#FlautaVertebrada: “quanto vale um voto? um voto vale hoje todos os seus opostos: o brasil colonizado e oprimido, luta, o brazil cínico, nervoso, ri”

por Helena Arruda
“Toda palavra é cicatriz”, me diz o poeta paraibano
com quem dialogo horas a fio
em tempos obtusos e sombrios, suas palavras me encontram
num porão abandonado e frio
nas línguas que me moram, o poeta me traduz
minhas palavras perambulam entre a Síria e o Brasil,
mas não encontram abrigo,
híbrida, sigo.
são muitos os interditos presos nas paredes do meu quarto,
chicletes sujos, desgastados
Rimbaud me diz lá da estante: “Je est un autre” e
bombas explodem sobre minha cabeça caótica
bem no meio das minhas origens
[afinal, quem sou eu?]
“Je est un autre”, escarra Rimbaud na minha cara
[são muitas as guerras]
troveja uma saraivada de balas sobre mim
um estrondo, mais tiros
outra bomba explode bem na minha cara de indignação
[Síria 2011]
[Brasil 2019]
assustada, suada, me contorço de dor
minhas cicatrizes latejam, feridas abertas no meu corpo
[palavras]
quanto vale um voto?
um voto vale hoje todos os seus opostos:
o brasil colonizado e oprimido, luta
[resistência]
o brazil cínico, nervoso, ri
[arrependimento]
a classe média não quer ver o filho da mulher preta e pobre
[que estende os lençóis brancos nos varais da casa branca da patroa branca]
virar doutor na universidade pública junto com seu filho branco
cotas raciais importam
a classe média toma moet chandon, idolatra os fuzis e
não quer pretos e apátridas e estrangeiros e exilados sem nação
[sem nada]
a Síria é aqui?, me pergunto, mas logo vem a resposta
[outra tempestade de tiros sem direção]
quanto vale um voto?
vale o soco no estômago, o tapa na cara, o escracho
o estampido na escuridão
crianças-pretas-faveladas-fuziladas
[no Brasil]
penso na Síria que mora em mim
minha ancestralidade mestiça me chama
[de volta]
Brasil 2019: mais um corpo preto no chão
mais outro e outro e milhares de corpos pretos no chão
quanto vale um voto desferido de um fuzil?
80 tiros e outro corpo preto caído no chão
um professor ameaçado
menos cultura. menos infância. mais violência. menos educação
mas também vale o grito o basta a mudança a transformação
encontro minhas outras que me habitam e saímos juntas
drummondianamente, de mãos dadas.
Rimbaud timidamente me aplaude
“Je est un autre”, entendo Rimbaud agora e
na multidão das ruas do Rio de Janeiro
minhas-nossas-suas-línguas ecoam em uníssono, estalando gritos:
fascistas não passarão!
Helena Arruda nasceu em Petrópolis, RJ. É mestra e doutora em Literatura Brasileira (UFRJ). Poeta, contista, ensaísta, pesquisadora e revisora, é autora dos livros Interditos – poemas (2014); Mulheres na ficção brasileira – ensaios (2016), ambos pela Editora Batel; Corpos-sentidos (prelo, Editora Patuá) e A mulher habitada [ou: cadernos do fim dos dias], ainda sem editora. “Palavras” foi publicado em Ato poético, organizado por Márcia Tiburi e Luís Maffei, editado em 2020 pela Oficina Raquel. Escreve para O Partisano quinzenalmente às quintas-feiras.