Paulo Mendes da Rocha: um arquiteto que entendia do riscado

O mundo se despede de um dos grandes artífices da arquitetura. Os arquitetos perdem um mestre que ensinou a pensar e a construir por meio do desenho

Imagem: reprodução
por Danilo Matoso

No último domingo (23), morreu aos 92 anos o arquiteto Paulo Mendes da Rocha. No campo do projeto, seguramente o maior arquiteto brasileiro em atividade e um dos de maior destaque internacional – nas palavras da Folha de São Paulo, “o último gigante” desse ofício no país. Desnecessário e repetitivo reafirmar aqui, para além de um breve resumo, sua brilhante trajetória, seus feitos, sua importância para gerações de profissionais – até porque já o fizemos quando da polêmica do exílio de seu acervo para Portugal.

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Ele ganhou todos os prêmios possíveis a uma estrela internacional. Entre eles o Pritzker (2006), duas vezes o Mies van der Rohe barcelonês (1999-2000), o Leão de Ouro de Veneza (2016), as Medalhas de Ouro do RIBA [Royal Institute of British Architects] (2017) e da UIA [União Internacional dos Arquitetos] (2021). O capixaba ícone da escola paulista de arquitetura projetou de tudo: de cadeiras a cidades, passando por casas, caixas d’água, centros culturais, ginásios, estádios, escolas, clubes, museus e tudo que se pode desenhar.

A correspondência entre o traço ao mesmo tempo leve e preciso de seu desenho e a concisão elegante de sua arquitetura é, aliás, o que distingue sua obra. Guilherme Wisnik apontou que o arquiteto “tinha uma compreensão do humano orientada pela técnica, como homo faber” – o “homem fabril”, certamente numa menção à expressão consagrada de Hannah Arendt. Diríamos ainda que, dentro da classe dos homines fabri, ele era um peritus graphidos – hábil desenhista, ou perito em desenho gráfico.

Coisas do ofício

Para Vitrúvio (séc. I a.C.), um arquiteto deverá ser “versado em literatura, perito do desenho gráfico, erudito em geometria, deverá conhecer muitas narrativas de fatos históricos”, e ainda “ouvir diligentemente os filósofos, saber de música, não ser ignorante de medicina, conhecer as decisões dos jurisconsultos, ter conhecimento de astronomia e das orientações da abóbada celeste”. Tudo isso Paulo Mendes da Rocha era, fazia e sabia. Basta lembrar da permanente maiêutica socrática que aplicava como método de pensamento, ou de seu depoimento de uma mostra sobre o romance Grande sertão: veredas, organizada por Bia Lessa no Museu da Língua portuguesa. Mas sobretudo ele era um habilidoso desenhista. O desenho – a régua ou a mão livre – era visivelmente o modo como ele pensava a arquitetura. Assim como a escrita é a maneira de pensar dos contadores de histórias, a álgebra é a forma de pensar dos matemáticos, o desenho é a forma de pensar de um sem-número de artífices, dentre eles muitos dos arquitetos – parafraseando Maria Helena Flynn, amiga e colaboradora do arquiteto.

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O desenho, objeto concreto, força o pensamento a um diálogo com a realidade para além da ideação subjetiva pura. Há uma métrica, um jogo de harmonias próprio de plantas, cortes, elevações, seções e perspectivas que é próprio do desenho arquitetônico. O equilíbrio gráfico representa não apenas uma certa harmonia formal mas também um saber construtivo inerente às edificações: a relação com o solo e a natureza, a estrutura, os vãos, os acabamentos possíveis, as transparências. Desenhar é uma maneira de construir, para profissionais da cepa de Paulo Mendes da Rocha.

O arquiteto frequentemente aparecia nos jornais e revistas em fotos no seu escritório envidraçado, no prédio do Instituto dos Arquitetos do Brasil, na rua Bento de Freitas, 304, esquina com General Jardim – centro de São Paulo. Atrás de si, livros, mapotecas, caixas de arquivos, maquetes, paredes marcadas por desenhos que ali estiveram colados, uma lousa verde em que costumava desenhar. É um cenário prosaico para todos os arquitetos do século 20 – que passaram a vida debruçados sobre uma prancheta e não olhando para a tela de um computador asséptico – ao mesmo tempo em que sua simplicidade despojada mostra algo do caráter de quem ali trabalha, um artífice numa oficina em que se fabrica algo.

O riscado

Desenhos de Paulo Mendes da Rocha já haviam aparecido nas diversas revistas e livros em que divulgava sua obra desde que publicou “Duas cadeiras” num artigo do número 219 da revista Acrópole em 1957. Porém eles vieram à tona de modo revelador na última década, na edição do projeto completo do Cais das Artes, em Vitória (Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Espírito Santo, 2010), na Obra Completa organizada por Daniele Pisani (Gustavo Gili, 2013), num pequeno mas precioso volume organizado por Catherine Otondo sobre a Casa Butantã (Ubu, 2016). O traço livre dos croquis de Paulo Mendes da Rocha ali se desenvolve em dois níveis: nos anteprojetos e desenhos técnicos gerais, uma síntese cuidada da forma no delineamento de seus contornos sem qualquer traço a mais que o necessário; no detalhamento uma definição precisa e cuidada dos elementos e componentes que dão forma e dimensões aos materiais.

Pavilhão do Brasil, prancha com croquis e memorial, Osaka, Japão, 1969. Arquiteto Paulo Mendes da Rocha e equipe Digitalização Daniele Pisani. Fonte: Portal Vitruvius. Acervo Paulo Mendes da Rocha

A síntese dos desenhos preliminares encontra certo reflexo num certo “brilho da simplicidade” – para usar a expressão de Glauco Campello – próprio de nossa arquitetura. Essa economia de recursos pode ser vista tanto nos desenhos de Oscar Niemeyer e seu escritório quanto nos habilíssimos projetos executivos desenvolvidos no escritório de João Vilanova Artigas, que lograva desenvolver plenamente uma casa primorosa em menos de dez pranchas – e que, pode-se argumentar, limitava a complexidade de sua arquitetura ao passível de ser reduzido a poucos desenhos. Há aí um sentido de tradição nacional que supera em muito – na qualidade de sua síntese – mesmo os aclamados mestres do minimalismo como Mies van der Rohe ou Marcel Breuer (ambos influenciados na segunda metade de suas carreiras por uma certa draftsmanship maximalista estadunidense).

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Desenhos da Casa Butantã. Fonte: Otondo, Catherine. Paulo Mendes da Rocha: Casa Butantã. São Paulo: Ubu, 2016.

O detalhamento da casa projetada em 1964 para moradia da própria família do arquiteto no bairro Butantã, em São Paulo, mostra não apenas um natural cuidado com todos os detalhes mas também uma reinvenção de praticamente todos os elementos da obra, num exercício reflexivo em que desenho e construção aparentam ser etapas de vários experimentos. Tábuas corridas na verdade funcionam como um piso elevado sobre o qual as tomadas são diretamente perfuradas; as paredes de argamassa armada com 4cm de espessura demandam um desenho da tubulação externa de água fria e água quente – que no sanitário faz as vezes de toalheiro –; a porta pivotante sem marcos recebe escovilhas nos topos para vedação; as janelas em vidro temperado com articulação projetante se abrem sozinhas ao serem destravadas, dentre muitos outros engenhos.

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Como se sabe, “risco” é o nome pelo que se conhece o projeto arquitetônico na tradição da arquitetura luso-brasileira. É, nas palavras de Lucio Costa, o “desenho visando a feitura de uma determinada obra”. Esse era o ofício de Paulo Mendes da Rocha portanto: riscar. E resulta que, como ninguém entre nós, ele entendia do riscado.

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