#FlautaVertebrada: “Nada espere / é tempo de espadas / lanças, coroas de ferro / catapultas / cadafalso / roldanas de aço / alavancando corpos estirados / no chão frio”

por Mell Renault
Nada espere
é tempo de horror
tempo crepuscular
onde acordados pensamos
pesadelo interminável.
Nada espere
desse dia
dessa noite
dessa tarde de sol forte
e azul abafado.
Nada espere
nem de mim
nem do rapaz parado ali fumando
nem da mulher que grávida
conta as semanas
tudo está cercado
por uma sombra
monótonas paredes
e há sempre a certeza
de hoje ser
o último dia sem fim.
Nada espere
a mão, o abraço
o ombro amigo
a cortesia dos sorrisos
tudo o que há:
– uma doutrina de fome e morte
agonia e pavor
língua sem nexo
ira.
Nada espere
é tempo de espadas
lanças, coroas de ferro
catapultas
cadafalso
roldanas de aço
alavancando corpos estirados
no chão frio
tempo de alta noite sem lua
tempo de recolher
a própria vida
num silêncio
de cem mil gritos.
Nada espere
de mim,
do menino que vê
e não entende nada,
da velha que dorme
e sonha o paraíso.
Nem Hades
nem Zeus
nem outro deus vivo
ou inventado
vai nos salvar
tudo é foice, faca,
punhal atravessado no ar
verbo cortante
na carne crua
não espere nada
eles não dizem
mas eu digo:
– é tarde, muito tarde.
Mell Renault é escritora e dramaturga, mineira de Belo Horizonte, tem 35 anos, 4 filhos e é casada com o fotógrafo e escritor Carlos Figueiredo, que organiza e cuida de todo seu acervo artístico.