O terror da burguesia: o Exército Vermelho de Trótski

Pela primeira vez na Rússia, e talvez no mundo moderno, operários e camponeses eram de fato promovidos aos mais altos postos militares

Imagem: Varvara Stepanova
por Alexandre Flach

O texto abaixo é a nona parte da série Fogo e revolta nas ruas: para onde vai a luta popular?

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A vitória dos sovietes sobre a ditadura do czar e da burguesia foi, antes de mais nada, a vitória do povo russo sobre a máquina de moer carne pobre: as guerras imperialistas.

Tomado o poder, a primeira urgência do povo russo, logo após comer, era ter paz e terra. Operários e colonos tinham sido mandados para morrer nos exércitos da decadente elite russa há décadas, e ninguém aguentava mais. Oficiais foram presos ou exilados. Soldados largaram a farda, voltaram para as suas famílias e corriam para o interior para receberem um pouco da terra que estava sendo distribuída pela revolução. 

Efeito colateral de tudo isso: o único pedaço de chão do planeta governado pelo próprio povo não tinha mais exército para defendê-lo.

Logo depois dos “pés-rapados” russos mostrarem para a toda poderosa e arrogante burguesia mundial do que eles eram capazes, e exatamente no momento em que as esperanças por uma vida sem patrões e sem senhores explodia no peito de 11 em cada 10 operários de diversos países pelo mundo afora, o povo russo ficava totalmente desguarnecido, feliz da vida de poder deixar para trás o passado das trincheiras e fuzis, mas sem mãos armadas organizadas para proteger o sonho comunista.

A ideia era que o sucesso dos revolucionários na Rússia incendiaria quase automaticamente a Europa inteira e a mesma deposição das armas que aconteceu em território soviético ocorreria também nos demais países. A primeira guerra imperialista mundial seria destruída “por dentro”, pela libertação dos operários do mundo inteiro que não mais seriam obrigados a combater uns com os outros pelos interesses de burguesias ambiciosas, sanguinárias e malucas dos diversos países europeus.

Uma terra sem senhores… e sem exército

Infelizmente a coisa não foi bem assim. O primeiro país que se levantaria contra a burguesia seria a Alemanha, que a essa altura aproximava-se rapidamente da histórica derrota na Primeira Grande Guerra. Com a queda do antigo governo russo, um tratado de paz com a Alemanha estava na ordem do dia e Trótski era o encarregado do Comitê Central bolchevique a negociar com os tronos de Hohenzollern e dos Habsburgo.

O problema é que a burguesia alemã não queria a paz com a Rússia, queria que os soviéticos dissessem de que lado estariam na guerra.

Trótski tentava ganhar tempo para a revolução em suas negociações com os alemães.

Matreiro e revolucionário, Trótski ostentava uma audaciosa confiança apesar de saber que seu país estava completamente vulnerável, e deste modo ganhava tempo para executar seus verdadeiros planos em território alemão. Como o exército russo simplesmente havia deixado de existir, qualquer país que quisesse tomar a Rússia naquele momento, não teria muita dificuldade em destruir a revolução operária logo em seus primeiros meses. Ainda assim, usando toda a sua eloquência, Trótski trabalhava avidamente por baixo dos panos para levantar o povo alemão contra a sua burguesia.

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Mas a “guerra revolucionária” defendida por Tróstki não era de modo nenhum um consenso, nem mesmo entre os bolcheviques. Stálin, por exemplo, dizia que não existia nenhum indício de uma revolução iminente nos países ocidentais, em particular, na Alemanha. 

Por fim, a revolução alemã não aconteceu, e um tratado de paz, ainda que bem meia-boca, foi inevitável, trazendo motivos mais do que suficientes para se acreditar como certo um ataque à Rússia pelos inimigos da Alemanha. E isto sem esquecer que a própria Alemanha também tinha motivos de sobra para quebrar o tratado e invadir a terra dos sovietes e havia muitos russos descontentes em ver o povão finalmente ter alguma esperança de viver como gente. A guerra civil estava no horizonte.

O trem de Trótski

Criado em 23 de fevereiro de 1918, os primeiros momentos do Exército Vermelho como força de guerra não eram nada gloriosos. Na verdade, o novo exército era uma zona completa. Mas como sempre, nas horas das missões impossíveis ou fatalmente fadadas ao fracasso, os companheiros bolcheviques gostavam de colocar o pescoço do camarada Tróstki no fio da navalha. E ele adorava aceitar!

Nomeado como Comissário do Povo para Assuntos Militares, Trótski tratou logo de arrumar a casa, e fez bem ao seu estilo: firme, obstinado, meticuloso, ficava aborrecido se alguém aparecesse em reuniões segundos após a hora marcada ou com as botas não polidas. Não admitia qualquer nível de insubordinação ou covardia, suas ordens tinham que ser obedecidas à risca, sem titubear. 

Trabalhando nas comunicações, tipografia, foguistas, condutores, fuzileiros e demais empregados, havia 380 pessoas a bordo do Trem de Trótski, que contava até mesmo com uma banda militar.

E montado em um trem com quatro locomotivas, dois conjuntos completos de vagões, equipados com quartos, cozinha, vagão-restaurante, telégrafo e até uma prensa tipográfica, Trótski recrutou operários e camponeses por toda a Rússia para defender a revolução, nem sempre de forma totalmente voluntária, enquanto jorrava palavras na “Imprensa de Campanha de Trótski”, agitando todo o país com sua famosa propaganda revolucionária.

O espírito da coisa era mais ou menos assim: nós fizemos a revolução para vocês, agora vocês têm a obrigação de defendê-la até a morte!

Pela primeira vez na Rússia, e talvez no mundo moderno, operários e camponeses eram de fato promovidos aos mais altos postos militares, se demonstrassem talento ou potencial. Mas ainda assim a experiência de ex-oficiais imperiais não poderia ser desperdiçada. De fato, os antigos defensores do csar foram fundamentais para o sucesso do Exército Vermelho, até porque muitos lutavam cientes de que sua fidelidade estava muito bem “penhorada” pela vida de suas famílias. Em épocas de guerra, não se brinca em serviço!

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Trótski assimilou como ninguém os métodos militares: exatidão mental, concisão verbal e precisão prática.

A guerra entre brancos, vermelhos, verdes etc…

Juntaram-se os russos perdedores, ex-donos de algum poder sobre o povo, como cossacos, oficiais derrotados, grandes latifundiários, baixa nobreza, patrõezinhos de tudo que é tipo, contando com “aquela força” da burguesia internacional, principalmente da França, Inglaterra, Estados Unidos, mas até Japão, além de uns camaradinhas anarquistas meio fora de prumo, e todos vieram com tudo para cima dos vermelhos comunistas, como já era de se esperar. Formaram o Exército Branco, cuja cor era uma referência à antiga farda imperial.

As forças dos brancos eram lideradas por experientes oficiais russos, que há tempos vinham se preparando para retomar o poder para a burguesia, ou mesmo para o czar, quem sabe? Atacavam em diversas frentes: a partir dos Urais, a leste, da Ucrânia, a oeste e da Estônia, ao norte.

Mas os brancos não eram os únicos a trazer grandes dores de cabeça para os comunistas. Camponeses revoltados com as mudanças determinadas pelo governo soviético e logo em seguida com os crescentes esforços de guerra, não demoraram a iniciar revoltas, organizando-se em bandos de guerrilheiros que atacavam tanto os brancos como os vermelhos e se espalhavam por todas as províncias russas. Alguns eram liderados até mesmo por anarquistas ou por “socialistas revolucionários” que não concordavam com as políticas bolcheviques. Na Ucrânia, por exemplo, havia dezenas de milhares destes revoltosos: eram os Verdes.

Logo em sua primeira investida o Exército Branco, sob o comando do antigo oficial do czar, Aleksandr Kolchak, levou sua ofensiva dos Urais perigosamente perto de Moscou. Mas já sob o comando de Trótski, o Exército Vermelho mostrava a que viera ao mundo e conseguiu empurrar os brancos de volta, perseguindo-os ao longo da ferrovia Transiberiana. Quanto mais se distanciava do ocidente, mais os brancos ficavam sem acesso a armas, munição e alimentos, até dispersarem-se completamente. 

Trótski em ação, liderando pessoalmente o Exército Vermelho.

Não demorou muito para o Exército Branco se reorganizar, mas agora ao sul da Rússia, sob o comando de outro ex-oficial czarista, Anton Denikin, que rapidamente tomou as cidades de Tsaritsyn e Kharkov, em junho de 1919. Trótski levou o seu trem para a frente de batalha, sabendo que a ordem soviética continuava por um fio. Reunindo todas as forças do Exército Vermelho impôs várias derrotas aos brancos que estavam preparados apenas para uma ofensiva rápida. Mais uma vez o acesso a víveres mostrou-se decisiva. Os vermelhos haviam retomado o acesso aos alimentos produzidos nos Urais e no oeste da Sibéria, o que os colocava em franca vantagem contra um Exército Branco cada vez mais faminto.

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Por fim, ao mesmo tempo que esmagava as revoltas camponesas dos “Verdes” ucranianos, o Exército Vermelho conseguiu derrotar os brancos liderados por Denikin perto de Oriol, a meio caminho entre Moscou e Kharkov. Mas o Exército Branco se reorganizaria uma terceira vez, para fazer a sua mais perigosa investida contra os revolucionários comunistas.

“Não desistiremos de Petrogrado!”

Usando esse tempo para se organizar melhor do que os outros dois generais, Nikolai Yudenich, mais um antigo general czarista, iniciou uma nova investida dos brancos, agora, a partir da Estônia, cujos combatentes, voluntários, estavam decididos a afastar o “perigo vermelho” de seu país.

Os bolcheviques foram pegos de surpresa, e o Exército Branco de Yudenich chegou a apenas 13 quilômetros de Petrogrado, com fuzis, tanques e aviões. A ameaça era tão grande que até Lênin chegou a defender a ideia de abandonar a cidade para recuar a linha de frente, e assim reorganizar as forças vermelhas, conforme contou o próprio Trótski, em suas autobiografia “Minha Vida”.

Trótski opôs-se frontalmente a Lênin, e convenceu a toda a direção bolchevique — inclusive a seu inimigo Stalin —  a “transformar a Rússia soviética num acampamento militar”, recrutando todos os homens disponíveis, voluntários ou não, para “defender Petrogrado até a última gota de sangue” mesmo que tivesse de levar a luta até mesmo “para as ruas da cidade”. A partir de então, todos concordaram que quem continuasse a defender a evacuação de Pretrogrado seria imediatamente considerado um traidor. Foram feitos expurgos dos tímidos e incompetentes. As lacunas eram preenchidas pelo pessoal diretamente ligado a Trótski, principalmente os que viajavam com ele no trem. Os bolcheviques preparavam-se para o tudo ou nada.

Quem falasse em abrir mão de Petrogrado seria imediatamente considerado um traidor.

Seguiram-se as mais intensas batalhas da Guerra Civil Russa. Trótski não se esquivava de seguir até mesmo à frente da batalha quando fosse necessário. Em certa ocasião, um dos regimentos do Exército Vermelho havia sido dispersado pelos brancos e Trótski foi a cavalo atrás dos soldados para reorganizar pessoalmente a tropa, acender novamente sua autoconfiança e segui-los na batalha, expondo a própria vida, como já havia feito inúmeras vezes.

Desta maneira, o Exército Branco foi uma vez mais obrigado a recuar pelos vermelhos, até que os principais patrocinadores da guerra — Inglaterra e França — chegassem finalmente à conclusão de que não seriam capazes de vencer os comunistas na base da força.

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E assim, com milhões de mortos, exausta de guerras sucessivas e com boa parte da produção industrial e de alimentos esgotada pelos esforços de guerra, nasceu a União das Repúblicas Soviéticas, que, menos de duas décadas mais tarde, já agora sem a ajuda determinada do camarada Trótski, seria confrontada com a mais eficiente máquina de guerra até então produzida pela história humana: o fascismo de Adolf Hitler.

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