No que diz respeito à aglomeração, estamos protestando para não fazê-la, sendo que, no meio do caminho, há a própria aglomeração, um mal necessário para conseguirmos vacinas e o direito ao isolamento social

por Alexandre Lessa da Silva
O Brasil foi rasgado pelo grito “fora Bolsonaro” por todo país. O grito, entretanto, não soou apenas em território nacional, mas em várias partes do mundo, já que cidades como Londres, Paris, Berlim, Lisboa, Bruxelas, Amsterdã, Genebra e Nova York se juntaram às mais de 200 cidades brasileiras que deixaram claro seu repúdio ao carniceiro da cloroquina, assim como seu projeto niilista reativo de destruição da vida dos brasileiros e de sua nação.
A pauta das manifestações, como ocorreu nas manifestações anteriores à pandemia, foi bem diversificada, com manifestantes reivindicando vacinas, investimentos em educação, auxílio emergencial com um mínimo de dignidade, empregos, direitos, defesa dos povos originários, combate ao racismo, igualdade de gêneros e muito mais. Entretanto, diferente das manifestações anteriores, os protestos deste sábado tiveram um grande foco, foco esse que concentrou o desejo de todos que participaram do chamado 29M: a saída de Bolsonaro e sua gangue do poder.
Em 11 de abril, O Partisano já convocava, timidamente ainda, a população para ir às ruas contra o governo Bolsonaro, defendendo uma posição que se mostrou acertada com os recentes protestos. No dia 7 do presente mês, Guilherme Boulos e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) deram início aos primeiros protestos depois do surgimento da pandemia, levando milhares de pessoas às ruas em oito estados. Finalmente, em 29 de maio, dia em que este texto é escrito, as ruas explodem em protesto contra a volta da “banalidade do mal”, isto é, Bolsonaro.
Duas liberdades
Os protestos em todo Brasil foram grandes, bem maiores que as estapafúrdias manifestações da súcia bolsonarista. Enquanto os defensores de Bolsonaro clamam pelo direito a morrer de uma forma terrível, no caso dos mais pobres, ou o direito de poder levar à morte seus empregados, no caso da elite econômica, os opositores defendem o direito à vida, à dignidade e à equidade. A liberdade apareceu em ambos os lados, a esquerda defendendo a liberdade de viver e a extrema direita, por sua vez, a de morrer. Agora, finalmente, o Brasil respirou com os protestos contra um governo que se considera militar, com o qual é impossível qualquer tipo de argumentação racional. Bolsonaro só entende a força, não a razão, e, nesse momento, as ruas mostraram sua força.
Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, os protestos contra Bolsonaro se concentraram no Centro da cidade. Apesar disso, em alguns bairros, como o Jardim Botânico, manifestações menores também ocorreram. Panelaços fortíssimos durante a manhã ecoaram na Zona Sul, dando apoio aos protestos que ocorreriam em seguida. Em Niterói, cidade vizinha ao Rio, os moradores lotaram as barcas, principal meio de transporte que liga Niterói ao Rio, para participar do ato contra o presidente. Uma gigantesca faixa de “fora Bolsonaro” foi posta nos Arcos da Lapa e a Candelária, local da Igreja central da cidade, fervilhou de tantas pessoas. Apesar do protesto pacífico, a polícia acompanhou a manifestação de uma forma bem mais ameaçadora do que as manifestações pró-Bolsonaro, não ocorrendo nenhum grande incidente, todavia. Jandira Feghali, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), deu o tom do protesto, dizendo que não há como esperar até janeiro de 2023 para nos livrarmos “daquele que se diz presidente da República”. Uma multidão de máscara tomou o Centro do Rio para falar “não” a Bolsonaro e seus cúmplices, defendendo o direito de todo brasileiro viver, e viver com dignidade, pois todos ali sabiam que isso só será possível quando nos livramos desse traste.
São Paulo

Em São Paulo, o protesto foi ainda maior, o mais importante do Brasil. Menos de uma hora após o início do protesto, uma enorme multidão já tinha ocupado mais de 45 mil metros quadrados, começando pela Consolação. Foram quatro horas de protestos, ocupando sete quarteirões da Paulista. Assim como no Rio e no restante do Brasil, o protesto paulistano teve apoio de sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda. Relatos de manifestantes indicam a presença de um grupo de bolsonaristas no vão do MASP, mas nada de importante aconteceu em função disso. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, e Guilherme Boulos, do PSOL, estiveram presentes. Enquanto Boulos ressaltava o uso das máscaras pelos manifestantes, Gleisi defendia o ato contra Bolsonaro, afirmando que “errado está Jair Bolsonaro”. A estimativa dos organizadores é que 80 mil pessoas tenham participado do protesto.
Repressão em Recife

O protesto de Recife foi maculado por um atentado contra a democracia. Policiais Militares que acompanhavam o protesto atiraram com balas de borracha na multidão, usaram bombas de efeito moral, gás lacrimogênio e spray de pimenta contra os manifestantes e, até, contra quem passava na rua naquele momento. Daniel Campelo da Silva, 51 anos, perdeu um olho, atingido por uma bala de borracha. Daniel nem sequer participava do protesto, apenas estava comprando material para seu trabalho como adesivista de carros, mais um triste caso para comprovar que excludente de ilicitude só privilegia criminosos fardados. A vereadora do PT, Liana Cirne, também foi vítima da truculência da PM local. Um policial, de maneira covarde, jogou um spray de pimenta diretamente na cara da vereadora, fugindo em seguida com a viatura.
Diferente dos protestos pró-Bolsonaro, o protesto da esquerda foi recebido com tiro, porrada e bomba, num verdadeiro ataque a todas as instituições democráticas. O governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB) afastou o comandante e policiais militares envolvidos, determinando a apuração das responsabilidades, muito pouco para quem perdeu um olho ou teve a cara encharcada de spray de pimenta.
Repercussão na imprensa
Os protestos aconteceram em todo o Brasil, com movimentos sociais estimando que cerca de 400 mil pessoas participaram dos atos. Entretanto, a mídia corporativa fez uma péssima cobertura do assunto. Globonews e CNN, canais que se autointitulam de jornalismo, não acompanharam os atos ao vivo e, sempre que havia um comentário, a questão da aglomeração era trazida à tona. O Jornal Nacional da Rede Globo, principal jornal televisivo brasileiro, noticiou relativamente rápido os atos, também frisando a questão da aglomeração; uma vergonha!
O oposto disso ocorreu com a imprensa estrangeira. Der Spiegel, da Alemanha, trouxe uma manchete que ressalta os milhares que protestaram, no Brasil, “contra seu líder”, ressaltando a perda de apoio que Bolsonaro está sofrendo. O site do Le Monde, um dos principais jornais franceses, traz como primeira matéria anunciada o título “Ele é mais perigoso que o vírus”, fazendo referência a Bolsonaro e, ainda, atribuindo a Bolsonaro a morte de mais de 460 mil pessoas. O inglês The Guardian também colocou os protestos na entrada de seu site, falando dos milhares que marcham pelo impeachment de Bolsonaro e da manipulação, feita pelo presidente, da pandemia. Assim como o The Guardian, a BBC internacional também cobriu os protestos, fazendo flashes ao vivo e cobrindo as maiores manifestações. Aliás, no protesto de Londres contra o governo brasileiro, até Jeremy Corbyn, ex-líder do Partido Trabalhista da Inglaterra, estava presente. Na Espanha, o El País noticia que “a esquerda sai às ruas contra Bolsonaro pela primeira vez na pandemia”. O mundo está atento para os protestos, mas a grande mídia brasileira corporativa caminha no sentido contrário, uma lástima.
Aglomeração necessária
A aglomeração é o grande problema apontado pela mídia corporativa contra os protestos 29M. Entretanto, não é um argumento que se sustenta. A esquerda não quer ir às ruas, como o gado quer, ela precisa. Precisa para defender a vida de todos os brasileiros e sua dignidade, uma vez que, como já disse em um texto em que faço a exaltação das ruas, só é possível combater a pandemia e defender a nossa dignidade através da remoção de Bolsonaro. No que diz respeito à aglomeração, estamos protestando para não fazê-la, sendo que, no meio do caminho, há a própria aglomeração, um mal necessário para conseguirmos vacinas e o direito ao isolamento social até quando for necessário.
Os protestos são necessários para a defesa da vida e da economia, pois não há uma contradição entre as duas, como vários países no mundo já demonstraram. A mídia corporativa parece não entender que Bolsonaro representa a destruição de direitos fundamentais, inclusive aqueles sanitários. O atual presidente tem um projeto de destruição do país que tem o vírus como um dos seus grandes aliados e, portanto, quanto mais ele fica no poder, mais pessoas morrem em função do vírus e, ao mesmo tempo, mais brasileiros ficam desempregados. Portanto, os protestos da esquerda são um mal necessário, assim como uma cirurgia, por exemplo, ou como o amor para o filósofo Arthur Schopenhauer. Há um sofrimento, algo que não é bom, mas é feito por algo maior e necessário, ou seja, nossas próprias vidas. Não protestar, então, seria como não querer operar um tumor em seu estágio inicial, pois não é nada agradável ser cortado. Entretanto, evitando o mal da cirurgia, o indivíduo está caminhando para a morte.
Platão, outro filósofo, já afirmava que “o preço a pagar pela tua não participação na política é seres governado por quem é inferior”. No caso em questão, o preço a pagar por deixar Bolsonaro no poder é ainda maior: morte ou constante ameaça à vida, falta de dignidade, desemprego, empobrecimento e fome, perda da liberdade, inexistência da justiça e da verdadeira política e de toda nossa soberania, além da transformação do Brasil em celeiro de vírus para a humanidade.
Bolsonaro é a causa da propagação do vírus
A afirmação, atribuída à esquerda, de que “Bolsonaro é pior que o vírus” não é boa para a defesa dos protestos. O correto seria afirmar que Bolsonaro é o maior responsável pela propagação e evolução do vírus, sendo ele, portanto, sua maior causa no país. Dessa forma, a esquerda, com seus protestos, está forçada a respirar um ar envenenado por alguns segundos, enquanto desliga a chave do gás. Alguém tem que fazê-lo, pois, do contrário, todos estaremos mortos. Mais uma vez, a noção de “mal necessário” se faz presente e não há como ser diferente. Além disso, todos que trabalham, compram, visitam familiares doentes, etc, estão respirando um pouco desse ar venenoso todos os dias. Para essas atividades, muitas vezes a imprensa corporativa fecha os olhos, dizendo que é algo necessário, tão necessário quanto a atividade jornalística ou de entretenimento dessa própria mídia. Quanto a isso, cabe uma pergunta, o que é mais necessário, para o Brasil e para o mundo, que tirar Bolsonaro e companhia?