“Quantas pessoas, na história da humanidade, foram tão boas em suas respectivas atividades quanto foi Diego jogando bola?”

por Frederico Bernis
– Meu filho, vem ver aquele jogador que você gosta!
– Qual, mãe?
– Aquele que você diz que não cai.
Eu era criança e pra mim ele era apenas “aquele jogador que não cai”. Quem viu Maradona jogar a Copa de 86 sabe muito bem do que eu tô falando. Tem jogador que parece satisfeito, quase vitorioso, quando obriga o adversário a derrubá-lo com uma falta. Com Maradona era o contrário: sofrer a falta era para ele uma derrota, como se a falta o humilhasse. E assim simplesmente não a aceitava.
“El Pibe de Oro” conduzia a bola em alta velocidade enquanto zagueiros belgas de dois metros e vinte de altura o recebiam com pancadas inimagináveis numa adaptação futebolística do corredor polonês. O argentino de 1,65m tropeçava, ameaçava cair, cambaleava e desafiava a gravidade para, ao final, seguir em altíssima velocidade com a bola ainda colada aos pés. Outro piscar de olhos: gol! Os defensores, atônitos, chegavam a cogitar abater Maradona a tiros, visto que no embate físico puro e simples sucumbiam miseravelmente.
Mas como assim tanto talento? E mais: de onde vinha aquela força? O histórico confronto com a seleção inglesa na Copa de 86 aponta uma hipótese: o futebol, para Maradona, muito mais que uma simples competição esportiva, era oportunidade de redenção, a chance de reparar humilhações sofridas e devolver ao derrotado a autoestima do vencedor.
Vingança
Senão, vejamos: o embate se deu apenas 4 anos após a derrota argentina para os britânicos na Guerra das Malvinas. E, se numa guerra a Argentina pouco podia diante da imensa superioridade bélica dos britânicos, nos gramados do México Maradona usaria o futebol para se vingar. Vem daí o gol com a mão. “La mano de diós” foi uma desobediência civil, um artifício pra mostrar que faria tudo que estivesse ao seu alcance pra reverter no coração argentino aquele sentimento engasgado de derrota.
E depois há o momento sublime, o lance bárbaro, o maior gol da história das Copas. Maradona parte com a bola desde o campo de defesa e vai enfileirando ingleses, que tentam pará-lo a todo custo com as mais variadas bordoadas. Em vão. El Pibe segue furioso com a bola em direção à meta, assimilando todos os golpes, a bola grudada ao pé esquerdo. Todo mundo já viu esse lance centenas de vezes, mas aquele que abre mão de relembrá-lo mais uma vez está morto por dentro.
Voltemos ao lance. Maradona segue em sua jornada rumo ao gol antológico. Durante o longo percurso, atravessa a defesa adversária, vai destruindo a infantaria britânica, humilha Margaret Thatcher. Por fim, o drible no goleiro, o toque para o gol vazio e só então, vejam bem, só então, Maradona se permite cair. O contato com o chão dura pouco e em menos de um segundo o gênio já está de pé, com o punho erguido para celebrar a vitória. Dentro das limitações do futebol, amenizou ali a humilhação de seu povo, um sentimento que ficou eternizado nas palavras do locutor argentino Victor Hugo Morales, que narrou o gol colossal:
“Es para llorar, perdónenme.
Maradona, en una corrida memorable,
en la jugada de todos los tiempos!
¿De qué planeta viniste?
Para dejar en el camino a tanto inglés,
para que el país sea un puño apretado,
gritando por Argentina.
Gracias Dios, por el fútbol,
por Maradona, por estas lágrimas,
por este Argentina 2 – Inglaterra 0.”
Em sua autobiografia “Eu sou El Diego”, publicada no ano 2000, Maradona escreve: “Foi mais do que vencer um time de futebol. Derrotamos um país. Dissemos que o esporte nada tinha a ver com as Malvinas, mas sabíamos que, na guerra, morreram muitos argentinos, baleados como pássaros. Aquilo era a vingança”.
Napoli
Se Maradona foi épico, vingativo e inesquecível defendendo as cores da Argentina, o que dizer então de sua passagem pela Itália? Veja bem, Maradona chega a Nápoles e encontra um time que jamais havia vencido um campeonato italiano, jamais havia conquistado um título europeu. Nada. Mais do que isso, encontra no sul da bota um povo e uma torcida que sofrem imensa discriminação dentro da Itália, principalmente por parte dos rivais do norte. Eis aí novamente a fórmula explosiva: Maradona vestindo a camisa dos menosprezados.
Com Maradona no time, o até então desiludido Napoli conquistou o que jamais havia sequer sonhado. Suas atuações ali foram furiosas, assombrosas e renderam ao clube 2 inéditos campeonatos italianos, o primeiro título europeu na Copa da Uefa, dentre outras conquistas. Há que se entender o tamanho desse feito, pois ajuda a explicar a dimensão de Maradona. Um clube fundado em 1926 que colecionava 60 anos de derrotas e que, como num passe de mágica, começa a vencer tudo. O mago Diego libertou o Napoli.
Posso estar idealizando? Sim, posso estar. E digo mais: provavelmente estou. Mas o fato é que a mim parece claro que Maradona se motivava em dobro quando o futebol lhe permitia usar seu imenso talento para reparar injustiças históricas. Foi assim na apoteótica exibição contra os ingleses no México, foi assim na sua histórica e vitoriosa passagem pelo Napoli.
Política
Sua trajetória fora de campo referenda essa hipótese. Carregava em si a infância pobre na Argentina e a humilhação da Guerra das Malvinas. Talvez por isso sempre tenha se posicionado politicamente contra os muito poderosos. No futebol, denunciava a corrupção dos dirigentes engravatados da FIFA e defendia que o esporte fosse comandado pelos próprios atletas.
Na política, foi incansável crítico da interferência de grandes potências internacionais nos governos da América Latina. Ostentando orgulhosamente sua tatuagem de Che Guevara e os charutos cubanos, declarou solidariedade aos líderes sul-americanos Fidel Castro, Evo Morales, Hugo Chávez, Lula e Dilma, mantendo-se firme em suas opiniões mesmo sendo alvo de fortes críticas. Não era fácil derrubar Don Diego.
Infelizmente, acabou derrubado pela dependência química. Primeiro a cocaína e depois o álcool causaram-lhe graves problemas que se acumularam desde os tempos em que era atleta no Napoli. Primeiro vieram as punições da FIFA, as suspensões e a proibição de jogar futebol. Depois, começaram os crescentes problemas de saúde, culminando com o seu falecimento ontem, dia 25 de novembro, curiosamente a mesma data em que nos deixou seu amigo Fidel Castro.
Ofício da bola
Maradona foi uma mistura perfeita de espetáculo e competição, magia com vontade de vencer. A meu ver, é demasiado reducionista a tentativa de compará-lo a outros esportistas ou jogadores de futebol. Proponho analisar Diego sob a ótica do homem e seu ofício. Imaginem, num tempo qualquer, um marceneiro produzindo uma cadeira, um arquiteto projetando um edifício, um médico examinando o paciente. Quantas pessoas, na história da humanidade, foram tão boas em suas respectivas atividades quanto foi Diego jogando bola?
Algum leitor poderá concluir que exagero. Discordo, caro leitor. Exagerado foi ele.
👏👏👏👏👏👏👏