que o Estado, ele mesmo, esteja amplamente capturado. Foi o que ocorreu nos Estados Unidos no ano passado, com movimentos como o Back the Blue [“Apoie o Azul, em referência à cor dos uniformes policiais], responsáveis por passeatas pró-Trump. Esses grupos agiram diretamente na repressão violenta de manifestações contrárias ao então presidente estadunidense, resultando inclusive em mortos a tiros de fuzil em setembro de 2020. Desde a formação do grupo dos 300 do Brasil de Sara Giromini – hoje arrependida – essa base ganha contornos bastante reais em nossas terras, como se viu por exemplo no apoio da base bolsonarista ao massacre do Jacarezinho.
Há quem diga que a “Política Cultural de Armamentos” é um braço efetivo dessa estratégia, voltado à legalização de peças relativamente antigas ainda em posse daqueles que não as entregaram para destruição quando da implementação do Estatuto do Desarmamento. É possível. Entre os entusiastas de armas de fogo estão Mário Frias, o ex-ator adolescente de Malhação à frente da Secretaria Especial de Cultura – órgão do Ministério do Turismo encarregado do tema após a extinção do Ministério da Cultura por Bolsonaro.
O secretário já andou posando de pistola na mão ao lado de Eduardo Bolsonaro, que postou em sua rede social: “tiro também é cultura”. Apesar de sua pinta de almofadinha – ou justamente por conta dela –, Frias tem se notabilizado no Serviço Público pela rispidez no trato, por dirigir-se a seus subalternos aos gritos e pelo destempero inepto com que reage a críticas públicas. Para completar o cenário hostil, Frias recebeu em dezembro da Polícia Federal autorização para porte de arma – uma pistola calibre 9mm. O secretário justificou o pedido por ser “frequentemente abordado por diversas pessoas para tratativas de vários assuntos, alguns sensíveis e complexos” – o que quer que isso queira dizer.
Porém, para além desses detalhes de natureza pessoal e circunstancial, pode estar em jogo aqui uma política cultural mais ampla.
A política do desmonte
Conforme já denunciado há mais de um ano n’O Partisano, o governo Bolsonaro segue uma agenda de desidratação política da cultura e de desmonte dos órgãos encarregados dela. Agentes sem qualquer formação ou experiência na área de Patrimônio Cultural vêm sendo nomeados para posições-chave no órgão – que até aqui aparentemente vem sendo encarado como mero cabide de emprego para compadres e comadres.
Pastores, turismólogos, youtubers: tem de tudo na fauna plantada por Bolsonaro num “tal” Iphan – nas palavras do presidente – que a extrema direita brasileira dá mostras de não conhecer até aqui e que só vê como obstáculo para o mercado da construção civil. Talvez sem saber o que mais fazer por lá, o pastor Tassos Lycurgo – à frente do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) – andou transmitindo lives de sua igreja diretamente de dentro do órgão (e cobrando dízimo). Apesar do questionamento da sociedade civil, do Judiciário e mesmo da Unesco, na Presidência do Iphan encontra-se até hoje a turismóloga Larissa Peixoto, nomeada há mais de um ano por ser esposa de um ex-segurança de Bolsonaro. Até aqui, em consonância com as políticas de desinformação, diversionismo, negacionismo e revisionismo histórico próprios do grupo que se empoleirou no Governo Federal, a política bolsonarista de patrimônio tem sido simplesmente minar a preservação da memória.
A tática de desmonte, achincalhe e desidratação foi adotada após o fracasso intelectual e político de um pequeno grupo de seguidores de Olavo de Carvalho – Bia Kicis (PSL/DF), Ernesto Araújo (ex-ministro de Relações Exteriores) e Roberto Alvim (ex-secretário especial de Cultura) que pretendia inicialmente implementar uma política cultural de direita conservadora no país. Nos últimos meses, porém, ela parece estar voltando à tona.
As armas da cultura
Em março, os descendentes da antiga Família Imperial brasileira manifestaram interesse pelo edifício do Museu Nacional, hoje sob a tutela da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Incendiado em 2018, durante o governo Temer, o edifício será completamente restaurado. Poucas semanas após o anúncio das obras, em um de seus últimos atos à frente do Itamaraty – de onde seria exonerado após um pedido assinado por mais de 300 diplomatas – Ernesto Araújo anunciou num “balão de ensaio” que o governo queria “transformar o Museu Nacional em Palácio Imperial e deixar acervo fora”. Desnecessário relembrar que os membros da autointitulada “Família Real Brasileira” têm em suas fileiras diversos bolsonaristas ultraconservadores. Entre eles e uma política cultural conservadora, um possível ponto de conexão seria o monarquista Olav Antonio Schrader, superintendente do Iphan naquele estado.
É nesse contexto que se insere a pauta da “Política Cultural de Armamentos”. A ação, embora conduzida por competentes e isentos técnicos, pode ser o início efetivo de uma tentativa de dar corpo teórico a uma política cultural de direita. Esse movimento não é trivial. Está em jogo nada menos que a disputa pela memória numa época em que se nega o holocausto, se diz que o nazismo era de esquerda, que o presidente trata a maioria negra como gado e em que se tentou revogar até a lei Áurea. Convém lembrar que a própria criação do Patrimônio Nacional na década de 1930 se deu sob os auspícios da ala conservadora do Estado Novo, liderada por Francisco Campos. Para nossa sorte, porém, o governo Bolsonaro não tem em seus quadros nomes de peso intelectual e artístico como um Gustavo Barroso no Brasil de Vargas, um Gustavo Giovannoni na Itália de Mussolini ou um Albert Speer na Alemanha de Hitler. O fato de que tal liderança ainda não tenha se apresentado, porém, não significa que ela não possa existir.
Estarão em xeque, então, todos os elementos que vêm a reboque da memória: desde a comunicação social institucional até a educação, passando por toda pluralidade cultural própria de uma abordagem progressista. A visão conservadora de cultura e patrimônio é, por definição e tradição, excludente, unívoca, deletéria. Ela privilegia, nas palavras de Roberto Alvim e de Ernesto Araújo, um mito nacional de matriz “judaico-cristã-ocidental” em detrimento das demais formas de expressão cultural. Ela destrói de modo ativo, e não por mera desidratação.
Destituída de contradições, aplainada, a cultura deixa de refletir a realidade para ligar-se à ideologia de determinado grupo da classe dominante, servindo como instrumento adicional de opressão, e não como alavanca de emancipação e elevação de consciência social. Nessa visão cultural pós-apocalíptica divisada por alguns de nossos governantes conservadores talvez esteja em vista a frase de um personagem do dramaturgo nazista alemão Hanns Johst – comumente atribuída a Goebbels ou Himmler: “quando eu ouço a palavra cultura, eu destravo minha arma”.
Excelente matéria! Só diria que a política de patrimônio de Vargas esteve nas mãos de Capanema e muitos intelectuais da ala mais progressista do Governo, derrotando o grupo de Gustavo Barroso.