Dança do fogo | por Andri Carvão

#FlautaVertebrada: “Um homem; eu, você, nós, ou quem quer que seja, se atira da árvore de cabeça entre os rochedos”

Imagem: dimid_86
por Andri Carvão

Fazer uma fogueira com ossos humanos.
Assar um cão na brasa.
Comer a brasa regada a vinho.
Vinho servido numa taça feita de um crânio canino.
Vinho tinto tipo A.
Quando o fogo cessar, apagar as brasas num jorro de mijo comunitário.
Pintar o rosto com carvão.
Encher os bolsos de carvão.
Vomitar no rio e depois bebê-lo até o fim para tirar o gosto ruim da boca.
Chorar e sorrir.
Subir na árvore mais alta, no alto da copa, no galho mais fino a suportar o peso do corpo humano.
Procurar deitar o mais confortável possível.
Fechar os olhos e relaxar…
Soltar o corpo…
Abster-se, abstrair-se e esvair-se até tombar no vazio da chama primordial.

Um raio abre uma cratera na montanha.
A montanha expele e jorra seu magma, o sangue sagrado da terra.
A lava escorre e mergulha na água do mar, petrificando-se.
As rochas como icebergs, mais da metade dentro d’água, são açoitadas pela arrebentação, sob o voo e o canto das gaivotas.
Nas rochas, nova morada da fauna e da flora a beira-mar, pássaros se aninham em
suas frestas no alto e mais abaixo, caranguejos, aranhas e siris fazem a festa.
Um homem; eu, você, nós, ou quem quer que seja, se atira da árvore de cabeça entre os rochedos.
Ele desaparece por alguns instantes, tragado pelas águas do mar bravio.
Mas, de repente, emerge e transpõe a barreira das ondas a braçadas até alcançar a base da rocha mais próxima.
Alça-se das águas escalando o paredão, alvejado pelos respingos da arrebentação, como numa chuva de verão.
No caminho pega um ovo de um ninho e o esconde no bolso da camisa.
Em seguida agarra um siri e termina a escalada com a força dos dedos dos pés e segurando-se apenas com uma mão livre.
Junta alguns galhos e gravetos.
Acende uma tora na boca da cratera e faz uma bela fogueira, onde se aquece e assa o siri e o ovo na brasa.

Nosso herói adormece.
O estrondo de um trovão anuncia a chuva.
Uma sucessão de raios e trovões anuncia a tempestade.
O dia escurece.
A ventania aumenta a chama e a chuva a apaga.
O dilúvio cobre as rochas, casa de pássaros e artrópodes.
As águas turbulentas invadem a cratera em cascatas.
O homem, eu, você, o outro, adormece profundo, boiando de braços e pernas abertos como uma estrela do céu ou do mar, calmo como nunca com as mãos na nuca como num berço natural.

 

Andri Carvão cursou artes plásticas na Escola de Arte Fego Camargo em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA – Escola Panamericana de Arte [SP]. Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo, o autor tem diversas publicações online e antologias. Um Sol Para Cada Montanha [Chiado Books, 2018], Poemas do Golpe [editora Patuá, 2019] e Dança do fogo dança da chuva [editora Penalux], entre outros. Escreve n’O Partisano quinzenalmente às terças-feiras.

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