As milícias, a polícia e o presidente – dos Estados Unidos

Respondendo a uma pergunta em Washington, Trump praticamente defendeu atirador que assassinou dois manifestantes em Kenosha

Imagem: Brandi Lyon Photography
por Danilo Matoso

Em 26 de agosto último, O Partisano mostrou a continuidade dos intensos protestos iniciados em maio contra a segregação racial e social nos Estados Unidos. O clima de confronto tem levado a um recrudescimento da brutalidade policial cotidiana, provocando mais mortes arbitrárias e mais mobilizações, levando inclusive à articulação de uma greve geral. Naquela semana, a cidade de Kenosha, Wisconsin, havia se tornado o foco de novos conflitos após Jacob Blake, 29, negro, ter sido alvejado com sete tiros pela polícia quando abria a porta de seu próprio veículo, em que o esperavam seus filhos.

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No mesmo dia 26, milícias de brancos de extrema-direita em Kenosha convocaram seus membros a saírem às ruas contra os manifestantes: “alguns patriotas gostariam de pegar em armas e defender nossa cidade hoje à noite dos bandidos do mal”? De fato, mais tarde, diversos grupos de homens com armas longas seriam vistos intimidando manifestantes nas ruas da cidade, comunicando-se por rádio em rede mesmo quando sozinhos. Alguns abordavam a população, outros posicionavam-se como franco-atiradores prontos a disparar. O adolescente Kyle Rittenhouse, 17, branco, imberbe, saiu às ruas com um fuzil de assalto AR-15 “emprestado de um amigo” preso ao peito e ao ombro por uma bandoleira. Ele mora na pequena Antioch, Illinois, e como diversos outros ativistas de direita, viajara 30 Km até Kenosha para confrontar os manifestantes.

Por volta das 23h45, diversas ruas da cidade estavam bloqueadas pela polícia ou pela população. A temperatura subia enquanto uma testemunha identificada somente como Jeremiah, 24, negro, tentava em vão sair da região dos conflitos com seu veículo. Um repórter abordou-o para uma entrevista. Foram interrompidos por uma mulher que dizia estar cansada de gente como ele ateando fogo à cidade. Em seguida, um homem armado abordou o grupo e advertiu: “Prepare-se, se você vier na nossa direção, nós vamos abrir fogo”. Em seguida, ao tentar cortar caminho por um estacionamento, deparou-se com Rittenhouse apontando-lhe seu fuzil. Jeremiah não se intimidou e seguiu em frente.

Talvez, apesar do fuzil, o rosto infantil de Rittenhouse não inspirasse o medo esperado nos manifestantes, mas ele e seus colegas seguiam tentando intimidá-los. Alguns minutos depois Joseph D. Rosenbaum, 36, branco, botava o adolescente para correr pela rua, chegando a arremessar um saco de compras em suas costas em frente a uma oficina mecânica. Ao aproximar-se, aparentemente tentando tomar a arma do jovem, recebeu nove disparos e tombou entre dois carros estacionados. Rittenhouse, parecendo perplexo, ficou alguns segundos parado ao lado, enquanto alguém tentava socorrer a vítima. Empunhou um rádio ou telefone e comunicou: “acho que acabei de matar alguém”.

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Imagem: reprodução

Correu então pela Sheridan Road, uma larga avenida cheia de manifestantes, enquanto testemunhas anunciavam: “ele atirou no cara”, “segurem-no”, “derrubem-no”, e passaram a segui-lo de modo disperso aos gritos. Confuso, o jovem tropeça e cai. Algumas pessoas tentam se aproximar para tomar o fuzil, entre eles Anthony Huber, 26, branco, com um skate na mão. Deitado, Rittenhouse mata-o a queima-roupa e dispara em todos à volta, ferindo ainda Gaige Grosskreutz, 26, branco. Ele se levanta, e continua a correr cambaleando no meio da rua, enquanto todos à volta tentam se proteger. Dois homens também brancos com fuzis apontam para adiante e orientam: “corra naquela direção”!

Na esquina, três blindados e uma viatura da polícia estavam paradas. Com o AR-15 pendurado no ombro e as mãos para cima em sinal de rendição, ele caminhou na direção deles. Populares continuavam gritando que ele havia matado pessoas há pouco. Os blindados dão ordem que ele saia da frente, e avançam em marcha lenta rumo aos manifestantes e aos mortos ao fundo. Ele deixou a zona de conflito calmamente. Sua prisão só ocorreria no dia seguinte, em Illinois, após a comoção pelos assassinatos.

A polícia estava apoiando abertamente a ação das milícias de extrema-direita naquela noite. O próprio atirador foi filmado conversando com policiais por volta das 22h. Ele teria dito ao cinegrafista: “as pessoas estão se machucando, e nosso trabalho aqui é proteger o comércio, e parte do meu trabalho é também ajudar as pessoas”. Proteger a propriedade privada local contra manifestantes era parte da pauta de convocação às milícias de extrema-direita. As forças policiais souberam mostrar gratidão.

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Meia-hora antes do tiroteio, um blindado ordena dispersão dos manifestantes pelo alto-falante, lançando bombas de gás. O gás atinge o grupo armado de civis, entre eles Rittenhouse, que recua para a porta de uma loja. A voz metálica do veículo se torna amigável e dirige-se a eles. “Vocês precisam de água? Sério, precisam de água?” O adolescente circula com desenvoltura entre os blindados e estende a mão. Abre-se uma escotilha e um policial lança um copo de água mineral a outro miliciano: “temos alguns, temos que guardar alguns mas vamos dar-lhes alguns. Nós gostamos de vocês, pessoal, gostamos mesmo”. Os blindados voltam a se mover, e retomam a exortação metálica aos manifestantes: “vocês precisam sair daí. Esse é o último aviso. Vocês vão para o sul e nós vamos sair desse quarteirão. Esse é o último aviso. Dispersem!”

O apoio às milícias armadas não vem só do “guarda da esquina”. Em meio à campanha das eleições presidenciais, os apoiadores do presidente Donald Trump vêm organizando seus próprios protestos em favor das forças de repressão, chamados Back the Blue [“Apoie o Azul”, em referência à cor azul dos uniformes policiais]. Em 31 de julho, Trump declarou em discurso na Flórida: “eu apoio o azul”, após afirmar que “esse vírus da China [China virus, como ele se refere ao coronavírus] nunca deveria ter chegado até nós”. Desnecessário lembrar que, para Trump, os protestos Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] e o movimento Antifascista são tratados por “vândalos”, “agitadores”, “anarquistas profissionais”, “criminosos” etc..

Trump, do Partido Republicano, esteve na última terça (1º) em Kenosha, apesar dos apelos em contrário do governador e do prefeito locais, ambos do Partido Democrata, temerosos de que a visita acirrasse os conflitos. Eles próprios, porém, haviam pedido a presença das tropas federais da Guarda Nacional na cidade de cem mil habitantes. Na véspera, em Washington, o presidente contemporizara os assassinatos: “aquela foi uma situação interessante. Ele estava tentando fugir deles. Parece que ele caiu e eles o atacaram muito violentamente (…). Ele estava num apuro muito grande. Ele teria sido – provavelmente teria sido – morto, mas isso está sendo investigado”.

Já no local, declararia apoio à repressão, sentenciando: “estes não são atos de manifestantes pacíficos, mas realmente de terrorismo doméstico”, afirmando que “para por fim à violência política, temos que confrontar a ideologia radical, temos que condenar a perigosa retórica anti-polícia”.

A retórica dos dirigentes de extrema-direita no mundo vem seguindo a cartilha da primeira metade do século passado. Em lugar de se colocarem como os representantes que são de grandes corporações, afirmam que estão “do lado dos patriotas” (de todo o mundo) contra os “judeus”, contra as forças “globalistas”, contra o “multilateralismo”, contra o “marxismo cultural”, contra o “petismo” ou contra o comunismo. A luta dos “patriotas” contra esses inimigos em comum – devidamente apimentada com uma boa dose de mentiras e teorias da conspiração, como a recente QAnon – tornaria justificável socialmente toda ação extremada de indivíduos ou grupos em defesa de sua “pátria”, de sua “propriedade”, de sua “família”, de sua “tradição” etc.. Assim surgiram os Camisas-Negras na Itália de Mussolini, assim surgiram os Camisas-Pardas na Alemanha de Hitler, assim surgiram os Camisas-Verdes no Brasil de Vargas.

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Kyle Rittenhouse, de feição infantil, não surgiu ao acaso, por iniciativa própria, armado com um fuzil “emprestado” para defender a propriedade privada de comerciantes a meia-hora da cidade onde mora. Ele foi arrastado para os conflitos de rua por uma onda obscurantista que está varrendo o mundo com cada vez mais força. Talvez hoje em dia não seja mais uma questão de cor da camisa, mas o potencial de letalidade desse movimento é similar ao de um século atrás. Seu objetivo é o mesmo: esmagar os movimentos populares e as organizações dos trabalhadores. Se o povo norte-americano sair das ruas, eles tomam conta.

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