#FlautaVertebrada: “As flores estavam secando à espera de serem regadas, mas faltava-lhe força e impulso para executar qualquer tarefa”

por Fernanda Noal
A lembrança sobrevoa tempos antigos, momentos perdidos, lugares em que se deixou viver. Não era preciso muito esforço pra mergulhar demoradamente em lembranças, nem nas raras que eram boas, nem nas infindáveis que eram terríveis.
O mundo permanecia girando em seu ritmo habitual, enquanto seu corpo continuava estático.
A poeira que encobria o dia que sua mente visitou, era alaranjada e áspera, esfolando a pele que ousava atravessá-la. O Sol queimava e ardia, há muito que não chovia. O ar era tão seco que de suas narinas saíam filetes razoáveis de sangue ao assoar.
As flores estavam secando à espera de serem regadas, mas faltava-lhe força e impulso para executar qualquer tarefa. Não se comovia mais por elas, nem pelas pessoas gastas de vaidades, nem pela própria vida em ruínas, resultado dos abismos em que havia mergulhado.
Ele estava fumando um cigarro de palha quando ela entrou na velha casa. Por alguns segundos se permitiu observá-la, mas logo tornou a desviar o olhar. “Suas plantas estão quase tão mortas quanto você”, ela disse.
Ele não respondeu, pois sabia que era mesmo verdade. Por mais que seu coração ainda pulsasse, se encontrava num submundo, numa dimensão de sombras que nem mesmo o Sol penetrava.
Arregalou os olhos e deixou cair dos dedos o cigarro de palha que havia sido consumido pela brasa, sem que tivesse sido fumado. O tempo presente o havia chamado através do chamuscar dos dedos. Muitos anos separavam o homem que estava sentado fumando naquela varanda agora, do homem que estava fumando naquela áspera lembrança.
Levantou-se de súbito, como que impulsionado por um empurrão brusco, e seguiu mecanicamente em direção ao quintal.
Ligou a mangueira e regou demoradamente as plantas, pensando se não seria mais fácil ser planta do que gente.
Fernanda Noal é gaúcha e mora atualmente no interior paulista. Já participou de diversas coletâneas de contos e poemas. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB) e faz parte do Projeto Passo Fundo, de apoio à Cultura. Escreve n’O Partisano quinzenalmente às quartas-feiras.