Pindura

“Porque eu sou só o Barbeiro. Se fosse advogado, médico ou engenheiro você lembraria. Além do mais, se você se importasse, lembraria de trazer o dinheiro hoje”

Imagem: Mikael Damkier
por João Teixeira

Como de costume quinzenal, o Polaco deu uma passada na barbearia para fazer seu tradicional cabelo e barba.

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– Tá feito, chefe. Dá uma olhada. É isso aí?
– Maravilha, tá ótimo. Quanto fica?
– Vinte reais, chefia.
– Ok, passa cartão?
– Não, não. Aqui não temos máquina.
– Então eu passo aí amanhã e acerto.
– Você não vai lembrar.
– Vou sim, por que não?
– Porque eu sou só o Barbeiro. Se fosse advogado, médico ou engenheiro você lembraria. Além do mais, se você se importasse, lembraria de trazer o dinheiro hoje, já que vem aqui a cada quinze dias e sabe que não temos máquina de cartão. Ou acusaria de início que estava desprovido da grana e pediria a gentileza. Mas eu sou só o Barbeiro, não é, doutor? Sabe, chefe? Eu pensava que era só boato, mas essa sua gente é mão-de-vaca de verdade, não é mesmo?
– Minha gente?
– É, ué? O senhor não é judeu?
– Olha lá, meu camarada! Isso daí já é antissemitismo, viu?
– Anti semi nada, doutor. Eu nem sei o que isso significa, mas agora entendo a fama de vocês.
– Retire o que disse!
– Pois não retiro. Amanhã eu retiro, quando o senhor me pagar. Uma ofensa por outra, muito justo não acha? Amanhã você me paga e eu me retrato, não tem grilo.
– Mas eu não te ofendi, rapaz.
– Como não? Tomou meu tempo em troca de vento. Isso não é ofensa? Acredito que o senhor pensa que eu me alimento de ar, ou que tenho algum acordo com o trocador do coletivo, que me deixa tomar o transporte de graça. Só pode ser. O dinheiro que o senhor me deve, preciso hoje, não amanhã. Se hoje não precisasse, ficaria em casa com os pés para o alto, assistindo um bom debate sobre o campeonato paulista, e amanhã viria trabalhar, não acha?
– O que eu acho é que o senhor está muito nervoso, e foi desrespeitoso. Aqui não venho mais.
– Pois não venha. O problema é que a única coisa que vocês se importam é se alguém falou dos Judeus. O holocausto, não é mesmo? Assunto delicado. Pois aposto e ganho, que o senhor não esteve lá. Tudo bem tirar a água daquelas pobres crianças na Faixa de Gaza, não é mesmo? A única coisa que não pode, é falar de judeu, não é?
– Você já não está falando coisa com coisa.
– Pois é, chefia. Quando mexem no bolso do cidadão ele não consegue pensar direito. Aí vale tudo. Aliás, acho que esse é o problema do mundo, não é mesmo? Se os bancos geridos pela sua gente não promovesse um roubo sistemático da população por meio de taxas de juros absurdas, talvez o povo conseguiria raciocinar um pouco melhor.
– Chega dessa empáfia! Vou embora, passar bem!

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No dia seguinte, pelo final da tarde, o Polaco apareceu na barbearia, com a quantia devida.

– Aí está. Vinte reais. Como eu disse, aqui não venho mais.
– Obrigado. Olha doutor, queria pedir desculpas pelo que eu disse ontem. Não se pode generalizar. Responsabilizar todos pelas coisas que uns e outros fizeram, ou fazem. Sei que você não tem nada a ver com o que acontece lá em Israel. Nem com os juros dos bancos. É o seu povo, sua cultura e a sua religião. Acho que fui desrespeitoso com a história do povo Judeu. Retiro o que disse ontem.
– Desculpas aceitas. De qualquer forma, vou procurar outro salão para me atender. Em Higienópolis, ou no Bom Retiro. Prefiro conviver com quem realmente entende o quanto sofremos. Tenha uma boa semana.

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– Doutor, só uma coisa.
– O quê?
– É que aqui tem vinte reais.
– Sim. Os vinte que eu pendurei. Tchau, passar bem.
– Doutor.
– O quê há?
– Sabe, ontem após a nossa discussão, eu fiquei pensando. Realmente me admira a destreza que os senhores tem para os negócios. Não se pode crucificar um povo por ser bom nos negócios. Entende? Essa é a verdade.
– E eu com isso?
– Pois é chefe. De tanto pensar sobre isso, fui dar uma olhada na bolsa de valores. E sabe? O real deu uma boa desvalorizada de ontem para hoje. Com toda essa história de COVID-19, desvalorização do barril do petróleo pela Arábia Saudita. Esses vinte, que o senhor me pagou hoje, já não valem os mesmos vinte de ontem. Compreende? Então calculei a correção monetária, mais juros diário e multa por atraso. Parece que o senhor me deve vinte reais e sessenta e sete centavos. Você poderia me pagar os sessenta e sete centavos, ou gostaria de negociar uma forma de pagamento mais conveniente para o senhor? Posso receber depois, mas já adianto que nesse caso serão cobrados juros compostos.

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O Polaco tirou uma nota de dois reais, jogou sobre a bancada do barbeiro e saiu furioso, prometendo, mais uma vez, nunca mais voltar, mas sabendo que havia perdido a batalha com o Barbeiro.

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Já o Barbeiro decidiu mudar de profissão e abriu uma pequena “empresa” de crédito consignado. Vez ou outra ele se vê obrigado a entrar à força na casa de um devedor, para subtrair algum eletrodoméstico do inadimplente.

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