O presidente acordou de bom humor | por Luis Britto García

De repente, o chefe da República ousa, simplesmente, fazer valer a Constituição. Os assessores estão desnorteados. Os poderosos, revoltados. A conspiração das sombras começa

Imagem: Terremoto em Caracas (1929), mural de Tito Salas (1887-1974), artista venezuelano
por Luis Britto García, com tradução de Rôney Rodrigues

Dando sequência à série Mundos (im)possíveis de Britto García, publicamos o conto El presidente amaneció de buen humor, do livro Rajatabla, de Luis Britto García, com tradução, feita pela primeira para o português, de Rôney Rodrigues.

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A seguir explanarei aos senhores problemas que surgem quando o presidente se levanta de bom humor. Fecha-se em seu gabinete, demite os assessores, e logo sai com um decreto que diz: nacionalizam-se as indústrias básicas. E em nota, só complementa: porque é um dos objetivos apontados pela Constituição. Pânico maior não poderia haver mobilizam-se os embaixadores o Núncio os homens influentes os ministros os generais nos mobilizamos batemos à porta mas o Presidente ah o Presidente sai com outro decreto que diz: “Todos os latifúndios serão expropriados” e nos explica com uma risadinha: porque figura no programa de campanha. Em seguida, soltura de presos políticos dissolução das polícias fechamento de campos de concentração reabertura de publicações proibidas investigação de mortes suspeitas averiguação de torturas ocultadas: “Porque está em conformidade com as garantias constitucionais”, explica, já sem risadinha. Tumulto interessante diante das pesadas portas de mogno, Mister Atkinson impetuosamente exige satisfação, diz que coisas como essas deveriam ser consultadas mas da porta fechada em sua cara só transcendem essas palavras: “O poder público não consulta estrangeiros porque isso não é ser soberano”.

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Então é a loucura, a loucura, representantes de federações de investidores tratam de fazer valer os compromissos de financiamento de campanha, embaixadores tentam explicar que essas coisas serão vistas com desconfiança pelos poderosos vizinhos, generais tentamos mostrar o patente mal-estar que isso produziria nos círculos militares, o Núncio expõe que tudo isso será certamente mal interpretado pelo Sacro Colégio, mas o Presidente, ah o Presidente grita que ele não é chefe da Federação dos investidores dos poderosos vizinhos dos círculos militares do Sacro Colégio, mas do povo, e tudo pelo povo, e nos passa por baixo da porta decretos ou atira-os pela janela em aviõezinhos de papel e são coisas como investigue-se as fortunas de meus colegas de partido ou retire-se do país esta Missão Militar ou que fechem-se os quartéis ou criem escolas ou ampliem-se as universidades ou baixem os preços dos alugueis ou os trabalhadores donos de todos os lucros e que dificuldade tremenda ir pegando e ir queimando tudo principalmente porque há alguns que voam tanto que nas ruas já se chega a saber o que está acontecendo, há turbas que festejam e trinam as metralhadoras, as agências de notícias dizem que os marines estão a caminho e derrubamos a coronhadas as pesadas portas de mogno e o Presidente montado a cavalo na janela assina decretos e assina decretos e esvazio o carregador na fuça dele e não posso evitar que os últimos papéis escapem e como uma nuvem de pombas brancas voem sobre a cidade em insurreição, a cidade do dia em que o Presidente acordou de bom humor.

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