Da lonjura de um olhar | por Sergio Rocha

por Sergio Rocha

Olhei distante que nem vi. Nem vi o quanto de olhar esqueci pelo caminho. Olhares que nada cerziam de suas tramas e nada guardavam nas gavetas de sachê e desconfianças mútuas. Olhei por olhar frestas e cantos de rua, como também olhei nos olhos aqueles putos que se misturavam às expectativas dos nossos corpos tantas vezes sem rumo.

Você não dizia muito enquanto fiquei por ali olhando o vazio de tanta coisa em movimento, tantas cores misturadas e um punhado de olhares cruzados aos meus, aos seus; olhares entregues de abandono.

Você dizia que as manhãs estavam desabitadas, que mesmo os bem-te-vis não mais nem mesmo os pardais, dizia de uma falta de costume, um soluço entre a água fervendo para o café e o comentarista tristemente preso no monitor sem som. Dizia das roupas escolhidas sem nenhum critério, de um vestir-se lento dentro de um samba-canção de vísceras expostas, uma música também dançada na distância surda de corpos ausentes. Dizia de um querer abrir a porta e desaparecer deixando uma fragrância leve de quem saiu apressada, desorientada talvez.

E assim olhei distante. Olhei por entre os bólidos e para dentro, procurei um rosto que além de me olhar dissesse que logo mais sorriria um fim de tarde e diria que à noite já não teríamos motivos para tanta esquiva e que um chope talvez mais tarde quando as luzes da cidade brilhassem uma nudez de marfim. Assim olhei distantes nuances de um acontecimento como qualquer outro, mesmo que outros encontros nos corredores e escadarias, mesmo que outros amores estapafúrdios brindando recordações de ninguém.

Você revelava tanto. Nas curvas perfeitas em desenho primoroso de artista solitário refazendo o entalhe dia após dia, retocando ancas e panturrilhas arredondando a bunda dando contornos suculentos aos peitos, definindo o abdômen; revelava força vigor beleza de poentes e constelações, fulgência oceânica e suarenta de prazer. Revelava encantos que só os mais loucos em seus sonhos poderiam imaginar.

E assim olhei distante tão distante que nem vi o quanto de olhar esqueci pelo caminho, olhando pequenas em desaparição, centelhas de uma sensação de quem se vê, por todos os lados, desamparado e só amando mentiras e brinquedos, olhando poemas esgarçados no tecido nu da marginalidade doce que de presente nos demos nos dias mais felizes de uma estação.

 

Sergio Rocha, paulistano dos altos de Santana, escritor, poeta, jornalista (de)formado pela Filosofia, mas principalmente pai da Mariana, Fernanda, Giovana e avô do Ravi. Tem dois livros publicados, “Terceiro fragmento”, J. Andrade Gráfica e Editora, 2012, Aracaju/Se e “Um poema depois da chuva”, Rusvel-Triver Studio e Editora, 2018, São Paulo/SP. Vem participando de várias antologias impressas e virtuais. Organiza o Sarau Santa Sede, ministra oficinas de criação literária e é editor na Casa Editorial Livrará. Escreve n’O Partisano quinzenalmente aos sábados.

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