A UFRJ, nossa “Universidade do Brasil” guarda memória do país e constitui um dos eixos de nosso desenvolvimento tecnológico, mas o Governo Federal quer fechá-la

por Danilo Matoso
Na última quinta (6), a reitora e o vice-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Pires de Carvalho e Carlos Frederico Leão Rocha, publicaram a denúncia: se forem mantidos os cortes orçamentários previstos para a instituição, “seu funcionamento ficará inviabilizado a partir de julho”, complementando que a mesma “fechará suas portas por incapacidade de pagamento de contas de segurança, limpeza, eletricidade e água”. Para os professores e pesquisadores à frente de uma das mais importantes universidades do país, trata-se de uma política deliberada: “o governo optou pelos cortes e não pela preservação dessas instituições”.
Tal decisão vem de longa data: ela esteve à espreita desde a expansão do ensino superior privado no país no final da década de 1990 e a formação de poderosos grupos que exerceram pressão em todo o governo petista e assumiram a frente das políticas de Educação nacionais desde o golpe de 2016. A ordem é clara: desmontar as universidades públicas do Brasil: desidratar seus orçamentos, abandoná-las a incêndios, detratá-las, censurá-las, perseguir seus docentes e, enfim, fechá-las.
A aposta do golpe: destruir o ensino superior público e gratuito
Com o golpe de 2016, anunciou-se de imediato que o garrote da política orçamentária neoliberal apertaria o pescoço de nossas universidades públicas. A Emenda Constitucional 95 anunciou o congelamento dos gastos por 20 anos, afetando especialmente os recursos destinados a saúde, educação e assistência social. O fim da universidade pública e gratuita subitamente voltou à ordem do dia na política. Quer pelo movimento estudantil, quer pelos movimentos de docentes e trabalhadores da educação, as universidades públicas e os institutos federais se mostraram importantes centros de mobilização contra o golpe. Como em outras épocas de intensificação do caráter ditatorial do Estado, tornaram-se alvos políticos preferenciais.
Em outubro de 2018, durante o processo eleitoral, diversos setores da sociedade civil se mobilizaram contra a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República, bem como de outros bolsonaristas/fascistas a governos de Estado e a assentos no Poder Legislativo. Para além do viciado “#EleNão” – que se mostrava ligado a setores da própria direita – eclodiu nas universidades o movimento antifascista. Diversos atos e manifestos foram organizados contra a ascensão institucional do fascismo, acompanhados de faixas nos edifícios, cartazes, panfletos. Talvez de modo não tão surpreendente, o Poder Judiciário vestiu a carapuça de “fascista”.
Juízes de diversos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) ordenaram intervenções em mais de 35 universidades do país, com batidas policiais, ordens de retirada das propagandas antifascistas e proibição da realização de atos. Na mesma época, já sofrendo de cortes orçamentários renitentes, o Museu Nacional – instituição bicentenária pertencente à UFRJ – foi completamente destruído num incêndio. Conclamado a se pronunciar sobre a tragédia, um certo ex-capitão do exército, candidato à Presidência da República, limitou-se a declarar: “já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê?”. Pelo visto, teve seu trabalho adiantado pelo acaso e pelo descaso.
Enfim, a balbúrdia
Com a ascensão de Bolsonaro ao poder, o Ministério da Educação (MEC) passou rapidamente por um coxinha importado da Colômbia e passou quase um ano e meio nas mãos do olavista e obscurantista Abraham Weintraub. O ministro declarou guerra aberta ao ensino superior público anunciando que “universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas”. Segundo ele, a “balbúrdia” seria caracterizada por “sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus”.
Como Bolsonaro ou Olavo de Carvalho, Weintraub se afirma politicamente pela afirmação da incultura, pela imposição da ignorância, pela disseminação da desinformação travestidas de iconoclastia. O ministro chegou a afirmar publicamente – sem qualquer fato concreto que sustentasse a afirmativa – que há “plantações extensivas de maconha” nas universidades federais, “a ponto de precisar de borrifador de agrotóxico”.
Tal discurso é conveniente ao brutal corte nas verbas de ensino e pesquisa nas universidades operadas pelo governo Bolsonaro. O MEC bloqueou 12 mil bolsas de pesquisa da coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) só em 2019, cortando mais 5,6 mil bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do ano seguinte. Os gastos com universidades federais foram congelados e cortados. Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), somente no orçamento de 2021, por exemplo, há um corte de mais de 20% do orçamento em relação a 2020 – mais de um bilhão de Reais. Em algumas instituições – como a UFRJ ou a Universidade Federal de Alagoas – o corte passou dos 30%. Weintraub tentou ainda, por meio da Medida Provisória 895/2019, usurpar a competência das entidades populares em emitir as carteiras de identificação estudantil que garantem descontos em diversas atividades de lazer e educação.
O histriônico Weintraub foi substituído pelo mais discreto Milton Ribeiro que, com menos barulho, manteve a política da pasta. Além dos bastantes atuais cortes orçamentários, sobrevieram as tentativas diretas de censura às universidades, bem como a perseguição e o ataque aos docentes. Em fevereiro deste ano, o MEC emitiu um ofício circular à Rede de Instituições Federais de Ensino Superior pedindo a tomada de providências com o objetivo de “prevenir e punir atos político-partidários” nas mesmas. Era uma reação a um pedido do procurador-chefe da República em Goiás que, entre outras barbaridades políticas, questionou judicialmente a Sociedade Brasileira de Infectologia por ter desaconselhado o uso de medicamentos sem comprovação científica contra a Covid-19.
O Ministério voltou atrás na recomendação, após forte reação popular, mas o ambiente de perseguição, de ameaça e de autocensura está cada vez mais pesado. Em março, a pesquisadora Larissa Bombardi, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), pediu afastamento do cargo. Ela declarou que deixaria temporariamente o país após sofrer ameaças de morte e uma invasão de sua residência após uma polêmica com bolsonaristas por sua pesquisa sobre o uso de agrotóxicos no Brasil e suas consequências. Após a declaração, um dos cabeças dos ataques à professora – o ativista do agronegócio Xico Graziano – fez questão de reiterar em seu Twitter a cantilena imemorial direitista: “vagabundagem. Militante do PSOL, só fazia política. Negacionista, atacava a moderna agricultura”. Quer por falta de incentivo, quer por perseguição política, fato é que desde o golpe de 2016 há uma expressiva “fuga de cérebros” do país. Diversos pesquisadores que não enxergam futuro no Brasil para a continuidade dos trabalhos vão tentar a fonte no exterior.
Nossa Universidade do Brasil
A UFRJ tem um significado especial na história do ensino superior e da pesquisa científica do país, bem como uma importância atual efetiva na formação de pessoal qualificado e no desenvolvimento de soluções tecnológicas das mais diversas áreas. Por ser capital da Província do Brasil no século 18, por ter sido a única capital das Américas a sediar uma Corte Real europeia na história, entre 1808 e 1821, e por ter sido capital do Império e da República até 1960, as escolas superiores formadas na cidade – Engenharia, Medicina, Direito, Belas-Artes – acabariam estando na origem da própria constituição da ideia de universidade no país em 1920 – primeiro como Universidade do Rio de Janeiro e em 1937 como Universidade do Brasil, nome que guardaria até a reforma universitária de 1965, quando passaria a se denominar Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Foi para ela que a equipe de arquitetos do então Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) do Estado Novo elaborou um projeto de Cidade Universitária em 1936, em São Cristóvão, atrás da Quinta da Boa Vista. O grupo, ligado ao gabinete de Gustavo Capanema, era comandado por ninguém menos que Lucio Costa, teve consultoria do franco-suíço Le Corbusier e contou com Affonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer, Firmino Saldanha, Paulo Fragoso, Ângelo Bruhns e Jorge Machado Moreira. Naquela concepção estaria o germe de uma certa composição com uma praça resultando em uma praça que resultaria anos mais tarde no Eixo Monumental de Brasília. Desnecessário pontuar aqui que naquele grupo e naqueles projetos da então Universidade do Brasil estava sendo gestado um novo projeto de arquitetura moderna brasileira – aquela que viria a ser conhecida como “Escola Carioca”, atrelado a um novo projeto de desenvolvimento do país.

Coube a um dos membros da equipe, Jorge Machado Moreira, a tarefa de voltar a pensar os edifícios da universidade, como arquiteto-chefe no planejamento da Cidade Universitária, no Escritório Técnico da Universidade do Brasil (Etub). Entre 1949 e 1962, Moreira elaborou o plano geral do campus, projetou 12 edifícios e desenvolveu alguns que viriam a ser executados – ainda que parcialmente: Hospital das Clínicas, Instituto de Puericultura e Pediatria, Escola Nacional de Engenharia, Faculdade Nacional de Arquitetura – todos no Campus do Fundão, na Ilha do Governador.

Embora até recentemente o inconcluso Hospital Universitário tenha constituído o elemento mais marcante na paisagem urbana, o edifício da Arquitetura projetado em 1957 é ainda hoje seguramente o símbolo da Universidade do Brasil. Como no Palácio Capanema, sede do MESP, volumes horizontais de uso público trespassam o pilotis sobre o qual se eleva o bloco de aulas. O conjunto – também não construído na íntegra – hoje abriga a Reitoria, o Centro de Letras e Artes, a Escola de Belas Artes e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ. Consolidava-se ali um cânone de arquitetura universitária adotado em todo o país e mesmo no exterior.
Com renitentes problemas de manutenção e de conservação, o edifício acabou por se incendiar parcialmente na terça-feira, 20 de abril de 2021. As chamas atingiram a procuradoria da universidade e o Núcleo de Pesquisa e Documentação (NPD) da FAU. O projeto de prevenção e combate a incêndios fora elaborado pelo Escritório Técnico da Universidade, mas os cortes orçamentários não tornaram possíveis as obras. Poderiam ter reduzido a cinzas ali séculos de nossa memória, em mais de 200 mil documentos armazenados no NPD.

O incidente, a iminência da destruição, reflete o momento atual da UFRJ e, por assim dizer, do ensino e da pesquisa no país. Seu desmonte é parte de uma política imposta pelo grande capital que visa a sanar a crise estrutural do capitalismo à custa da pauperização de países considerados periféricos – sobretudo na África e América Latina. A nós não caberia, no cenário global, a produção de ciência e conhecimento, mas simplesmente fornecer commodities e mercado consumidor – uma fórmula do século 19 que retorna à vigência com a destruição dos direitos trabalhistas, que nos colocou de volta a um patamar de precarização equivalente a um século atrás. Se a universidade fecha, fecha-se o acesso ao passado e qualquer esperança de progresso futuro no Brasil. Ela é a espinha dorsal de nossa pesquisa tecnológica.
Para que se tenha uma pequena amostra do papel da UFRJ na garantia do bem-estar de nossa população, vejamos alguns aspectos relacionados à pandemia de Covid-19 que o mundo atravessa. Com a palavra a reitora e o vice-reitor da Universidade:
Realizamos testes moleculares padrão ouro por RT-PCR, enquanto a rede privada não dispunha desses testes diagnósticos. Nosso Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, o maior do Estado do Rio em volume de consultas, instalou um novo CTI e mais de 100 leitos de enfermaria para tratamento da Covid-19. A assistência aos pacientes esteve associada à geração de conhecimento científico. Realizamos estudos pioneiros de vigilância genômica, identificando novas variantes dos vírus; desenvolvemos testes sorológicos, e vacinas com tecnologia nacional estão na fase de testes pré-clínicos. Nossas perspectivas de retorno após a pandemia seriam muito piores sem essas ações.