O Ocidente superestima a influência de Aleksandr Dugin na Rússia

Na visão de muitos analistas, Dugin estaria para o governo Putin como Olavo de Carvalho estava para o governo Bolsonaro. Mas na verdade o filósofo russo tem muito pouca influência real no Kremlin

Imagem: O Partisano
por George Barros, na Providence, com tradução de Danilo Matoso

Aqueles que acompanharam a política externa russa nos últimos cinco anos1 provavelmente ouviram falar de Aleksandr Dugin. O filósofo de barba desgrenhada, afeito a geopolítica, ao misticismo, a neonazistas Ocidentais e teorias da conspiração, tem sido descrito tanto como “O Rasputin de Putin” quanto como “O Cérebro de Putin”.

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Após a invasão da República da Geórgia pela Federação Russa em 2008, a anexação da Crimeia em 2014 e uma guerra híbrida prolongada no leste da Ucrânia, Dugin ganhou fama entre jornalistas como a mente maquiavélica por trás das políticas externas chauvinistas de Putin. Dugin, seu trabalho e sua suposta influência sobre as elites do Kremlin têm sido discutidos com seriedade por todos – desde um Richard Spencer a um Glenn Beck.

Dugin, o mentor intelectual do neoeurasianismo, é antiglobalista, antiocidentalista e antiliberalismo. Para desentranhar de modo claro sua visão de mundo idiossincrática é necessária uma análise aprofundada. Os escritos de Dugin sobre geopolítica – na maioria não traduzidos sequer para o inglês – são propositalmente esotéricos, “místicos e ocultistas por natureza”. Dugin é adepto do tradicionalismo, da espiritualidade mística, do paradigma da política externa realista e da reconstituição parcial da União Soviética (mas não do comunismo). Dugin é um homem enigmático com ideias assustadoras, mas será que ele é realmente o estrategista da geopolítica do Kremlin? Um olhar do Zeitgeist russo para além da superfície revela que, apesar de controverso e condenável, Aleksandr Dugin não tem o papel de eminência parda que muitos no Ocidente o atribuem de modo tão frequente quanto equivocado.

Correlação nunca deveria ser confundida com relação causal. Muitos observadores ocasionais da Rússia e kremlinologistas de sofá outorgam enorme poder ao filósofo controverso a partir de indícios especulativos baseados em rumores. Dugin goza de alguma visibilidade na Rússia. Sua excentricidade pessoal e sua aparência de figura influente, aliadas à política externa agressiva de Putin, facilitaram a ressonância na imprensa ocidental da narrativa plausível de que Dugin é o estrategista de Putin.

Esse mito cresceu de modo absurdamente desproporcional. Em consequência, Dugin recebe muito mais credibilidade que a merecida. Defensores da versão de “Dugin, o Cérebro” devem corroborar suas alegações com provas e perguntar-se quão efetiva é, se é que existe, uma eventual influência de Dugin nas elites do Kremlin e na política externa russa.

De fato, é algo difícil para aqueles com pouca experiência regional ou um limitado conhecimento especializado na análise da liderança russa. Deve-se admitir que é difícil, para um observador ocidental, determinar com precisão a diferença entre a popularidade aparente de Dugin e sua verdadeira influência sobre as elites do Kremlin. A maioria, inclusive eu, está pouco preparada para isso. Reavaliar a suposta influência de Dugin faz-se necessário.

É fácil entender por que muitos concluem que Dugin é influente. Afinal, Dugin é um nome familiar na Rússia e um autor razoavelmente popular. Ele tem conexões com os serviços de inteligência militar russos; seu “manual de geopolítica” – Fundamentos da geopolítica – é comprovadamente uma leitura obrigatória nas academias militares russas2 e ele chegou a trabalhar como chefe do Departamento de Sociologia das Relações Internacionais da Faculdade de Sociologia da Universidade Estatal de Moscou.

Um vínculo causal parece plausível porque muitos elementos das divagações de Dugin realmente lembram as estratégias empregadas pelos serviços de inteligência russos. Um exemplo notável é como os serviços de inteligência russos exacerbam as tensões em clivagens sociais históricas, como raça, para semear a discórdia nos Estados Unidos.3 Apesar disso, só porque Dugin predica certas estratégias presentes na política russa, isso não significa que ele foi o inspirador ou catalisador daquela política. Eu ressaltaria que os esforços dos serviços de inteligência russos para provocar conflitos sociais e caos dentro dos EUA fazem parte de uma longa história que antecede Dugin, e que os políticos do Kremlin simplesmente ignoram muitas das recomendações de Dugin. O princípio da Navalha de Occam sugere que, no caso de Dugin, um relógio quebrado ainda está certo duas vezes por dia; Dugin, na melhor das hipóteses, às vezes descreve a política russa, mas atribuir causalidade a Dugin é algo completamente especulativo, especialmente porque muitas das políticas de Dugin têm precedentes na caixa de ferramentas do Kremlin.

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Na impossibilidade de ter acesso direto ao alto escalão do poder na Rússia, deve-se recorrer a especialistas mais preparados para atestar a influência real de Dugin (ou a ausência dela). As evidências sugerem que as elites do Kremlin não levam Dugin a sério. De acordo com um colega experiente na análise das lideranças, negócios e doutrinas militares russas, Dugin recebe mais atenção no Ocidente que na Rússia. Ele me disse: “Eu ouço falar muito mais de Dugin no Ocidente que na Rússia. É como a ’Doutrina Gerasimov”, que na verdade não existe”.

Semelhante entendimento tem outra colega que estudou relações internacionais a partir da perspectiva da Federação Russa no Instituto de Relações Internacionais Estatal de Moscou – um instituto de ensino superior de excelência famoso por formar os espiões e a elite política da Rússia, certa vez chamado de “Harvard da Rússia” por Henry Kissinger. Segundo ela, sequer uma vez Dugin, seus escritos ou ideias foram citados em apostilas, discussões de aula ou conversas pessoais com pensadores russos, com estudantes ou com membros do corpo docente.

Formulando meu próprio juízo sobre o tema, eu posso atestar que minhas discussões com acadêmicos russos nesse campo não passam por Dugin. Ao invés disso, o foco é em nomes conhecidos da teoria das relações internacionais: Hans Morgenthau, John Mearsheimer, Samuel Huntington, Francis Fukuyama, Joseph Nye etc. – e na verdade Dugin não está nessas fileiras.

Acresce que, a partir de meus contatos com a Rússia e com especialistas em inteligência com experiência pessoal em análise das lideranças russas, posso afirmar que é fácil superestimar a influência de Dugin no Kremlin de Putin. É consenso entre especialistas de que a influência de Dugin chegou ao auge há mais de uma década, e que somente um grupo cada vez menor de intelectuais o considera seriamente. Dugin talvez tenha sido influente no final dos anos 90, e início dos anos 2000, devido a suas conexões com os serviços de inteligência russos.4 Porém, o Kremlin hoje não o leva a sério. Ele ainda é marginalmente relevante porque funciona como uma espécie de diplomata informal para a extrema direita ocidental – de modo análogo a como o Kremlin usa Vladimir Zhironovsky, o chefe do Partido Liberal Democrático da Rússia (que é tudo menos o que o nome sugere), como um bobo da corte na Duma, para ver como o Ocidente reage a suas declarações excessivamente provocativas. Nesse sentido, Dugin, como Zhironovsky, não serve a quaisquer finalidades práticas na elaboração de políticas, mas é considerado de algum modo útil como instrumento informal de combate junto a públicos estrangeiros estratégicos, tais como líderes durões de extrema-direita marginal no Ocidente.

A cobertura sensacionalista de Dugin pela imprensa não corresponde a poder ou influência reais. Dugin se viu em maus lençóis em 2014, quando advogou abertamente o genocídio de ucranianos, alegando que a abordagem de Putin com respeito à Ucrânia não fora suficientemente agressiva.5 Devido a seus comentários, Dugin foi demitido de um cargo prestigioso na Universidade Estatal de Moscou – evidentemente por não ter ali penetração suficiente entre as elites para manter seu emprego.

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Os argumentos aqui apresentados estão de acordo com múltiplos estudos acadêmicos. Segundo um estudo de 2017 da RAND Corporation, Dugin exerce pouca influência sobre os políticos e as elites russos.

A China representa uma ameaça para a Rússia, então Dugin recomenda ajuda da Coreia, Vietnam, Índia e Japão para garantir a “desintegração territorial, a fragmentação e a divisão política e administrativa do estado” chinês. À exceção talvez da Ucrânia, esses não parecem ser conceitos realistas que tenham adesão significante de autoridades russas. Ele é provavelmente mais visto como um provocador extremista com algum impacto limitado e periférico que como um analista influente com impacto direto na política. Ele não parece ter envolvimento direto com os principais partidos que advogam políticas regionais agressivas ou antiocidentais – como Rússia Unida, o Partido Comunista, o Partido Liberal Democrático da Rússia ou a Rodina. Ele também foi exonerado de seu cargo na Universidade Estatal de Moscou, após pregar a morte dos nacionalistas ucranianos, além de formular críticas duras às políticas de Putin na Ucrânia.

Uma análise aprofundada de Dugin publicada pelo Kennan Institute do Wilson Center chega a conclusões parecidas:

Dugin supera em muito os pequenos grupos que buscam suas próprias reflexões neoeurasianistas sem ter qualquer acesso a um público mais amplo. Ele pode ser considerado hoje como o principal teórico do neoeurasianismo.[…] Ele baseia sua ideologia em teorias da conspiração, apresentando a nova ordem mundial como uma “teia de aranha” na qual os atores globais se escondem para melhor cumprir sua missão. Dugin dedicou até mesmo todo um livro ao que ele chama de conspirologia. As ideias ali expressadas são contraditórias. Ele critica duramente os pressupostos de conspirações de judeus, maçons, marxistas etc. sustentados por inúmeros grupos políticos de esquerda e de direita, mas ele também compartilha de algumas de suas ideias. […] Paradoxalmente, Dugin está isolado dentro das correntes nacionalistas. Ele é seu único pensador de peso, e suas teorias inspiram inúmeras pessoas públicas e movimentos. Ao mesmo tempo, sua posição teórica é complexa demais para ser inteiramente adotada por qualquer partido a ponto de torná-lo seu pensador oficial. Ele também causa incômodo a todo o campo do nacionalismo russo em muitos tópicos: ele condena o populismo, central nas estratégias dos principais atores: Ziuganov, Zhirinovskii, e Eduard Limonov. As diversas correntes nacionalistas não o reconhecem como seu ideólogo […] O ecletismo intelectual de Dugin lhe garante um certo grau de sucesso na nova geração, revelando a falta de fundamentos de identidade da Rússia pós-soviética. Suas inclinações ocultistas, sua sensibilidade religiosa exacerbada, sua rejeição da ideologia comunista mas não da experiência soviética, bem como seu discurso anacrônico sobre a grandeza russa, são seus atrativos […]. Tentativas de classificar sua doutrina e sua personalidade seguem sendo inevitavelmente adivinhações.

As ideias de Dugin são indubitavelmente perigosas e não devem ser subestimadas. Dito isso, é de se ressaltar que Dugin recebe muito mais atenção e credibilidade da parte de figuras como Lauren Southern e da alt-right ocidental que dos políticos do Kremlin. Dugin fascina a alt-right com sua retórica antiliberal, antiglobalista, eurocética e nacionalista. Esses imbecis úteis, juntamente a jornalistas reacionários, garantem a Dugin uma cobertura e uma legitimidade muito maiores no Ocidente que nas elites do Kremlin, sobre as quais ele supostamente exerce muita influência. Como resultado, observadores ocidentais impressionáveis concluem que Dugin é um líder ideológico quando ele não o é. Para verdadeiramente compreender quem verdadeiramente influencia o Kremlin, deve-se observar o ativista russo ortodoxo e oligarca Konstantin Malofeev, que financiou grupos russos no leste da ucrânia, bem como o filósofo eslavofílico do início do século 20, Ivan Ilyin.

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Dugin não tem força real no Kremlin. Suas ilusões de grandeza são impulsionadas por sua reputação na blogosfera ocidental. Ao colocar o periférico num microscópio, os jornalistas ocidentais atribuíram a Dugin uma grande influência que simplesmente não existe. É hora de deixar para trás o mito de “Dugin, o cérebro”.

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George Barros é um analista de Washington especializado em Ucrânia e Rússia. Tem graduação em Relações Internacionais e em Estudos Russos e Pós-Soviéticos no College of William and Mary. É pesquisador no Institute for the Study of War.


  1. Nota do tradutor: artigo publicado em 2019.↩︎
  2. Há muitos relatos de que Fundamentos da geopolítica é leitura obrigatória em academias militares russas. Podemos pelo menos supor que é uma leitura obrigatória. Além de uma pletora de rumores jornalísticos, eu não fui capaz de encontrar nenhuma prova ou fontes confiáveis apontando que Fundamentos da geopolítica é leitura obrigatória. A ampla maioria de citações jornalísticas de Fundamentos da geopolítica é baseada nessa página da Wikipedia, que não pode ser considerada competente ou confiável. Em minha própria análise de fontes abertas, encontrei um post de blog de 2004 no qual Dugin exalta o crescente interesse na geopolítica como campo de estudos acadêmicos. Nesse post, Dugin agradece a Nikolai Pavlovich Klokotov – por muito tempo o chefe do Departamento de Estratégia Militar na Academia Militar do Corpo Geral das Forças Armadas da Rússia – como um consultor a pesquisa do livro. Dugin também afirma que um curso obrigatório em geopolítica nas academias militares “está sendo planejado” para o ano acadêmico seguinte. Dugin não faz qualquer alusão a Fundamentos da geopolítica como parte do programa do curso. Se algum leitor tem provas ou fontes internas que atestem que Fundamentos da geopolítica é de fato usado como leitura obrigatória nas academias militares russas, por favor, me esclareça.↩︎
  3. Segundo a análise de John Dunlop de Fundamentos da geopolítica, Dugin escreve: “É especialmente importante introduzir a desordem geopolítica na atividade interna americana, encorajando todos os tipos de separatismo e conflitos étnicos, sociais e raciais, apoiando ativamente todos os movimentos dissidentes – grupos extremistas, racistas e sectários, desestabilizando assim os processos políticos internos nos Estados Unidos. Também faria sentido apoiar simultaneamente as tendências isolacionistas na política americana”. Isso não seria de modo algum uma novidade, pois a KGB estava envolvida em atividades similares muito antes de Dugin.↩︎
  4. O pai de Dugin foi uma autoridade no GRU [Departamento Central de Inteligência da Rússia]↩︎
  5. Dugin escreveu o seguinte numa rede social, após a revolução do Euromaidan em Kiev. “Devemos limpar dos idiotas a Ucrânia. O genocídio desses cretinos é necessário e inevitável. […] Eu não posso acreditar que esses sejam os ucranianos. Os ucranianos são um belo povo eslavo, e esses aí são uma raça de bastardos que emergiu dos esgotos.↩︎

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