Helena | por Luis Britto García

Entre as disputas acirradas pelos céus da periferia, as lições de um menino para tornar-se mestre dos pássaros de papel e vareta

Imagem: Los niños del Barrio (1964), de Cesar Rengifo (1915-1980), artista venezuelano
por Luis Britto García, com tradução de Rôney Rodrigues

Continuando a série Mundos (im)possíveis de Britto Garcíapublicamos o conto Helena, do livro Rajatabla, de Luis Britto García, com tradução inédita em português de Rôney Rodrigues.

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Um papagaio se faz com papel e vareta. Os outros moleques falavam que eu estava apaixonado pela Helena. Pega as varetas, coloca elas em cruz e amarra com o barbante. Na verdade o que eu fiz foi não deixar que dessem uma surra nela uma vez que encontramos ela na colina. Nas pontas das varetas têm que fazer uma rachadura com gilete para poder amarrar o barbante. Jogar pedras e caroços de manga nas velhas e nas putas estava certo mas me diga você bater numa mocinha. O barbante é para amarrar as varetas e fazer meio que um quadrado, e se puser mais vareta, meio que um barril meio que uma roda. Então cantavam pra mim Rafucho tá namoraaando. O melhor papel é o de seda mas precisa roubar ele do armarinho se não conseguir é melhor o de jornal. E taaambém é puuuuta. O grude pode ser feito com farinha mas melhor roubar cola dos moleques que vão pra escola. Dei um murro no Manuelzinho e a partir daí só cantavam para mim tá namoraaando. Melhor colocar pouca cola pra não enrugar. Pras putas tudo bem mas que culpa tem a mocinha se colocaram ela num bordel para passar o pano de chão. O papel tem que ficar bem apertado senão quando ganhar o ar ele rasga. Melhor dar pedradas em carros roubar galinhas dos sítios furar os pneus dos caminhões. Precisa deixar buraquinhos para amarrar as guias. Aquele ano foi do caralho o italiano da bodega ficou louco e esfaqueou o cunhado todos vimos quando levaram ele preso. As guias são medidas de todos os lados do papagaio e da rabiola. A polícia matou pelas costas um operário que falavam que era ativista. A rabiola pode ser feita de retalho. Já tava puto com isso de Rafucho tá namorando. O tamanho da rabiola depende do tamanho do papagaio e do vento. No roçado da colina onde empinávamos papagaios estavam instalando os cabos da luz elétrica. As giletes podem ser prendidas nos lados, mas são mais eficientes na rabiola. Na tarde depois de xingar a mãe do bodegueiro subíamos com os papagaios e começávamos a esperar a brisa. As giletes podem ser roubadas na farmácia podem ser catadas aquelas velhas jogadas fora no lixo ou podem ser compradas com os trocados das compras mas talvez deem um sopapo na gente por isso. Ao soprar a brisa empinávamos os papagaios e fazíamos eles pelearem pra que as giletes cortassem o barbante. Instaladas as giletes o importante é ter noção de manobra. Aquela tarde joguei meu papagaio contra um de papel cor-de-rosa, grandão. É necessário soltar o carretel, recolher o carretel, a rabiola dá depois a cacetada. O papagaio rosadão caiu e foi pros caralhos lá no telhado da polícia, eu então briguei com um azul, muito escorregadio. Dado o golpe de chicote deve-se pegar altura outra vez, senão também derrubam a gente. O papagaio azul caiu dando voltas como saca-rolhas como rabo de porco o dono gritava comigo e eu dizia perdeu e peguei uma pedra por precaução. A vantagem da rabiola curta está em ondular muito e aumentar a mobilidade do papagaio mas tem o risco dela cortar ela mesma. Derrubei outros dois papagaios, o segundo muito difícil, um barrilete amarelo que quase me cortou o barbante mas que no final das contas veio prabaixo e caiu no tanquinho de uma velha. Se as lâminas ficam cegas, afiá-las dentro de um copo. Ganhei altura, cortei o barbante de outro papagaio cor-de-rosa mas mais pequenininho e com boas manobras que caiu perto dos cabos. Se o vento aumentar, soltar corda. Meu papagaio, sozinho sobre a colina, fazia oitos feito um louco, todos os outros cortados ou recolhidos. Se o vento diminui, recolher corda. Sozinho não, mentira, uma coisinha branca como uma calcinha voava, rebolando meio que com câimbra à direita refletindo o sol quase piscava. O melhor ataque puxadas longas combinadas com soltadas de corda curtas. Senhor, quase sem olhar poderia ter dito que aquela merdinha branca estava sendo empinada pela Helena. A descida deve ser rápida mas não muito porque arrebenta o carretel. Aquela puxada de fio aquela declaração de que enquanto os demais fugiam ela estava protegida aquela olhada pra mim como se fosse verdade que Rafucho está namorando como se fosse verdade. A manobra evasiva, soltar barbante, descer o máximo possível, com desvios. Dei puxões fortes, pra que meu papagaio cortasse. O efeito da gilete é potencializado com as puxadas, funciona como um chicote ou melhor como uma foice. Helena, compreendendo, ainda me olhando, começou a soltar barbante. Um ataque que falha deve ser repetido imediatamente utilizando o impulso para a nova investida. Aquela olhada para mim e o soltar de barbante, olhada e soltar de barbante, como se esquecesse de todo o resto, até da terra dos pezinhos pelados, até da meleca coalhada nas bochechas. O perigo da manobra evasiva é o cabo elétrico. Foi uma contorção, foi um salto. O caçador deve ter o cuidado de evitar cair no cabo onde foi parar a presa. Mas não joguei o meu papagaio para subir, soltei o barbante, corri até onde estava o corpinho fulminado de Helena onde também corriam as outras crianças, o papel se misturou ao papel nos fios de alta-tensão, houve outra faísca feia, azul, um estrondo, e os papagaios foram consumidos juntos em seu alto ninho, numa crepitação murmurante.

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