Enquanto os EUA pegam fogo com intensos protestos pelo assassinato de George Floyd, a esquerda brasileira aplaude os motins. Será que estamos prontos para aplicar esse método aqui?

por Bibi Tavares
Mais uma vez, a súplica “eu não consigo respirar” sai da boca de um homem negro sob domínio de um agente branco. Assim foi o assassinato de George Floyd no dia 25 de maio por Derek Chauvin, um policial acionado por um supermercado em Minneapolis, EUA, por uma nota supostamente falsa de 20 dólares usada por Floyd para comprar um maço de cigarros. O vídeo gravado por Darnella Frazier deu vida a uma onda de protestos dentro e fora das fronteiras estadunidenses. Nele, Frazier registra Chauvin pressionando o joelho contra o pescoço de Floyd, que estava desarmado, imobilizado e algemado no chão, por quase 10 minutos. Após os primeiros 6 minutos, Floyd fica inconsciente, mas isso não é o suficiente para que o policial saia de cima dele. Segundo testemunhas, um outro policial chega a verificar o pulso de Floyd e não encontra batimentos cardíacos. Nenhum policial se move.
Não demorou muito para que esse e outros vídeos da ação de Chauvin viralizassem nas redes e instigassem a fúria principalmente do povo negro. No dia seguinte, a cólera tomou conta dos protestos que se iniciaram em Minneapolis, onde uma delegacia terminou a noite em chamas, e se estendeu por mais 25 cidades de 16 estados, onde até toque de recolher foi imposto. No sábado (30), os EUA chegavam ao 5º dia de protestos caracterizados principalmente por motins e saques, e os policiais envolvidos, apesar de terem sido demitidos, ainda não foram indiciados.
As imagens desses motins são fortes e deixaram muita gente da esquerda de boca aberta pela coragem e ausência de passividade da população negra estadunidense diante do assassinato de um dos seus. Ao mesmo tempo, é comum vermos no Brasil nomes e lideranças de esquerda destacando que determinada manifestação aqui foi pacífica, se orgulhando disso, principalmente quando há abuso policial. Geralmente o discurso é de que o ato começou pacífico mas grupos infiltrados ou isolados o transformaram em um ato violento, com quebra-quebra e saques.
Oras, por que admiramos os de lá e não incentivamos os daqui a se defenderem da mesma forma quando um jovem negro é morto por policiais em favelas? Pois esse é um fato recorrente, quase que diário. Também tem quem considere o povo brasileiro passivo demais e apático diante dessas violências perpetradas pelo Estado, mas se olharmos o histórico de protestos em ambos os países, percebemos uma boa diferença tanto nas motivações quanto em sua forma de organização.
Race Riot ou “distúrbio racial”
Traduzido de forma um tanto equivocada como “distúrbio racial”, race riot é um termo em inglês usado para caracterizar esses motins e saques que acontecem nos EUA como forma de protesto como consequência da violência que os negros sofrem. Em comparação com o Brasil, esses motins causados por violência racial possuem muito mais respaldo da esquerda por lá do que receberia aqui. Nos EUA, o quadro de segregação racial parece ter sido muito mais intenso do que no Brasil, em que há mais mecanismos de dissimulação do racismo.
A violência e opressão mais sistemáticas e explicitamente racistas serviram como condição dada para que os negros estadunidenses tentassem modificar sua realidade. Numa das respostas a esse cenário nascem os Panteras Negras em 1966, que em seu auge acumulou 5 mil militantes espalhados pelos EUA. Seu método de ação se dava através de brechas na lei, como a que permitia qualquer cidadão andar armado para se proteger e outra que permitia acompanhar ações da polícia. Assim, eles podiam fiscalizar de alguma forma abordagens policiais que considerassem racistas. O exemplo que se tenta dar aqui é que, quando se tem movimentos de esquerda que incentivam sua base a se defender da forma que for, como os Panteras Negras faziam, se cria uma cultura que leva a população negra a se defender e se amotinar, queimando prédios como o da Target e destruindo vidraças de bancos, quando um dos seus é aviltado pelo racismo.
Os race riots não começaram outro dia nos EUA:
Agosto de 1965: Seis dias de intensos protestos em Los Angeles pela prisão desnecessária de um jovem negro por policiais brancos. Nesse episódio, até a mãe do jovem foi detida por tentar protegê-lo.
Julho de 1967: Em Nova Jersey dois policiais brancos agem de forma racista com um taxista negro, gerando uma briga que culminou em cinco dias de motim da população negra.
Julho de 1967: O estado de Michigan é palco de longos cinco dias de saques e motins como consequência de uma intervenção policial num bairro negro, onde até a Guarda Nacional e policiais militares foram acionados. Os protestos se estenderam para outros estados.
Abril de 1968: O assassinato de Martin Luther King causa uma revolta de grandes proporções. Foram vários dias de saques e motins por 125 cidades dos EUA. O exército chegou a ser acionado, pois os protestos chegaram a 500 metros da Casa Branca.
Maio de 1980: Quatro policias brancos são inocentados após espancarem até a morte um motociclista negro por ele ter ultrapassado o semáforo vermelho. Como consequência, três dias de intensos protestos tomam conta de Miami.
Abril e maio de 1992: Em Los Angeles, mais quatro policiais brancos são inocentados pelo espancamento de Rodney King, um motorista negro. O motim toma conta de outras cidades como São Francisco e Nova York.
Abril de 2001: Um jovem negro e desarmado é morto por um policial branco em Ohio. O resultado: quatro dias de motim e alguns mortos.
Agosto de 2014: O estado de Missouri é palco do assassinato de Michael Brown, de 19 anos, por um policial branco. Dez dias de saques e motins tomam conta da região, e em novembro do mesmo ano mais protestos reacendem após as investigações do caso serem abandonadas.
Esses foram os principais casos de Race riots nos EUA, e adequadamente nos mostram que os poderosos dias de protestos como este último por George Floyd não vêm de hoje.
Os motins brasileiros ou “food riot”
Por mais que raça e classe se cruzem em todo tipo de análise, os saques e motins e a situação do povo negro no Brasil não estão intimamente ligados como nos EUA. Esses intensos protestos aqui no país estão mais associados à questão da fome e pobreza do que a questões raciais. De 1917 a 1922, uma série de greves de massas foi organizada e apoiada por diversos grupos de esquerda e sindicatos combativos que consideravam o uso da violência como forma legítima de protesto contra a situação sócio-política. Nesses cinco anos, saques e motins se estenderam pelas cidades de São Paulo, Recife, Porto Alegre, Salvador e Rio de Janeiro, única e exclusivamente por conta de lideranças centralizadas que apoiaram suas bases.
Contudo, essa combatividade não durou muito e o que pareceu ser o começo de uma cultura de motins contra a opressão de classe, foi aos poucos sabotada e desencorajada. O exemplo inicial vem com a greve de 1962, período onde as organizações e lideranças políticas de esquerda estavam se distanciando do uso da violência como forma de protesto. Nessa época os motins foram pouco efetivos e sua organização já bem descentralizada e com pouco apoio.
A fim de evitar que esses motins reacendessem, a burguesia trata de cooptar ao poucos os sindicatos, e de forma quase que imperceptível os transforma em organizações “democráticas” que, de repente, prezam por atos pacíficos. Aos poucos, grupos políticos de esquerda foram se desapegando da realização de saques e motins. Na época, o PCB chegou a afirmar que esses saques e violências eram “inconsistentes com seu programa de resistência estável e de longo prazo“.
Ainda hoje, a esquerda brasileira se distancia da autoria de qualquer protesto menos pacífico, incorporando os trajes envernizados da burguesia, como se tivessem que sentir vergonha de seu passado combativo. Quando Marielle Franco é vítima de crime racial, de cunho fascista, o que se tem são caminhadas em silêncio. Quando Pedro Gonzada, negro, de 19 anos, é asfixiado por um segurança branco, a mesma coisa. Grupos de esquerda organizam protestos em silêncio, com velas, caminhada, plaquinhas de “Black Lives Matter” e palavras de ordem que expressam menos do que a realidade é.
Ao mesmo tempo, aplaudem os race riots em outros países, o que é contraditório. O fato é que não adianta muito comparar um país com o outro. Enquanto no Brasil o histórico de greves é extenso, nos EUA o que toma conta é a luta racial. “Cada lugar em sua coisa”. Pode-se aprender muito com eles e talvez isso já esteja acontecendo por aqui. Num protesto antifascista na Av. Paulista neste domingo (31), torcidas organizadas se mobilizaram e o fundador da Gaviões da Fiel afirmou: “se os partidos não se organizam, o povo vem pra rua“.
EUA e Brasil são completamente diferentes em relação à questão racial. Enquanto lá os negros correspondem a apenas 13% da população, o Brasil já é um país de maioria negra. Isso faz com que aqui a noção de racismo de dilua. Já se disse que o americano é hifenado, ou seja, existem o afro-americano, o ítalo-americano, o nipo-americano e até o anglo-saxão que também é hifenado. Isso fez com que as características culturais de cada segmento sejam preservadas. Não é como no Brasil em que a miscigenação como que apagou as questões culturais de cada etnia. Por isso, quando a polícia assassina um negro, a noção para a maioria não é a de que houve racismo. Foi apenas mais um assassinato cometido pelos órgãos de repressão do estado.
Claro que o Movimento Negro trabalha no sentido de que essas questões culturais sejam trazidas de volta, mas isso é a minoria da minoria. O negro brasileiro muitas vezes nem tem noção de que o é. Se diz moreninho, escurinho etc.
Muito bom!
[…] é difícil lembrar como a polícia dos EUA tratou as manifestações do movimento negro após a morte de George Floyd em maio do ano […]