General Cloroquina

Pra quem se preocupa com as credenciais para o ministério, a cloroquina preserva entre seus mais de 60 efeitos colaterais os de sua substituta na prevenção da malária, embora não o efeito terápico contra as novas linhagens de plasmódio

Sai teich entra cloroquina
Imagem: Brunno Sarttori
uma crônica de Marcus Dunne

De vetusta prosápia, seu ancestral mais remoto, a quinina, era conhecido dos Incas, remédio para a malária com direito a mito (sim!), coqueluche no tratamento da moléstia desde a feliz descoberta das Índias Ocidentais. A quinina, ou quina, e o quinino, seu derivado medicinal, são tóxicos em doses altas, e fluorescentes, como sabe quem já portou sua gin-tônica, febre do verão passado, sob a luz-negra das baladas – o drinque, não me acusem de extemporâneo, foi inventado pela Inglaterra Imperial para que marinheiros e soldados caíssem de bêbados antes de se intoxicar: ficavam protegidos da malária sem mais efeitos colaterais que a ressaca, de resto usual entre a gente marinheira já acostumada ao rum com limão, para evitar o escorbuto.

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Além da criação do clássico drinque, o XIX viu a já então América, em homenagem a Américo Vespúcio, que morreu de malária,  perder o monopólio sobre a produção: a Holanda contrabandeou as sementes para a Indonésia, como a Inglaterra faria com a seringueira anos depois. Essa a situação na Segunda Guerra, quando o arquipélago foi tomado pelos japoneses e os estoques na Holanda pelos alemães, com duas consequências: os EUA, com pesadas baixas para a Malária, tanto foram colher folhas e cortiça nos Andes como puseram seus químicos para sintetizar correlatos, a origem da recente, porém vasta, família, marcada por maior toxicidade e eficiência menos duradoura do que o fitoterápico original e sem patente.

A história militar da família é longa, mas pouco conhecida, até porque os precavidos oficiais estadounidenses não fazem constar dos prontuários de seus praças as drogas que lhes ministram, evitando incorrer no risco de perder dinheiro em reparações pelos efeitos colaterais de alguma droga suspeita aos olhos da FDA, afinal os soldados não estavam dispostos a perder mais do que a vida. O primeiro desses sintéticos, mepacrina, fora desenvolvido antes pelos alemães, como todos os demais testadas pelos estadounidenses, e causava terrores noturnos, pele e olhos amarelos e psicose, nem sempre passageira. No entanto, foi a opção para aquele momento, dentre a enxurrada de outras drogas que surgiram, estava a cloroquina, arquivada como tóxica por alemães e estadounidenses, no que foi considerado um erro pelos alemães ainda durante a guerra, e depois seria a droga anti-malária oficial das forças armadas estadounidenses, a partir de 1946, sendo substituída pela mefloquina em 1986, por já não ser efetiva contra a malária.

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A mefloquina, sem ser nossa vedete, merece parágrafo próprio, por ter estrelado o que os soldados estadounidenses na Somália, nos anos noventa, e no Afeganistão até 2013, chamavam de Segunda da Mefloquina, sem graça, Quarta Doida e Domingo Psico, já que a dose para a semana era aplicada num só dia. Curiosamente, a aeronáutica deixou de usá-la no começo do presente século, o exército só em 2013, aparentemente porque o prejuízo é maior com um psicótico pilotando um avião do que um tanque, para as forças armadas, não para o alvo, civis inclusos, já que as drogas substitutas são mais caras. A investigação de uma série de assassinatos das respectivas esposas cometidos por ex-soldados em 2002 perdeu o foco na mefloquina porque os casos envolviam infidelidade, já o episódio de Law and Order SVU, Goliath, 6.23, que aborda o caso, vai do crime passional ao dano neuropsiquiátrico causado pela droga, e o interesse da indústria farmacêutica.

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Pra quem se preocupa com as credenciais para o ministério, a cloroquina preserva entre seus mais de 60 efeitos colaterais os de sua substituta na prevenção da malária, embora não o efeito terápico contra as novas linhagens de plasmódio. Andava esquecida, relegada ao tratamento de doenças menos comuns, como lupus, ou que não rendem contratos tão bons, como a artrite, até que um médico francês no mínimo controverso, Didier Raoult, coautor de mais publicações do que poderia ter lido, de um livro questionando a evolução e colunas em jornais negando o aquecimento global, enfim, até que esse marselhês excêntrico trouxe a cloroquina à baila baseado em um estudo, desrespeitando os protocolos franceses, com 24 pacientes de covid-19, dos quais 18 responderam bem, publicado não em revista científica, mas em seu canal do youtube.

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A cloroquina, arquivada por alemães e estadounidenses quando fenobarbital era ansiolítico e metanfetamina estimulante, depois tirada da gaveta por ambos, volta como aposta alta, bancada por Trump e Bolsonaro. Caso dê certo, é derrota da ciência rigorosa, caso dê errado, será o desastre anunciado pela preocupação da comunidade científica, dado o histórico da droga. A relação direta de Trump com a empresa fabricante, Sanofi, foi aventada, mas monta a parcos $ 1.300, tem mais a ver com a encenação de guerra contra as organizações mundiais, como a de saúde, que Trump em parte encena para o seu eleitorado e seu cãozinho leva às últimas consequências, e com o fato de os EUA e, por conseguinte, o Brazil, termos ficado de fora da busca pela vacina disponível a todos.

Links:
An anti-malaria drug may have inflicted permanent neurological injuries on some servicemembers
Historias de la malaria: Las drogas sintéticas
The Malaria Project: The U.S. Government’s Secret Mission to Find a Miracle Cure
Vacina contra covid-19 abre guerra diplomática internacional
The Renegade Scientist Behind Chloroquine, Donald Trump’s Miracle Coronavirus Cure
The Trumpian French Doctor Behind the Chloroquine Hype
Trump has a distant financial link to a pharma giant that makes the drug he’s been pushing to fight COVID-19 — but it’s probably worth less than $1,000

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