Último texto da série sobre o gigante asiático discute como definir a economia de um país que tem um mercado e empresas privadas mas é rigidamente controlada pelo Estado por meio de um planejamento central

por Alexandre Flach
Este texto é o último da Série China, que começou perguntando “China será o país dos sonhos pós-pandemia?”, continuou com a questão, “Qual é o segredo do sucesso da China?“ e, finalmente, questionou: “A China é uma ditadura?”
Há alguns meses, em 1º de outubro de 2019, a China festejava a passagem dos 70 anos de sua revolução comunista, projetando como meta de “curto prazo” nada mais nada menos do que “abolir a pobreza extrema”, e isto até 2021. Como se a meta de curto prazo já não soasse quase como um sonho, a meta de “médio prazo” – até 2049 – é apenas e tão somente transformar a China em um país “socialista moderno, próspero, poderoso e democrático”, uma sociedade “modestamente confortável em todos os aspectos”.
Para se ter uma ideia da ousadia, o que os marxistas chamam de socialismo é um período histórico tão além do capitalismo como a nossa sociedade é mais avançada do que o feudalismo. Estamos falando, literalmente, de um mundo novo.
Nem precisa dizer que ambições como estas poderiam trazer boas gargalhadas a qualquer pessoa com um mínimo de bom senso. Mas a questão é: estamos falando da China. O país que perdeu 5 mil vidas na mesma pandemia que já levou a vida de mais de 100 mil norte-americanos. E isto tendo sido pego totalmente de surpresa, em um momento com baixíssimo conhecimento sobre aspectos fundamentais da doença como taxa e meios de propagação.
A capacidade de mover recursos financeiros, de infraestrutura, de produção industrial e de pessoas para assegurar a vida de sua população – e aparentemente sem entrar no dilema de salvar “vidas ou economia”, chama hoje a atenção do povo do mundo inteiro, principalmente entre os mais pobres, que nos países capitalistas sabem que são o “alvo fácil” da doença, estão entre os que mais irão ver mães, pais, filhos, amigos e parentes deixarem a vida por conta de um vírus.
E agora que as pessoas estão perdendo a paciência com seus governos capitalistas, e a raiva cresce, a imprensa oficial corre para tentar explicar a China, como um caso… diferente.
Que a China é diferente ninguém duvida mais. Mas diferente como? Já houve gente dizendo que a China é assim porque voltou a aderir a capitalismo, outros dizem que é capitalista, mas tem uma ditadura comunista por dentro, pesando nas costas de um povo semi-escravo.
Já tem muita coisa sobre estes assuntos nessa Série China. Mas ainda não entramos nessa questão central: afinal, a China é mesmo um país capitalista?
A China é só mais um país capitalista?
Nos países capitalistas, o sucesso da China em geral é divulgado como a prova perfeita de que o capitalismo “dá certo”. A China cresce tanto exatamente porque deixou para trás o “comunismo” e voltou a adotar o capitalismo.
O problema é que a China não se encaixa naquela visão tradicional dos economistas neoliberais ocidentais que dizem que o capitalismo é um regime que só vai bem quando o Estado deixa de interferir na economia, permitindo que o mercado regule as forças produtivas através da competição e das leis de oferta e procura.
Na verdade, se for esta a ideia de capitalismo, a China seria o exemplo exatamente contrário. Na China, quem decide tudo na economia é o Estado Chinês. A cada cinco anos, o Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês lança o chamado “plano quinquenal”, onde são traçados os rumos da economia do país, com base no que eles denominam de “Tríplice Representatividade”, ou seja, um plano que represente as necessidades de desenvolvimento das forças produtivas, o avanço da cultura do país e os interesses fundamentais do povo.
E para implementar esses planos quinquenais, o Estado Chinês tem poderes que nenhum Estado capitalista ocidental possui. Na China, estão nas mãos do governo todos os setores estratégicos e de segurança do país. É do Estado todo o controle sobre a produção e distribuição de energia, sobre as telecomunicações, transporte e infraestrutura.
Até mesmo o sistema financeiro chinês é 98% estatal. Os bancos privados, que costumam mandar em todos os governos ocidentais, na China devem se contentar com uma ínfima parte do mercado. No Brasil, por exemplo, os bancos privados são donos de aproximadamente 40% dos impostos arrecadados pela União, Estados e grandes municípios.
O Banco Popular da China e o Ministério das Finanças comandam as políticas fiscais e financeiras da China, exercendo controle rigoroso sobre os bancos privados, particularmente sobre as remessas de dinheiro para o exterior. Além disso, o sistema financeiro estatal chinês é completado pelo Banco de Desenvolvimento da China, que controla todo o investimento estrangeiro, o Banco Agrícola da China, o Banco Chinês de Construção e o Banco Industrial e Comercial da China.
Por outro lado, na China existe um enorme setor privado, com um mercado em franca expansão, e até mesmo a acumulação de capital gerando alguns chineses bilionários.
Mesmo assim, aquela que forma a classe dominante dos países capitalistas, a burguesia, na China não domina nem o Estado nem a economia. E para muitos este é o ponto central para definir um país como capitalista ou não: a dominação da burguesia como classe que tem o poder de impor a sua vontade sobre toda a sociedade, a chamada “ditadura (velada) da burguesia”. Se o poder não estiver nas mãos da burguesia, seria impossível dizer que um determinado país é de fato capitalista. Por definição, capitalismo seria o sistema em que, quem manda, é o dono da grana, o dono do capital.
Enfim, para ser capitalista, quem tem o dinheiro tem que mandar na produção material da sociedade. Não basta apenas que exista um setor privado, é necessário que ele tenha poderes. E poderes suficientes para se elevar em classe dominante.
Como na China o Estado comanda com mão de ferro a economia, através de um planejamento constante, baseado na sua democracia centralizada, surgem muitas dúvidas sobre definir a China como capitalista.
Para um típico cidadão chinês, pelo menos, não tem dúvida: eles são uma sociedade socialista. Mesmo que ainda seja um socialismo em uma etapa “primária”, como dizem, em que o objetivo é o desenvolvimento das forças produtivas através de um mercado controlado pelo Estado.
É o que eles chamam de “economia de mercado socialista” ou “socialismo com características chinesas”.
Então a China é socialista?
Como já foi dito aqui nesta Série China, tudo o que existe hoje naquele país é fruto direto ou indireto da revolução popular ocorrida há 70 anos, que foi inspirada nas ideias marxistas de tirar à força a propriedade da elite burguesa e devolver para as mãos do povo toda a riqueza nacional, que, em última análise, desde sempre pertenceria ao povo, já que é fruto do trabalho de operários e camponeses, e não da burguesia.
A história que é contada na China é que, sem a burguesia, o povo chinês passou décadas estruturando o que o seu país é hoje, através de experiências boas e más, mas todas necessárias a um contínuo aprendizado de como fazer um país sem que o dinheiro seja a única razão de ser de bilhões de pessoas. Normalmente, é dessa forma que eles entendem que os sofrimentos de algumas gerações acabou construindo todo um conjunto de conhecimentos e soluções responsáveis pelo progresso da China atual.
Mas mesmo com todo o progresso da China, o próprio povo chinês ainda não considera o seu país realmente socialista. Para eles, a China está bem avançada e caminhando rápido, mas ainda nos primeiros passos da transição do capitalismo para o socialismo pleno: as velhas relações sociais capitalistas não foram ainda totalmente ultrapassadas.
Para entender o que eles pensam sobre essa questão é importante deixar para trás noções erradas sobre o que é o socialismo. Capitalismo, socialismo e comunismo normalmente são apresentados para os ocidentais como simples projetos de sociedade, um mero conjunto de ideias políticas e econômicas, algo como uma opção, que pode ou não ser adotada por um determinado povo.
A questão é que o próprio capitalismo não surgiu como a opção de um povo.
Ninguém chamou um plebiscito, ou algo parecido, e colocou em votação: “Povo do meu país! Vamos continuar a ser uma sociedade feudal ou vamos adotar o capitalismo?”
O que houve foram movimentos históricos, muitos deles violentos, que tiraram à força o poder de monarquias estagnadas, que não produziam nada para o povo, e ainda levavam a melhor e maior parte da riqueza de nações inteiras. Ninguém ali sabia se o novo sistema seria chamado capitalismo ou não.
Na verdade, quem conceitualizou e popularizou o termo “capitalismo”, foi justamente o tão amado e ao mesmo tempo odiado Karl Marx, na sua maior obra, “O Capital”. Sim! Conservadores do mundo se unem em falar termos da cultura marxista sem saber, na imensa maioria das vezes, já que repelem Marx sem nem ao menos conhecê-lo.
E da mesma forma que a burguesia levou uns bons 500 anos, de idas e vindas, para fazer revoluções, guerras, lutas políticas de todo tipo, inclusive no campo intelectual e teórico, para só então realmente conseguir tomar o poder dos reis e assim permitir que o mercado capitalista tomasse o mundo inteiro, para Marx, o socialismo seria a próxima etapa histórica que viria de um modo muito semelhante, como uma grande transição entre a sociedade capitalista e o futuro mundo comunista, onde não haverá mais nem classes nem Estado.
E se o socialismo é uma longa etapa de transição histórica, não estaria de todo errado concordar com os chineses e considerar a China realmente um exemplo mais avançado desta transição no mundo.
A prova de que eles estariam à frente, por assim dizer, do resto do mundo, seria exatamente esta extraordinária capacidade de dar conta dos desafios atuais, que envolvem a superpopulação, a desigualdade social, e, mais recentemente, doenças pandêmicas alastrando-se sobre o planeta. E tudo isso sem perder o pé na capacidade de gerar bem-estar em larga escala para a sua população.
A China seria prova de que os tempos do capitalismo estão chegando ao fim?
A questão que está se impondo é a de que hoje já não estamos mais vivendo um capitalismo “puro”, por assim dizer.
Uma das provas de que o próprio ciclo histórico já não mais seria o de um capitalismo em estado “puro” estaria no fato de que os regimes mais conservadores, como o dos Estados Unidos, não têm mais a mínima condição de acompanhar a evolução econômica nos parâmetros chineses, onde o normal é crescimento médio de 7% ao ano, enquanto que os EUA, com muito esforço, não conseguem nem metade disso.
O problema aí seria o anacronismo (estar fora do tempo): o formato capitalista de sociedade estaria ultrapassado.
De fato, o progresso da economia chinesa é tão grande que não é exagero nenhum dizer que hoje todo o capitalismo do planeta depende da economia chinesa, com todas as suas características “socialistas”. Em quase todo o mundo, é praticamente impossível uma pessoa passar uma semana sequer sem comprar ao menos um produto da indústria chinesa. E, da mesma forma, qualquer simples ameaça de queda de compras chinesas de ferro, ouro, cimento e outros insumos é o suficiente para derrubar bolsas de valores pelo mundo inteiro.
E se Marx estiver mesmo com a razão, e o nosso tempo já for de fato o início de uma transição histórica entre o capitalismo e o comunismo, não há dúvida de que os povos que estiverem mais atualizados nesse processo certamente terão enormes vantagens, exatamente da mesma forma como aconteceu na transição para o capitalismo, exatamente como acontece hoje com a China.
Bem, partisanos, espero que todos tenham gostado dessa Série China. E aguardem: para o bem ou para o mal, outras séries virão!
Essa serie sobre a China é ótima.