Liberalismo político não é democracia

por Pedro Fassoni Arruda

Este é o primeiro texto da série Sobre o Liberalismo.

Tá rolando uma confusão gigantesca em torno do conceito de liberalismo. Permitam-me tentar colocar alguns pingos nos is. Comecemos pelo liberalismo político (trataremos do liberalismo econômico depois).

1. O liberalismo político tem sua matriz no pensamento de autores como John Locke, Os Federalistas, Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill, entre outros.

2. Essa doutrina propõe a limitação dos poderes do Estado e a defesa dos direitos individuais. Resulta das lutas da burguesia contra o Estado absolutista, numa época em que a burguesia poderia ser considerada uma classe revolucionária.

3. Mas como limitar os poderes do Estado? Dividindo-o em diferentes ramos: Executivo (administração pública), Legislativo (promulgação de novas leis ou revogação das existentes) e Judiciário (aplicação das leis aos casos concretos). Este é o beabá e todo mundo deve saber, assim penso…

4. As revoluções burguesas ditas “clássicas” podem ser consideradas episódios dessa luta: a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688-89), a Revolução Americana (Guerra de Independência entre 1776 e 1783) e a grande Revolução Francesa de 1789.

5. Vamos pegar como exemplo a Revolução Americana (ou estadunidense, como eu prefiro). O resultado da Independência foi o surgimento de um Estado liberal, cujos traços gerais foram delineados na Constituição aprovada na Convenção da Filadélfia, em 1787. A Constituição é todinha liberal: tem a separação do poder nos três ramos: Presidente da República, Congresso bicameral e Suprema Corte de Justiça (além dos Executivos e Legislativos estaduais e dos tribunais inferiores)…

6. No liberalismo político político estadunidense, os presidentes são eleitos a cada quatro anos, em eleições “idôneas”, e existe a possibilidade de alternância no governo entre partidos rivais. Os representantes do povo no Congresso fiscalizam os atos do presidente da República, fazem as leis etc. A Suprema Corte é a “guardiã” da Constituição, e exerce algum tipo de controle e fiscalização dos demais poderes. Nesse sistema, onde teoricamente nenhum poder está acima dos demais, existe uma interpenetração que faz com que “o poder se torne um antídoto contra o próprio poder”, como dizia Alexander Hamilton.

7. Então ali estão consagrados os direitos individuais, como a vida, a liberdade e a segurança. O povo ou seus representantes podem remover o presidente, não o reelegendo ou aprovando o impeachment. O calendário eleitoral é sempre respeitado, existe alternância no governo, o princípio da representação assegura um certo equilíbrio entre governo e sociedade etc.

8. Tudo isso serve para caracterizar o liberalismo político como um regime democrático, certo? ERRADO! O problema é confundir liberalismo político com democracia, algo que nem mesmo um liberal como Norberto Bobbio fez. Na sua gênese, o liberalismo era tudo, menos democrático. John Locke, Thomas Jefferson e muitos outros eram defensores da escravidão e proprietários de escravos. Quando eles diziam “povo”, estavam se referindo UNICAMENTE aos proprietários de terras, homens brancos e livres. Não incluíram as mulheres, os negros, os brancos “livres” que eram pobres e não tinham propriedades. Todos eles eram contra o voto universal, desconfiavam profundamente do povo.

9. “Estado de direito” e “liberalismo político” não são necessariamente democráticos. Mesmo um autor insuspeito, como o cientista político estadunidense Robert Dahl, mostrou que mesmo na segunda metade do século XX o sistema político do seu país não poderia ser considerado democrático. Leiam seu livro “How democratic is American Constitution?”.

10. O Estado liberal estadunidense é a maior máquina de guerra da história. Em nome da liberdade individual, seus líderes “carregam a democracia” em drones, mísseis, caças supersônicos e gigantescos porta-aviões. Na Grã-Bretanha, o liberal Winston Churchill foi o responsável pelos maiores genocídios do seu império, entre a primeira e a segunda guerra mundiais. Hannah Arendt era racista e defendeu o regime de segregação racial nos EUA em pleno século XX. Eu poderia pincelar centenas e milhares de exemplos na história de como os defensores do liberalismo usaram essa ideologia para oprimir e subjugar outros povos e grupos sociais.

11. Marx estava certo quando explicou as revoluções burguesas da época moderna: a burguesia emancipou apenas a si mesma. Lutou contra os privilégios de outros grupos mas não abriu mão dos seus próprios privilégios. Usou a violência para conquistar (e se manter) no poder e agora acusa os oprimidos de serem violentos. Foi revolucionária, mas tornou-se conservadora assim que conquistou o monopólio do poder. A democracia é apenas uma contingência, não uma necessidade estrutural para o funcionamento desse sistema capitalista.

4 comentários

  1. Hanna Arendt racista???? De onde tirou isso? Bem a constituição é para o povo, os tempos mudam, os costumes também, portanto a concepção de povo também muda. O Direito se molda aos costumes e ao contexto histórico. A constituição estadunidense é clara e objetiva. O problema dos Estados Unidos não é a constituição. Os direitos individuais são direitos de todos, mas não são absolutos, são direitos até certo ponto, pois não podem colidir com os direitos dos outros. Quando assim se toranam deveres.Direitos e deveres andam juntos. Não foi preciso fazer uma CF como a do Brasil com mais de 200 artigos. Por que? Não adianta querer comparar Estados Unidos com Brasil. Colonização totalmente diferente e o conceito de nação também. Por favor cite suas fontes. Isso não é fato. Se não você se torna o famoso “fonte: meu próprio cérebro porque me acho intelectual (narcisista) portanto não preciso citar fontes.

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  2. pontos a se considerar:
    1- O autor focou demais nos Estados Unidos
    2- O autor tá precisando ler T.H. Marshall e schumpeter, o que chamamos hoje de democracia é frut de um processo histórico
    3- O fato dos fundadores dos EUA serem donos de escravos não invalida o legado do liberalismo

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