Os tigres, a água e as privações de nosso povo

por Danilo Matoso

O Brasil vive uma era de retrocessos e um deles corre a passos largos: a privatização da água e dos serviços de esgotamento sanitário. O chamado “novo marco regulatório do Saneamento Básico” foi aprovado no Congresso no fim de junho, estimulando a privatização desses serviços, segundo um modelo que nos reaproxima daquele adotado no Rio de Janeiro do século 19.

Diz-se que a história não se repete, e isso é verdade. Porém, a viagem no tempo e a ressurreição já são uma realidade entre nós. Ventríloquos fardados no Palácio do Planalto, num bem sucedido trabalho conjunto com coachs fracassados de cabeça branca, parecem ter descoberto que uma fórmula baseada em obscurantismo, truculência e ganância – catalizadas por uma boa e velha crise econômica – faz voltar o relógio e reaviva as mazelas do passado. Já estamos vendo os bons resultados alcançados com o redivivo nazismo no slogan governamental Brasilien über alles: terraplanismo, criacionismo e integralismo já assolam nossa terra sofrida. Mas isso não é tudo, é claro. O medievalismo cultural é apenas a crosta dos inúmeros retrocessos estruturais que esses hábeis artífices vêm alcançando.

A educação e saúde públicas, o serviço público em geral e a Administração Federal em particular prometem voltar aos gloriosos tempos do Império, em que cargos públicos eram não um meio para atender ao interesse comum, mas sobretudo prebendas vendidas ou doadas a apadrinhados. A palavra mágica para “reinventar o governo” é privatizar – evidente sinônimo de privar e de criar privilégios para poucos. Alardeada como novidade líquida e cristalina, a privatização é tão velha e suja quanto a monarquia.

“Tristes operários do labor imundo”

O saneamento básico dos centros de nossas cidades na era pré-industrial nos causaria hoje horror. O comerciante francês John Luccock, que esteve por aqui à época da chegada da Côrte portuguesa, a partir de 1808, relata em suas Notas sobre o Rio de Janeiro que nas cozinhas das casas:

“Acha-se uma tina destinada a receber todas as imundícies e refugos da casa; que, nalguns casos, é levada e esvaziada diariamente, noutros, somente uma vez por semana, de acordo com o número de escravos, deu asseio relativo e pontualidade, porém, sempre que carregado, já sobremodo insuportável”.

Joaquim Manuel de Macedo em suas Memórias da rua do Ouvidor relata que, na primeira metade do século 19:

“O mais fétido e nauseabundo despejo das casas se fazia em barris não tampados que escravos e negros africanos do ganho levavam ao mar, e a rua do Ouvidor, de fácil e reta comunicação com a praia, era uma das mais frequentadas pelos condutores dos repugnantes barris, das oito horas da noite até às dez. A esses barris asquerosos o povo deu a denominação geralmente adotada de tigres pelo medo explicável com que todos fugiam deles”.

Assim era feito o esgotamento sanitário das áreas centrais do Rio de Janeiro, num sistema complementado por canais como o da antiga rua da Vala – hoje Uruguaiana.

Por aquela época, prometia-se resolver parcialmente o problema por meio de um contrato de concessão, autorizado em 1853 e aprovado por decreto em 1857, com a concessionária inglesa Rio de Janeiro City Improvements do empresário Edward Gotto, residente em Londres, e seus sócios no Rio, John Frederick Russel e Joaquim Pereira Viana de Lima Júnior. Segundo o acordo, a empresa deteria por 90 anos o privilégio exclusivo de executar o serviço de limpeza das casas e do esgoto das águas pluviais da cidade do Rio de Janeiro, mediante o recebimento de taxas, isenção fiscal para a importação de materiais destinados às obras e outros benefícios.

“Tigreiros”. Charge de Henrique Fleiuss publicada na *Semana Ilustrada*, n° 35, 1861

City demorou a iniciar as obras. O jornalista e revolucionário republicano francês Charles Ribeyrolles – que viveu no Brasil entre 1858 e 1860 – relata em seu Brasil pitoresco que, na verdade, denominava-se o homem pelo ofício:

“Que se chama o serviço dos tigres. À noite, a população se afasta, se acaso surgem esses tristes operários do labor imundo. Mas ninguém lhes escapa. Eles semeiam, a cada passo, a vingança, e mais tarde, confirmando a infecção, chegam as exalações que acarretam a morte, as febres e as pestes: o cortejo do tigre”.

O fenômeno foi pesquisado em profundidade por Andréa Dias Cunha Souza em seu mestrado Tigres: tristes operários do labor imundo, a vida desses escravos era infernal: discriminados, temidos, evitados, marcados pela doença e pela humilhação “acabavam relegados ao afastamento social, colocados à margem dos padrões morais, éticos e higiênicos”.

A Glória do Russel

Evidentemente, escoam-se águas de onde elas antes lograram chegar. Em cidades coloniais – alvos de ocasionais ataques e sítios por outros europeus – garantir o abastecimento era uma questão de sobrevivência e de defesa. O centro da capital fluminense, composto originalmente por áreas alagadiças entre elevações, sempre fora suprido pelo rio Carioca, devidamente canalizado desde a mata da Tijuca, que chegava ao morro de Santa Teresa e era conduzido ao morro de Santo Antônio por um monumental aqueduto erigido no século 18 a mando de Gomes Freire de Andrade com risco do brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim: os Arcos da Lapa. Com a expansão do centro, o suprimento também era insuficiente.

Somente em 1864, após mais de uma década, a City iniciaria a prestação dos serviços que tornariam obsoletos o aqueduto e os tigres, com a inauguração da Estação Elevatória e de Tratamento do Distrito da Glória, atendendo também os bairros da Gamboa e São Bento. Após mais uma década, os serviços ainda apresentariam problemas, provocando muitas reclamações e conflitos – sobretudo quanto ao esgotamento sanitário e de águas pluviais. Ainda assim, a Inspeção-Geral de Obras Públicas insistiria em novos contratos com a companhia, expandindo a rede por vários bairros do Rio de Janeiro.

Mapa n.10 do levantamento das áreas centrais do Rio de Janeiro conduzidos por Edward Gotto em 1866. Fonte: Biblioteca Nacional

Em vão ampliava-se a estrutura de fiscalização – ou “inspetoria”. Somente quando expirou o contrato, em 1947, o serviço foi incorporado ao Departamento de Águas e Esgotos do Distrito Federal. As contínuas penúrias da população carioca com o serviço da concessionária estavam tão arraigadas no imaginário da população que se refletiriam até em marchinhas de carnaval, como Vagalume, composta em 1954 por Vitor Simon e Fernando Martins: “Rio de Janeiro / Cidade que nos seduz / De dia falta água / De noite falta luz”.

De volta à geração Coca-Cola

Chegamos ao século 21 num cenário ainda calamitoso. Em nível global, a água doce já é tratada como recurso escasso. No Brasil, a crise hídrica começou a nos atingir em cheio a partir de 2014, quando a falta de chuvas levou ao desabastecimento generalizado no sudeste, tendo atingido São Paulo com certa gravidade. Segundo o Painel Saneamento Brasil, do Instituto Trata Brasil, cerca de 33 milhões de brasileiros não têm acesso à água no Brasil, enquanto quase metade da população (47%) vive sem rede de coleta de esgoto. É uma parcela da população que vive com menos de meio salário mínimo por mês, que adoece e morre por não ter acesso a infraestrutura de saneamento básico – somente em 2017, cerca de 260 mil pessoas foram internadas e 2.353 vieram a óbito devido a doenças de veiculação hídrica.

Pelo menos no papel, o mundo quer melhorar. Em julho de 2020, completa uma década a resolução nº 64/292 da Assembleia Geral da ONU, reconhecendo que “o acesso à água potável e ao saneamento é um direito humano essencial para a plena fruição da vida e de todos os outros diretos humanos”, fundamentando cinco critérios normativos: a disponibilidade dos serviços, a qualidade e segurança, sua aceitabilidade junto aos usuários, a acessibilidade e a modicidade dos preços. Evidentemente, para obter bons resultados em tais parâmetros em países desiguais como o Brasil, é necessário elaborar políticas públicas inclusivas que promovam ativamente o serviço de saneamento. Nosso Governo Federal caminha na direção contrária.

Como se sabe, desde a crise global de 2008 o Brasil passou a regredir a passos largos. O golpe de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro nada mais são do que o reflexo político de uma brutal pressão do capital por esfolar a população brasileira num país transformado em coleção de mercadorias. Nesse cenário, é evidente que mesmo os chamados “monopólios naturais” de eletricidade, urbanização, transporte público e saneamento básico voltem a ser objeto de cobiça. Diante da ameaça global de escassez de água doce, voltar a privatizar os serviços de água tornou-se novamente prioridade.

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), apelidado de “Senador Coca-Cola” por ser um dos grandes acionistas brasileiros do império multinacional de bebidas, capitaneou nos últimos anos uma verdadeira cruzada pelo controle e privatização da água em nosso país. Já em dezembro de 2017, apresentou o projeto de lei PLS 495/2017, que altera a chamada Lei das Águas, de 1997, “para introduzir os mercados de água como instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos”.

A Lei das Águas ainda vige e torna claro em seu artigo que “a água é um bem de domínio público”, para eliminar qualquer mal-entendido sobre o que reza a Constituição Federal em seu artigo 225, que o meio ambiente é “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Segundo Dalila Calisto e José Josivaldo Alves, da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em artigo no Brasil de Fato, “tudo isso faz parte de uma grande estratégia do capital que visa transformar a água em mercadoria e propriedade privada”. Na visão do MAB, sobre o Projeto de Lei de Jereissati:

“a criação de um mercado da água significa permitir que grandes grupos econômicos, que atuam tanto no agronegócio, setor elétrico, mineração e saneamento, como Ambev, Vale, Suez, Coca-Cola, BTG Pactual, Itaú, AEGEA, BRK Ambiental, controlem e se apropriem de forma privada dos rios e das águas subterrâneas do Brasil”.

O Governo Federal assumiria a briga do tucano em agosto de 2019, quando apresentou o Projeto de Lei 4162/2019 à Câmara dos Deputados. Tramitando em regime de urgência, o projeto passou naquela Casa em dezembro do ano passado e correu empurrado pelo próprio Jereissati nos últimos meses até ser aprovado com sua própria relatoria no último 24 de junho, transformando-se no “novo marco legal do Saneamento”, ao alterar substancialmente a Lei 11.445/2007 – a antiga Lei do Saneamento.

texto aprovado prorroga o prazo para o fim dos lixões, facilita a privatização de estatais do setor e extingue o modelo atual de contrato entre municípios e empresas estaduais de água e esgoto – que agora poderá ser assumido pelas concessionárias privadas. Se antes a contratação de empresas privadas era uma opção dos municípios às companhias estatais, agora são forçados por lei a abrir licitação às empresas privadas.

Já se conhece o discurso e a realidade por trás da lógica privatista de monopólios naturais como o do saneamento básico. Se fraudes, incompetência e corrupção privam metade de nossa população de esgotamento sanitário, por que não privatizar o serviço? Assim o mercado vai “regular naturalmente” o setor, “universalizando” o serviço. A classe média e a burguesia aprovam a proposta na crença de que sua capacidade financeira os salvará. A realidade não é bem essa: crises hídricas e sanitárias atingem a população e as cidades como um todo.

Como bem lembrou em debate recente o engenheiro civil Ricardo Moretti, da UFABC, “quem está na rua tem que ter acesso ao saneamento, porque se ele não tiver, você que tem condições de pagar vai estar em risco. A pandemia deixou claro que ou construímos uma condição de saneamento boa para todos, ou todos estão em risco”. A arquiteta e urbanista Liza Andrade, professora da UnB, no mesmo evento, advertiu: “Temos que envolver a sociedade no entendimento da água. As pessoas não têm noção da tragédia que está por vir e o que podemos passar”.

No ano passado, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, por mais de uma vez referiu-se à esquerda – à classe trabalhadora e seus representantes – por “tigrada”. Que Bolsonaro cogita revogar a lei Áurea, já sabemos. Talvez esteja nos planos do Governo Federal instaurado após o golpe retomar o trabalho dos tigres – quem sabe um novo mercado de entregas controlado por aplicativos. Até aqui, a tarefa está concentrada em grande medida nas mãos de algum pobre taquígrafo do Palácio do Planalto.

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