Mais um monumento de Niemeyer ameaçado

Há mais um monumento ameaçado de destruição. Ele não homenageia bandeirantes, mas a um trabalhador sem terra assassinado pela PM do Paraná há 20 anos

Imagem: O Partisano sobre foto do MST
por Danilo Matoso

Na última semana, O Partisano publicou um artigo sobre a fortuna de quatro ou cinco monumentos projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer em homenagem ou em solidariedade aos trabalhadores oprimidos – alguns não construídos, outros destruídos, outros hoje ainda existentes: todos atacados por militares, fazendeiros, jagunços. Recentemente, outra obra de Niemeyer destinada a rememorar o assassinato de um trabalhador rural também passou a ser ameaçada: o Monumento Antônio Tavares, em Campo Largo, Paraná.

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O debate sobre os monumentos, em princípio, foi pautado a partir da discussão sobre a demolição ou remoção de monumentos dedicados aos bandeirantes paulistas – ídolos dos fascistas nacionais. Por um lado, as obras de Niemeyer foram boicotadas e demolidas sem qualquer consequência para os autores dos atentados. Por outro lado, o trabalhador Paulo Galo, que assumiu a autoria de um ataque simbólico recente a uma estátua do bandeirante Borba Gato em São Paulo, foi imediatamente encarcerado após se apresentar voluntariamente à polícia. As classes sociais que cada monumento representa explicam a diferença de tratamento.

Arquitetura da violência

No amanhecer de 2 de maio de 2000, cerca de 50 ônibus com mais de 1,5 mil trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) rumavam para Curitiba, Paraná, pela rodovia federal BR-277. Eles participariam de uma Marcha pela Reforma Agrária na Capital. A cinco quilômetros de seu destino, em Campo Largo, o comboio foi detido pela Polícia Militar do estado. Os trabalhadores foram forçados a descer e a deitar-se na beira da estrada. Quem reagiu, foi duramente reprimido com tiros e bombas de gás, atirados indiscriminadamente também sobre mulheres e crianças, resultando em cerca de 180 feridos – alguns deles ameaçados de morte por policiais mesmo no hospital. Um grupo de 30 sem terra que tentou fugir, foi perseguido a tiros por dois quilômetros, numa caçada que resultou na morte a tiros do militante do MST Antônio Tavares Pereira – 38 anos de idade, cinco filhos.

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Aquele foi só mais um dentre muitos atos de brutal repressão aos movimentos de luta pela terra durante o mandato do então governador Jaime Lerner (PFL-PR). O arquiteto e urbanista ganhou renome internacional por suas soluções de planejamento urbano e transporte público desde a década de 1960, quando esteve à frente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), tendo sido prefeito da capital paranaense em três mandatos e governador do estado por dois mandatos (1995-2003).

Oscilando em sua carreira política entre a Arena – partido da ditadura militar –, o PDT e o PFL (atual DEM), o governador acabou conhecido nos movimentos sociais como “Arquiteto da violência” – título de um mini-documentário produzido em 2000 pelo MST e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Segundo levantamento constante no filme, Lerner ordenara à PM 115 despejos e a repressão brutal de ocupações e atos políticos, resultando em 454 trabalhadores presos, 322 feridos, cinco casos de tortura, 31 tentativas de assassinato e 16 mortos.

Arquitetura da solidariedade

Outro arquiteto, o comunista Oscar Niemeyer, assumiu nesse caso a tarefa de redimir minimamente a profissão. Filiado ao PCB desde meados da década de 1940, o então quase centenário autor dos palácios de Brasília não se furtou a projetar em 2001 um monumento em homenagem a Antônio Tavares a ser implantado no local em que o comboio foi atacado pela polícia. A obra consiste numa lâmina de concreto vazada pela silhueta de um trabalhador com uma foice em riste. Em seus pés, consta a poesia de Pedro Tierra: “O que pode o grito se não perpetua? Aqui o grito se põe em pedra para que a memória não se cale, e as areias do tempo e do silêncio não dissolvem a voz dos que cantam para acordar o dia da justiça”.

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Aos vinte anos de idade, o Monumento encontra-se ameaçado. A empresa Postepar Indústria de Artefatos de Concreto Paraná Ltda. é proprietária dos terrenos em que a obra se encontra, tendo cedido o espaço em comodato para sua construção. O acordo é renovado automaticamente a cada cinco anos, mas em 2016 a empresa decidiu manifestar interesse em removê-lo. A justificativa seria a ampliação de um estacionamento de caminhões no pátio da indústria. Além disso, a Postepar alega que o Monumento “é apenas um pedaço de concreto no meio do mato”.

O MST se mobilizou, juntamente ao Terra de Direitos e à Justiça Global contra mais esse arbítrio, acionando a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Reconheceu-se que a ação cumpria as três medidas fundamentais para a proteção provisória do bem: a defesa da obra é urgente, tendo em vista o risco de dano com possível remoção do monumento; a ameaça ao monumento e à memória de luta é grave; e uma possível danificação à obra configura-se como dano irreparável. Em 24 de junho, o organismo determinou que o Estado brasileiro proteja o Monumento, ensejando a abertura de processo de tombamento da obra – que por hora foi iniciado apenas pela prefeitura de Campo Largo.

Arquitetura da impunidade

A discussão sobre o Monumento não vem ao acaso. Ela se mistura à intensificação dos ataques a organizações e lideranças de trabalhadores – sobretudo aquelas de luta pela terra e pela moradia – após o golpe de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro. Enquanto aumentam as mortes no campo, sobretudo as de lideranças, busca-se toda solidariedade possível em sua defesa e da memória de sua luta. Nesse sentido, duas décadas após o ocorrido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou em fevereiro de 2021 um relatório sobre o ataque à caravana do MST em 2000. O documento demonstra que o Estado brasileiro não resolveu satisfatoriamente o caso, até mesmo porque os policiais envolvidos não foram punidos.

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Nesse contexto, o Monumento a Antônio Tavares é não apenas uma homenagem à luta dos trabalhadores. É também, como outros monumentos de Niemeyer, um alerta permanente sobre a impunidade de torturadores e assassinos fascistas. Os criminosos à frente da ditadura empresarial militar que assolou o país por 21 anos viveram livres até suas mortes naturais. As empresas que apoiaram aquele regime – inclusive os principais gigantes da comunicação – são ainda hoje ícones da burguesia nacional. Os que restaram vivos inspiram e apoiam o governo genocida de Jair Bolsonaro. Eles foram e são o núcleo central do bolsonarismo. Relembrar seus crimes é ainda, mais que nunca, relembrar sua impunidade.

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