Enquanto os “adidos de saúde” da diplomacia estadunidense faziam seu trabalho por aqui, a pandemia de Covid-19 atingiu seu pico de contágio e letalidade

por Danilo Matoso
Em 16 de março, O Partisano repercutiu o furo do Brazil Wire denunciando que, segundo um relatório anual do US Department of Health and Human Services [Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos] (HHS), o Governo dos Estados Unidos vinha pressionando o Brasil a não usar a vacina russa Sputnik V na prevenção e combate à pandemia de Covid-19. No documento, retirado do ar pelo HHS, o Departamento revela, numa seção intitulada “Combatendo influências malignas nas Américas”, que seu Escritório de Assuntos Globais (OGA):
usou de suas relações diplomáticas nas américas para mitigar os esforços de estados – incluindo Cuba, Venezuela e Rússia – que vêm operando para aumentar sua influência na região em detrimento da segurança dos Estados Unidos. Nosso Escritório se articulou com outras agências governamentais para reforçar laços diplomáticos, oferecendo assistência técnica e humanitária para dissuadir países do continente a aceitar ajuda daqueles países mal-intencionados. Exemplos nesse sentido incluem o uso de nosso Adido de Saúde [na Embaixada] para persuadir o Brasil a rejeitar a vacina Russa contra a Covid-19, além de oferecer assistência técnica dos CDCs [Centros para Controle e Prevenção de Doenças] para que o Panamá não aceitasse uma oferta de médicos cubanos.
A notícia foi relativamente abafada pela imprensa corporativa, que se limitou a fazer apurações sucintas e politizadas. A Folha de S. Paulo, por exemplo, atribuiu a ação à Administração Donald Trump. Evidentemente não é esse o caso: esse tipo de ação é típico do chamado Deep State estadunidense – uma rede de agentes públicos em posições-chave do Estado, garantindo que qualquer governo daquele país atue em defesa dos interesses do grande capital global.
A denúncia porém teve o condão de provocar uma declaração potencialmente sincericida da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil. Segundo a Folha, o porta-voz do órgão diplomático teria declarado: “respeitamos o processo de aprovação da Anvisa”, reforçando que “a embaixada e os consulados dos EUA no Brasil nunca desencorajaram o Brasil a aceitar vacinas contra Covid-19 que foram autorizadas por seus respectivos órgãos reguladores”. A piscada para a Pfizer, a Johnson & Johnson, a Moderna e outras empresas norte-americanas era clara: evidentemente, a nota significa que o lobby político vinha sendo feito junto à Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Um veto técnico
De fato, foi necessário que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinasse à Agência que se pronunciasse sobre a aprovação da compra de 66 milhões de doses da Sputnik V. A Anvisa então rejeitou a vacina em 26 de abril e montou uma apresentação “técnica” em que explicava que os fabricantes da Sputnik V não haviam entregado toda a documentação requerida para seu registro, e que haveria alguns aspectos de segurança biológica a serem resolvidos.
Houve especialistas de esquerda que vieram a público reiterar a veracidade de uma apresentação que fora feita por meio de um Powerpoint numa live. Houve mesmo uma polêmica no Twitter entre a Anvisa e os fabricantes da Sputnik V, que acusaram a agência de difundir notícias falsas, uma vez que a vacina na verdade cumpria todos os requisitos necessários à sua aplicação.
Discutir publicamente minúcias sanitárias do processo de aprovação é morder a isca lançada pela Anvisa – e possivelmente pelo lobby estadunidense. Trata-se evidentemente de uma cortina de fumaça. A vacina já é adotada com sucesso em mais de 60 países, entre os quais a Índia, o México e a Argentina, tendo sido aplicada em milhões de pessoas. Puxar a polêmica para a esfera técnica é uma tática política antiga – e adotada recentemente no impeachment ilegal de Dilma Rousseff em 2016, em que as “pedaladas fiscais” de seu governo eram falsamente atestadas em economês castiço, incompreensível para praticamente a totalidade da população.
Na prática, a procrastinação da Anvisa em autorizar o uso da vacina no Brasil vem impedindo a importação de 39 milhões de doses de Sputnik V negociadas diretamente pelos governadores do Nordeste junto ao Fundo Soberano Russo desde o início de março. A entrega dessa primeira compra seria feita integralmente entre março e julho. Esse significativo montante de imunizantes teria dado ao Brasil, hoje, um ritmo de vacinação completamente diferente.
Menos vacinas, mais mortes
Enquanto os “adidos de saúde” da diplomacia estadunidense faziam seu trabalho por aqui, a pandemia de Covid-19 atingiu seu pico de contágio e letalidade em abril, com mais de 4 mil mortos diários durante vários dias, ultrapassando rapidamente a marca de 400 mil óbitos. Por outro lado, a falta de insumos para produção de vacinas já aprovadas pela Anvisa tem cada vez mais reduzido o ritmo de vacinação no Brasil. Por sua vez, os Estados Unidos já aplicaram 200 milhões de doses, já vacinam crianças e abrem as portas para o “turismo da vacina” em Miami, adotado e aprovado por ninguém menos que Roberto Justus – um ícone do colapso mental da elite econômica.
A demora em vacinar custa milhares de mortes a mais no Brasil – vidas de pessoas que, com o prolongamento da pandemia, são forçadas a romper o isolamento para trabalhar. Esse o preço do lobby americano. A burrice e a incompetência servil – de Bolsonaro e das Forças Armadas hoje no poder em nosso país – vêm resultando indubitavelmente num genocídio pelo qual hão de responder. Pode-se argumentar se, ao forçar a política da “imunização de rebanho”, há somente culpa ou se há intenção deliberada de matar. Porém, no caso dos lobistas da diplomacia estrangeira que buscam “combater influências malignas nas Américas”, há dolo explícito.
A situação remete aos dias que se seguiram ao golpe de 1964, quando o general Castello Branco deu ordem de cassar, perseguir e prender toda a esquerda. Instado pelo embaixador Lincoln Gordon e pelo “adido militar” Vernon Walters a se manifestar sobre posse do ditador – enquanto um assessor recomendava cautela por estarem “prendendo gente por lá” – o presidente Lyndon Johnson fez questão de deixar claro: “eu acho que algumas pessoas precisam ser presas mesmo, aqui e lá”! Em algumas décadas, arquivos serão abertos e diálogos similares certamente virão à tona. Até lá, cumpre que nos atenhamos aos fatos, que são suficientes: há pressão política estadunidense declarada sobre a Anvisa, há uma vacina não aprovada, há milhares de pessoas morrendo.
O Deep State estadunidense, como se sabe, está a serviço das grandes corporações. Ainda é difícil compreender a quem serve o Estado brasileiro hoje, durante o governo Bolsonaro. É de se imaginar que a recusa da vacina russa se deveria ao privilégio dos produtos europeus e norte-americanos. A realidade, porém, é que como já se sabia e cada vez mais a CPI da Covid-19 comprova é que o governo Bolsonaro fez questão de não comprar vacina alguma, e aparentemente o nosso apagão sanitário atual serve apenas a uma monarquia: a do reino dos mortos.