Lula, Bolsonaro e Eleições: entrevista com Jones Manoel

por Alexandre Flach, Beatriz Luna Buoso e Danilo Matoso

Entrevistamos Jones Manoel e não falamos de Stálin nem de Domenico Losurdo. O tema só apareceu no final da conversa: “Não aguento mais falar do Stálin. Estou tendo até pesadelo com ele.” Desde o dia 4 de setembro, o jovem marxista está em evidência no debate político nacional. Esse foi o dia em que o cantor Caetano Veloso declarou que havia revisto suas posições “liberaloides” sobre as experiências socialistas, durante uma entrevista com Pedro Bial na Rede Globo. A revisão se deu por conta de uma conversa com Jones, que indicou uma leitura para Caetano: Domenico Losurdo, filósofo italiano que escreveu, entre muitos outros títulos, a Contra-história do liberalismo.

A declaração de Caetano viralizou nas redes, levou Stálin aos trending topics do Twitter e rendeu acusações contra o cantor de flertar com o “neostalinismo”, palavrão utilizado por Pablo Ortellado, por exemplo, em uma coluna para a Folha de S. Paulo. Jones Manoel, por sua vez, acusado de ser “estalinista” já em outras oportunidades, respondeu à coluna de Pablo Ortellado em um texto assinado em conjunto com Breno Altman (também entrevistado anteriormente aqui) e publicado na Le Monde Diplomatique.

Muito mais para dizer

Apesar dessa repentina visibilidade, porém, Jones não começou sua atuação política ontem. Militante do PCB há quase sete anos, conta que já viajou muito pelo Brasil divulgando o marxismo. Seu canal no YouTube hoje tem quase 120 mil inscritos. Ele também participa do podcast Revolushow e é autor de livros e artigos. Todas iniciativas que fazem parte de uma “frente de trabalho político-ideológica-cultural” para “fazer um trabalho de popularização e divulgação do Marxismo”.

Com toda essa bagagem, embora Stálin e Domenico Losurdo sejam assuntos relevantes e interessantes, Jones tem também muitas outras coisas para dizer. Conversamos durante aproximadamente duas horas, passando por temas como a conjuntura nacional, o futuro da esquerda, o papel das eleições, Lula, Bolsonaro, EUA, China e a formação política de nosso entrevistado.


O Partisano: Segundo algumas leituras, o golpe de 2016 constituiu uma expressiva derrota da estratégia democrático-popular da Esquerda no Brasil – aquela encampada sobretudo pelo PT. Você acha que essa estratégia se exauriu? Quais as alternativas delineadas para uma efetiva estratégia revolucionária no Brasil hoje?

Jones Manoel: Avaliar a falência histórica de uma estratégia política é um negócio muito complicado. Tem um debate clássico entre o Edmilson Costa – secretário político do PCB – e o Valter Pomar em que o Valter Pomar fala que a estratégia democrático-popular não acabou, em suas possibilidades históricas, e cita como exemplo a força eleitoral que o PT ainda tem. Toda vez que a gente debate a estratégia democrático-popular cita-se que o PT e as organizações associadas ainda têm um peso de massas significativo, um peso no sindicalismo, no movimento estudantil, no movimento negro, uma força eleitoral expressiva – e todos esses dados são verdade. Mas o PCB, quando foi derrotado com o golpe de 64 e até a metade dos anos 80, também tinha uma força expressiva e muito significativa nos movimentos de cultura, associações de moradores, sindicatos etc.. Inclusive a própria CUT não nasceu dirigindo o movimento sindical. Ela teve que ganhar o movimento do sindicalismo do PCB, que ainda era muito forte.

Se a gente for partir desse critério, vai dizer que a estratégia democrático-nacional derrotada em 64 também não foi derrotada em 64 porque o partido manteve força de massas. O critério me parece ser a capacidade que uma estratégia política tem de constituir um horizonte revolucionário e de mobilizar e encantar cada vez mais setores da classe trabalhadora – dos explorados e oprimidos às camadas médias do mundo e da cultura – para conduzir uma ofensiva, ainda que toda ofensiva tenha recuos. Me parece que analisar a capacidade de uma estratégia e sua vigência histórica passa por compreender a luta de classes enquanto um movimento que consegue cada vez mais unificar a classe trabalhadora dentro de um programa político coerente e ter uma capacidade de atração mesmo – simbólica, política, imagética, teórica – que constitua um horizonte de mundo, uma visão de política, de tomada do poder.

A ocupação das escolas secundaristas e das universidades públicas, a chamada Primavera Feminista, a campanha Cadê o Amarildo, os protestos contra a morte da Marielle Franco, os protestos do Ele Não, enfim. Todas as mobilizações de massa expressivas nos últimos anos se deram por fora dessas estruturas tradicionais.

A estratégia democrático-popular perdeu essa capacidade. Hoje há um desgaste de vitalidade teórica, de vitalidade simbólica, de vitalidade afetiva dessa estratégia, de tal sorte que ela não consegue aglutinar novos setores da classe trabalhadora nem consegue ser um vetor de politização, de organização da resistência da classe trabalhadora. Muito pelo contrário, se a gente for parar pra pensar, todas as mobilizações de massa expressivas da classe trabalhadora brasileira e da juventude de 2013 pra cá se deram por fora das organizações tradicionais montadas pela estratégia democrático-popular ou por dentro delas com uma pressão de baixo pra cima – como foi o caso da greve geral contra o governo Temer. A ocupação das escolas secundaristas e das universidades públicas, a chamada Primavera Feminista, a campanha Cadê o Amarildo, os protestos contra a morte da Marielle Franco, os protestos do Ele Não, enfim. Todas as mobilizações de massa expressivas nos últimos anos se deram por fora dessas estruturas tradicionais. E as estruturas tradicionais montadas durante a vigência da estratégia democrático-popular – cujo exemplo mais significativo é a CUT, ou até no âmbito da juventude a UNE, que foi recriada e hegemonizada por essa estratégia – não conseguem ser protagonistas de nenhuma dessas mobilizações.

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Afora que é um dado consolidado, muito bem registrado em várias pesquisas, que hoje não se pode falar tanto de uma força eleitoral da estratégia democrático-popular enquanto horizonte de política. É muito mais uma força eleitoral centrada e concentrada no Lula. Evidentemente o PT tem bases importantes, que mantêm uma vigência, uma pujança, eleitoral significativa. Mas hoje isso não reflete uma concordância ou um horizonte de política que está socializado, mas muito mais uma visão encarnada na personalidade do Lula. É muito mais uma força do lulismo que da estratégia democrático-popular. Prova disso é o esdrúxulo voto “bolsolula” em 2018, que tinha várias e vários trabalhadoras e trabalhadores que diziam que votariam ou no Lula ou no Bolsonaro. Se o Lula não fosse candidato, votariam no Bolsonaro. Inclusive esse foi um dos motivos pra garantir a retirada do Lula da eleição: o Lula tirava votos do Bolsonaro. O que, em si, mostra um fenômeno assustador de despolitização: a pessoa considerar Lula e Bolsonaro pra ela, quase que parecidos.

Me parece muito claro, por esse critério, que a estratégia democrático-popular não consegue mais dar respostas, e por um segundo critério: esta é a maior derrota histórica da classe trabalhadora. Eu venho defendendo isso e alguns amigos falam que estou exagerando um pouco, que essa afirmação é muito forte, muito peremptória. Mas me parece muito claro que o conjunto de ataques que a gente vem vivendo desde o ajuste fiscal, começado com o governo Dilma, com Joaquim Levi, até agora nunca se viu – como diria Lula, “nunca antes na história do Brasil” se viu um negócio desse jeito.

E a classe trabalhadora não consegue reagir, ainda que você tenha espasmos de resistência significativa aqui e ali. As organizações tradicionais, formadas no ciclo dos últimos 30-40 anos da Esquerda brasileira, não conseguem ter nenhum tipo de protagonismo. Efetivamente é isso: a UNE, a CUT, a CTB, os movimentos associados, simplesmente não conseguem ser cabeça de nenhum tipo de reação.

Você junta contrarreforma trabalhista, contrarreforma da previdência, agora vem a contrarreforma administrativa, a chamada MP da Liberdade Econômica, o processo de desmonte de políticas públicas, corte de gastos, deterioração dos serviços públicos, enfim. É um conjunto de coisas tão amplo e tão forte que nem a ditadura militar conseguiu atacar tão fundo os processos de desregulamentação do mercado de trabalho e avançar tanto. Nem o governo FHC. É importante lembrar que o governo FHC tentou acabar com a CLT centenas de vezes e nunca conseguiu – embora tenha feito várias emendas, tenha trazido a terceirização para o Brasil, tenha ampliado seu número significativamente e, quando FHC saiu do governo, o Brasil tivesse um milhão de trabalhadores terceirizados. O conjunto de ataques que a gente vem vivendo é impressionante. É impressionante a velocidade, a ferocidade, sem falar nos 140 mil mortos – em números oficiais – pela pandemia. E a classe trabalhadora não consegue reagir, ainda que você tenha espasmos de resistência significativa aqui e ali. As organizações tradicionais, formadas no ciclo dos últimos 30-40 anos da Esquerda brasileira, não conseguem ter nenhum tipo de protagonismo. Efetivamente é isso: a UNE, a CUT, a CTB, os movimentos associados, simplesmente não conseguem ser cabeça de nenhum tipo de reação.

É muito diferente, por exemplo, do que aconteceu na Argentina – só pra ficar num exemplo significativo. Na Argentina, o kirchnerismo – enquanto uma variante do peronismo – perde a eleição pro Macri sendo que eles mantêm uma força social muito grande de resistência, que faz da vida do Macri um inferno, e voltam na eleição seguinte. Isso não está colocado agora no Brasil, muito pelo contrário.

Claro que na luta de classes sempre existem surpresas. O Valter Pomar sempre gosta de lembrar isso – e nesse ponto ele está certo. Existe uma energia social não usada, fundamentalmente porque as direções têm alergia à luta de classes. Prova disso foi que, depois da vitoriosa greve geral contra a destruição da CLT, as centrais sindicais – com a CUT na cabeça junto com a Força Sindical – decidiram tirar o pé das ruas e fazer pressão parlamentar, mandar e-mail para os deputados, porque a eleição estava chegando. Então existe uma energia social não usada que, se for mobilizada, pode apresentar algumas surpresas. Até porque, como dizia a Rosa Luxemburgo, o movimento de massas em si é pedagógico. Quando as massas estão na rua, o processo de desenvolvimento da consciência é muito mais rápido que qualquer escola de formação política, qualquer cursinho d’O Capital e por aí vai.

Agora, a despeito disso, me parece que essa falência histórica está bem colocada. Eu também sinceramente não acredito que as direções, as burocracias sindicais estabelecidas, tendem a querer usar essa energia social subutilizada. Não me parece ser essa a tendência. Se isso fosse acontecer, teria acontecido quando o Lula foi preso. Se isso não aconteceu, pra mim, está bem provado que essa não seria a tendência. Então, minha resposta seria: sim, temos uma falência do [campo] democrático-popular.

OP: E qual a estratégia política do PCB para colocar essa energia potencial em movimento?

JM: Eu acho que é muito importante lembrar que, na história brasileira – e na história mundial –, uma estratégia hegemônica da classe trabalhadora só é substituída por outra num ciclo de ascensão das lutas populares. Quando o anarquismo ficou para trás e veio o Partido Comunista, isso se deu numa onda de greves, de protestos, de mobilização da classe média, tenentismo, Revolução Russa e por aí vai. O PCB, como eu disse, foi derrotado em 64 mas manteve uma força social significativa. Ele só foi substituído, ficou pra trás na história, com a ascensão das lutas de massa no final dos anos 70. E depois, quando o PT já estava organizado como cabeça, como uma organização-guia de uma nova estratégia, todas as tentativas de tentar criar uma organização alternativa ao PT ou faliram e terminaram em nada – como é o caso do PSTU – ou viraram “satélites” do PT – como é o caso da Consulta Popular e do PSOL.

Então há primeiro esta caracterização: a gente está numa época de refluxo. Substituir uma organização por outra numa época de refluxo é algo muito difícil – quiçá impossível. Sem nenhum tipo de fatalismo, a gente tem que ser muito realista. Porque imaginar a constituição de uma estratégia revolucionária como hegemônica pressupõe, por exemplo, um remodelamento de alto a baixo do sindicalismo brasileiro. E fazer isso numa época de refluxo… Eu acho que a gente não pode ser como certos setores da Esquerda brasileira, especialmente os setores de orientação trotskista-morenista, que acham que uma revolução está sempre para amanhã ao meio-dia: ela está sempre na esquina e todo protesto, toda greve, vira um prelúdio da revolução; é um negócio meio impressionante.

Tem que se criar uma compatibilidade entre uma ação política cotidiana imediata de difusão e fortalecimento da consciência revolucionária, da autonomia político-ideológica da classe trabalhadora e da juventude, ao mesmo tempo em que não se caia num esquerdismo e num isolamento sectário ao estilo PSTU. Compatibilizar essa política é muito difícil.

O que cabe a um partido que se propõe uma estratégia revolucionária, como o PCB? Primeiro, usando até uma metáfora militar, cabe fortificar as nossas bases. A gente precisa atuar no seio da juventude, da classe trabalhadora, dos movimentos de cultura, dos movimentos de combate à opressão, da intelectualidade, difundindo uma estratégia revolucionária potencializando a radicalidade e a auto-organização da classe e da juventude em todos os setores em que a gente atua. A gente sabe que não pode deixar de fazer agitação e propaganda da teoria revolucionária para fazer com que cada vez mais setores tenham adesão a essa perspectiva revolucionária e passem a construí-la, ainda que a gente não possa fazer política achando que a revolução é amanhã. Tem que se criar uma compatibilidade entre uma ação política cotidiana imediata de difusão e fortalecimento da consciência revolucionária, da autonomia político-ideológica da classe trabalhadora e da juventude, ao mesmo tempo em que não se caia num esquerdismo e num isolamento sectário ao estilo PSTU. Compatibilizar essa política é muito difícil.

Eu acho que o PCB vem conseguindo bons resultados em alguns setores sociais mais que em outros. Por exemplo, na juventude isso é visível, até quem não gostaria de admitir reconhece isso. Eu entrei na juventude do PCB em novembro de 2013 e não tinha quase ninguém [risos], eu fui o quarto militante da juventude do PCB na Universidade Federal de Pernambuco, a maior do Norte-Nordeste. A gente não dirigia o Interestudantil quase em canto nenhum, não tinha uma expressão nacional de juventude. Hoje em dia, no campo das juventudes que se conformavam antes na chamada oposição de esquerda – agora está rolando uma reconfiguração –, nós somos a segunda juventude mais importante: em peso de massas, em influência política, em direção de entidades, e por aí vai. Então a gente teve um crescimento de influência na juventude de maneira significativa. Eu mesmo, enquanto comunicador e propagandista do Partido, gasto três ou quatro horas diárias conversando no Instagram com jovens que vêm tirar dúvidas sobre a UJC [União da Juventude Comunista], que querem conversar sobre a UJC, que querem entrar na UJC, e eu fico tirando dúvidas, mandando material, fazendo a ponte, mandando pra galera. Então na juventude o resultado é muito vistoso. Prova disso é que há quatro ou cinco anos atrás ninguém via o PCB nas ruas – nos atos, era muito difícil você ver. Hoje essa diferença é gritante, em termos de presença de massa, por exemplo, em atos.

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No sindicalismo, a tarefa é um pouco mais difícil. Especialmente porque o processo de renovação e difusão de uma consciência revolucionária tem mais facilidade naqueles setores que têm mais tradição de politização. Em bancários, petroleiros, funcionários públicos, professores, técnicos de instituições de ensino superior, esse trabalho está bem mais avançado. Nos sindicatos da iniciativa privada sem muita tradição de politização é um trabalho que anda num ritmo muito mais lento e é muito mais difícil. Dentre outras coisas, não só pela despolitização, mas também por causas de práticas de gangsterismo mesmo. Eu já participei de uma eleição de um sindicato aqui em Pernambuco em que a chapa da oposição, no dia da apuração, meteu bala na gente, atirou na sede do sindicato – e foram três tiros. Aqui em Pernambuco, o sindicato dos rodoviários passou 30 anos na mão de um sujeito pelego e, coincidentemente, todo líder de oposição morria. Até que, quando o cabra perdeu o sindicato, ele entrou em depressão e morreu. E era isso mesmo: morria, não tinha investigação, ninguém apurava nada e a mídia também não falava.

Tem uma deficiência histórica da Esquerda Revolucionária no Brasil, hoje é muito mais presente, que é a baixa penetração nas cidades pequenas. Historicamente a Esquerda no Brasil é uma Esquerda de cidades médias e grandes. Ela é muito concentrada nas regiões metropolitanas. Por exemplo, eu sou de um estado – Pernambuco – em que, como na maioria dos estados, a população está concentrada nas regiões metropolitanas. Mas tem frentes de atuação que são muito importantes no Agreste, no Sertão, na Zona da Mata, e a presença da Esquerda, inclusive do meu partido, é muito baixa. E isso se repete em vários outros estados. Eu, por exemplo, estou recebendo mensagens no Instagram da galera que fala: “Jones, eu quero votar na Esquerda Radical, mas na minha cidade não tem PCB, não tem PSOL, não tem UP: em quem eu voto?”. Isso é muito comum. A gente tem essa deficiência – e não é só o PCB, isso é geral – que a gente não conseguiu sanar. Há um processo de territorialização da Esquerda brasileira que é muito concentrado, muito fragmentado, e que tem uma concentração também de região. Por exemplo, a Esquerda na Região Norte do país, com algumas nobres e raras exceções, é quase irrelevante politicamente – e no Centro-Oeste também, por uma série de questões.

Tem uma quarta frente de trabalho, que é uma frente de trabalho político-ideológica-cultural, em que também a gente está avançando muito. Acho que a gente está conseguindo fazer um trabalho de popularização e divulgação do Marxismo. É um campo de juventude que está surgindo, de novos comunicadores que vêm se formando, que é um negócio muito mais espontâneo de militantes organizados que pensado pelas direções centrais dos partidos – isso em todos, inclusive no meu também –, que está conseguindo dar muitos frutos positivos e que vem conseguindo coisas que, embora pequenas, são muito expressivas. Por exemplo, o podcast de que eu participo – o Revolushow – está na casa de três a quatro milhões de downloads por ano. Evidentemente uma mesma pessoa faz vários downloads de um episódio, mas se a gente fizer uma estimativa, a gente diria que anualmente no Brasil nós temos de 800 mil a um milhão de pessoas que escutam a gente. Um milhão de pessoas consumindo um conteúdo marxista regularmente é um número muito expressivo. Então a gente está conseguindo coisas importantes.

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Essa própria polêmica das últimas quatro semanas, que não para: há quanto tempo não se vê publicamente, com tanto peso, uma polêmica – embora tenha sido falseada e distorcida pela mídia com a questão do stalinismo – com a ideologia liberal nas cordas como se viu nessas últimas quatro semanas? Eles tendo que se justificar toda semana e desesperadamente mudar o assunto para Stálin e stalinismo pra não terem que responder a um debate que surgiu de se questionar essa imagem bonita, idílica, linda, bela, do liberalismo? Isso é muito significativo.

A gente está conseguindo ter uma penetração também no campo da cultura muito interessante: rappers, músicos, artistas que me acompanham, acompanham Sabrina, acompanham Humberto, acompanham a Rita von Hunty, a Laura Sabino, e estão conseguindo ter repercussões que há três ou quatro anos atrás a gente não tinha. Então nessa frente a gente está conseguindo avançar bastante. Eu diria que, junto com a frente de juventude, são as duas mais avançadas.

Tem uma quinta frente também, de um trabalho de massas frente a organizações estratégicas do próprio aparato do Estado burguês – como Forças Armadas e Polícia –, que a meu ver está quase que abaixo de zero. Num momento de defensiva da classe trabalhadora, em que a gente quer fortalecer as bases para uma ofensiva revolucionária, esse trabalho deveria ser central e prioritário mas não é, por uma série de motivos e questões que a meu ver estão relacionadas a esquerdismo. “As Forças Armadas são um braço repressivo do estado” – e são mesmo – “e por isso a gente não tem que fazer um trabalho político”.

OP: Nesse momento em que estamos, nesse interlúdio, o que você acha do papel de um partido revolucionário na campanha eleitoral? É uma questão de agitação e propaganda, de usar como um debate, de ter que ocupar o espaço – as justificativas tradicionais? Você vê ainda alguma atuação efetiva de um revolucionário ganhando um cargo, agindo dentro do Estado burguês? Você vê isso como algo importante, algo em que se deva investir?

JM: O Estado burguês no Brasil – dado o caráter de capitalismo dependente, o caráter aristocrático, a ausência de um movimento nacional popular de corte jacobino que mude a configuração de Estado e que dê a essa república burguesa um caráter mais democrático – faz com que a estrutura de dinheiro de um mandato parlamentar seja um negócio assustador. Objetivamente, o que um gabinete de deputado federal tem – você juntando salários, verbas de gabinete, verbas especiais e tal – é um negócio fora de série.

Inclusive o professor Lincoln Secco chama atenção para um dado em que eu nunca tinha pensado. Esse é o momento da Esquerda brasileira em que ela tem mais dinheiro na história. Se você junta o fundo eleitoral do PT, do PCdoB, do PSOL, a Esquerda brasileira nunca teve tanto dinheiro quanto tem agora. O PT recebe 100 milhões de fundo partidário. Pela lei eleitoral, teoricamente pelo TSE, a Fundação Perseu Abramo tem 20 milhões. Meu amigo, quando foi que um partido comunista teve 20 milhões supostamente só pra fazer agitação e propaganda? Nem na época em que a União Soviética dava uma forcinha, na época do “Ouro de Moscou”, acho que estavam tão bem financeiramente.

Um mandato parlamentar dá muita estrutura de dinheiro, e não só para deputado. Você ser vereador em São Paulo dá quase tanto dinheiro quanto para você ser deputado estadual e dá quase tanto dinheiro quanto um mandato de deputado federal. Então uma vereança em São Paulo dá uma estrutura fodida que, com preocupações revolucionárias, dá pra você criar uma gráfica partidária do caralho, dá pra você criar uma produtora de documentários que pode derrubar tranquilamente aquela Brasil Paralelo, dá pra você manter uma série de cursinhos populares, dá pra você profissionalizar militantes, fazer trabalho político sistemático. Então a eleição é importante, de uma perspectiva revolucionária, por causa disso.

Eu acho que meu partido tem que profissionalizar mais seu trabalho de disputa eleitoral, porque a gente precisa. Isso faria uma diferença muito grande. Eu, por exemplo, estou trabalhando com uns amigos num projeto. A gente quer criar uma produtora de mini-docs, curtas, documentários, pra gente derrubar a Brasil Paralelo. Só que é muita grana, o projeto inicial. É um negócio que a gente está orçando em 100 mil reais, na ideia mesmo de que ninguém recebe dinheiro, pelo amor à revolução brasileira. Então essa é a primeira coisa.

Pra mim, a atuação de um partido revolucionário na eleição é: disputar profissionalmente a perspectiva de ganhar, fazer a denúncia das mazelas capitalistas – dos interesses político-econômicos que dominam a política institucional –, tentar usar esse espaço para angariar mais bases, recrutar mais pessoas, penetrar em setores em que não se tem influência política, fazer um processo de politização e elevação da consciência e, quando eventualmente ganhar os mandatos, fazer o espaço de trincheira de resistência e dificultar a vida do Estado burguês.

A segunda coisa é que a eleição é um momento de politização, sim, de debates, quando se propõe a isso. Quando você não faz um discurso paternalista em que o vereador, o prefeito, o deputado, vai resolver todos os problemas do mundo. É um momento de denúncia, é um momento de debate, é um momento de politização, em que eu acho sim que os revolucionários têm que participar. O que eu não vejo muito sentido é um partido revolucionário, fora de uma situação de altíssima penetração de massas e competitividade, lançar candidatos e jogar peso em disputas de Executivo – prefeito e governador. Eu não vejo muito sentido. Pra mim, a atuação de um partido revolucionário na eleição é: disputar profissionalmente a perspectiva de ganhar, fazer a denúncia das mazelas capitalistas – dos interesses político-econômicos que dominam a política institucional –, tentar usar esse espaço para angariar mais bases, recrutar mais pessoas, penetrar em setores em que não se tem influência política, fazer um processo de politização e elevação da consciência e, quando eventualmente ganhar os mandatos, fazer o espaço de trincheira de resistência e dificultar a vida do Estado burguês.

Além de outras coisas. Por exemplo, um deputado, numa ocupação, tem mais possibilidade de negociar com a PM ou de retardar uma reintegração de posse sem levar uma bala na cabeça do que um trabalhador. Então joga um Suplicy lá, ele dialoga com uma polícia. Então tem também um elemento de proteção dos trabalhadores.

OP: Foi o caso do MST no Quilombo Campo Grande, não é? Barraram a coisa quando foi lá o Rogério Correia (PT/MG), por exemplo.

JM: Exatamente. Nesse caso do MST, um dos grandes problemas foi que a maioria dos deputados só foi depois que a reintegração de posse foi cumprida, para prestar solidariedade. Era pra ter ido antes, quando a reintegração de posse estava sendo cumprida, pra dizer: “ei, vai bater em mim? Eu sou parlamentar”. Então isso é muito importante.

Qual o “X” do problema? Primeiro, a Esquerda brasileira tem um “parlamentarcentrismo”. O parlamentar quando se elege, por exemplo, no PSOL ou no PT, faz o que quer. Ele vira uma espécie de mini-deus no panteão grego. Um caso bem característico foi, por exemplo, o gabinete do Jean Wyllys [PSOL/RJ], que resolveu criar um sionismo de Esquerda no Brasil, um negócio totalmente estranho à cultura política do PSOL. Ele fez e acabou, porque era parlamentar e ele mandava. O programa do PSOL falava de defesa do povo palestino e o cara está fazendo sionismo de Esquerda dentro do gabinete dele. E ninguém pode fazer nada. Ou então, o caso característico do PT, o Humberto Costa [PT/PE]. Ele é senador e joga de acordo com os interesses dele e ninguém pode fazer nada: ele manda e desmanda, ele faz e acontece e já é. Então esse é um problema, não existe uma cultura política de que ser parlamentar é uma tarefa como qualquer outra. É como ser dirigente sindical, é como ser dirigente estudantil, não tem isso de que você é um ser privilegiado. Você continua sendo um militante de base cumprindo uma função.

O segundo problema é que existe um vício maldito de deslocar todo tipo de militante que está fazendo um trabalho para a esfera parlamentar porque ganhou alguma influência pública, alguma audiência de alguma forma. O sujeito se destaca um pouquinho no sindicalismo e já querem tirar o cara do sindicato e colocar para a eleição; se destaca um pouquinho no movimento estudantil e já querem tirar para colocar na eleição. Eu mesmo, o que mais me perguntam é quando eu vou sair candidato. E aí eu sempre brinco: “Por que é que eu tenho que sair candidato? Por que, necessariamente, alguém que se destaca um pouquinho, que tem uma visibilidade pública, tem que sair candidato? O trabalho eleitoral é superior, no sentido tático e estratégico, ao trabalho de massas?”.

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OP: E tem o outro lado também, não é? Vemos bastante crítica a você que também não faz sentido algum: “ah, ele fica fazendo YouTube… ele devia estar fazendo trabalho de base”. O militante faz parte de uma organização, ele não precisa ser o super-homem: o cara que comunica aqui, que é eleito ali, que é o militante de base, que panfleta… Quer dizer: o cara tem que ser tudo? Ele não pode ser uma parte só? Está fazendo bem o YouTube, a comunicação, a propaganda… Não vamos mexer em time que está ganhando… Vai estragar isso…

JM: E tem outra coisa. No ano passado eu rodei o Brasil todinho fazendo debates, lançamento do livro, participando de sindicato, participando de terreiro, de escola de formação. Eu fui em todo canto que você possa imaginar. Eu não estou viajando este ano por causa da pandemia mas, por exemplo, do começo de março até agosto, eu tinha convite para ir a 80 cidades. Eu estou “parado na Internet” basicamente porque a pandemia não deixa.

Um terceiro elemento, uma concepção nociva e maldita de como a Esquerda disputa a eleição é a ideia de que, se você rebaixar o programa, ou não se mostrar radical, você vai ganhar a eleição mais fácil. Isso cada vez mais se mostra falso. Um exemplo significativo é o Guilherme Boulos [PSOL/SP]. Eu brinco com todo respeito aos meus companheiros do PSOL, ele adotou o “raio psolista” em 2018, tirou a imagem de radical, ficou aquela coisa bem “xóvem”, aquela coisa bem “engraçado”, “Cinquenta tons de Temer”, “Receita com Boulos”… Saiu daquela estética de movimento popular achando que isso iria facilitar a penetração eleitoral dele. Foi uma tragédia de votos. A partir de 2019, ele fez um caminho contrário. Voltou a assumir mais a estética de líder de movimento popular, parou de fugir da ideia de radicalidade, começou a usar tons e palavras mais duras para o governo Bolsonaro e para o bolsonarismo e isso se reflete numa maior competitividade eleitoral dele agora em São Paulo.

Um terceiro elemento, uma concepção nociva e maldita de como a Esquerda disputa a eleição é a ideia de que, se você rebaixar o programa, ou não se mostrar radical, você vai ganhar a eleição mais fácil.

Essa ideia de que domesticar o discurso é igual a ter competitividade eleitoral é uma falsidade. Pode dar certo em alguns momentos, mas não sempre. Ao mesmo tempo, você subordina a política ao eleitoral porque você desconsidera a questão da pedagogia política, da elevação da consciência de classes, do debate crítico, da formação de uma consciência crítica na massa que está ouvindo aquele discurso eleitoral.

A gente tem que fugir desses três problemas. Fugindo deles, nenhum revolucionário – fora de uma situação de dominação colonial em que não tem eleição, caso do Mao Zedong, do Ho Chi Minh e por aí vai – dispensou a participação eleitoral. Até o próprio Che Guevara – um cabra da luta armada e do foquismo –, num famoso ensaio dele, Crítica da via pacífica, fala claramente que descartar por princípio o uso da tática eleitoral, numa situação em que ela existe, é esquerdismo. Esse negócio de boicote às eleições, feito os maoistas brasileiros fazem, por princípio, é esquerdismo. Eu defendo claramente que a gente tem que atuar nas eleições dentro da tradição clássica da estratégia revolucionária, mas não só pra fazer denúncia: entrar pra ganhar mesmo.

A gente faz o Revolushow com pouco dinheiro, quando eu comecei com o canal eu pagava do meu bolso pra manter, antes de ele começar a se financiar. Meu amigo, se eu tivesse na minha mão um orçamento de 100 mil reais por mês, pode ter certeza que eu criava a maior produtora de esquerda de documentários do país.

OP: Se no campo eleitoral a luta mais importante é a do parlamento, estamos trabalhando mais com massas que com pessoas. Mas na atual situação que estamos vivendo no país, de baixa politização, as pessoas ainda catalisam forças políticas, setores inteiros. Você acha que hoje a gente pode falar que o Brasil está polarizado entre duas figuras, Bolsonaro e Lula, ou isso é uma falsa polarização?

JM: Acho que, do ponto de vista eleitoral, sim. Isso é inegável. A tentativa de negar a realidade não faz com que a realidade mude. Do ponto de vista eleitoral, Bolsonaro e Lula são as duas figuras com maior expressividade nacional. A prova disso é o nosso amigo Ciro Gomes, que vem tentando se colocar como terceira alternativa batendo em Lula e em Bolsonaro. As pesquisas até agora mostram Ciro Gomes empatado em intenção de voto com o [Flávio] Dino [PCdoB/MA]. O Flávio Dino é um cara que não se lançou candidato a presidente, é governador de um colégio eleitoral minúsculo, embora seja um governador muito bem avaliado lá no Maranhão. O cara aparecer empatado nas pesquisas com Ciro Gomes – que já foi candidato a presidente três vezes e que está na mídia de maneira seguida há quatro anos como presidenciável – mostra que a estratégia de Ciro não está dando certo, de ser a terceira via iluminada que vai estar equidistante dos dois polos batendo nos dois.

Do ponto de vista político, acho que não. Acho que as coisas são muito mais complexas que isso. Eu descobri isso com um processo de amadurecimento político. No movimento estudantil, eu era muito sectário, sectaríssimo. Eu vivia tretando com o pessoal do PT, da Consulta Popular, do PCdoB e por aí vai. Com o tempo eu vim descobrindo uma coisa interessante, que muita gente da base do PT, da base do próprio PDT, da base da Consulta Popular, até da base do PCdoB, que me acompanha, que gosta, vem sendo formada a partir do material que eu produzo, que eu divulgo, dos livros que eu indico. Mas, do ponto de vista eleitoral, estão votando nos candidatos de sempre. Então você tem uma dessincronia entre a circulação de ideias, a formação de consciências, e as opções eleitorais.

Eu venho pensando nos últimos tempos – eu não sei se estou pensando correto, estou até para conversar com uns camaradas mais velhos para ver o que eles pensam sobre isso. É que, de certa forma, em outro aspecto – no aspecto mais político –, isso também acontecia com o PCB. Como o PCB era o partido que, até 64, tinha uma espécie de monopólio da Esquerda brasileira, da Esquerda socialista, comunista, mesmo que a pessoa não simpatizasse muito com o PCB, se ela quisesse se organizar partidariamente, ela terminava parando no PCB porque era meio isso: ele dominava tudo. Acho que, do ponto de vista eleitoral, acontece um fenômeno parecido. Como você tem hoje o polo petista e o polo bolsonarista – e antes era o polo tucano e o polo petista –, do ponto de vista eleitoral as coisas confluem para lá. O que não significa que, do ponto de vista social e político, as coisas estejam assim, antes o contrário.

Imagem: Ricardo Stuckert

Inclusive eu acho que essa é uma das coisas que faltam para acelerar um processo de reorganização da Esquerda brasileira. Se a gente conseguisse criar uma alternativa eleitoral com algum peso para fazer com que setores, que vêm num processo tendencial de radicalização, expressem essa radicalização no voto e não fiquem sob as franjas, por exemplo, do lulismo. Acho que existe um potencial aí não explorado. Por exemplo, pra mim, um político que tem um perfil ideal – do ponto de vista de juventude, do ponto de vista de discurso político, do ponto vista de relação com o próprio campo democrático-popular – pra expressar isso seria o Glauber Braga [PSOL], o deputado do Rio de Janeiro. É um cara que tem um discurso mais radical, que tem um discurso anti-imperialista firme. Não coloca claramente uma perspectiva socialista, mas em que está colocada uma ideia de radicalismo popular. É um cara que é uma figura à esquerda do [campo] democrático-popular, mas não tem relação de hostilidade com o PT, com o PCdoB e tal. Um cara com o perfil do Glauber dentro de uma aliança, de um conjunto de forças, poderia ser o catalizador público nacional desse processo de reorganização a nível eleitoral do campo de forças, que já tem uma expressão a meu ver muito clara do ponto de vista social e político. Só que a gente não conseguiu isso ainda. Enquanto a gente não conseguir, isso fica muito complicado de se expressar.

Mas na própria eleição municipal isso vem se expressando. A candidatura do Boulos e da Erundina está à esquerda do Jilmar Tatto – o que não é também muito difícil: respirou, bebeu água, está à esquerda do Jilmar Tatto. Historicamente, o PSOL, no Rio, está à esquerda do PT, do PCdoB e do PDT. Houve uma reorganização de forças. O Marcelo Freixo, a meu ver, nos últimos dois anos, vem direitizando, vem dando um processo de virada à direita, mas está lá. Então, nas capitais, você já tem alguma expressão eleitoral, só que falta essa figura nacional. Enquanto isso, a gente vai ficar preso, sim, nessa polarização Lula-Bolsonaro.

Lula está tendo uma situação em que é quase que uma atipia histórica conseguir fazer. E ele vem fazendo isso muito bem. Lula vem desenhando a imagem dele para a história muito bem.

O Lula, eu brinco e chamo de “Maquiavel de Garanhuns” – foi um apelido carinhoso que eu dei pra ele. Lula eu vejo como um arquiteto da própria imagem histórica dele. Pra mim, Lula hoje está pensando na imagem com que ele vai ficar na história. Vargas desenhou a imagem dele na história com uma bala no peito e uma carta-testamento. Lula não vai se matar, então está desenhando em vida a imagem dele para a história, e ele tem um privilégio porque poucas pessoas, poucos estadistas, poucos líderes puderam fazer isso – Lula está tendo uma situação em que é quase que uma atipia histórica conseguir fazer. E ele vem fazendo isso muito bem. Lula vem desenhando a imagem dele para a história muito bem. A forma como Lula enfrentou a prisão, do ponto de vista do movimento de massas, foi uma tragédia. Do ponto de vista da biografia dele, Nossa Senhora. Em algum momento, com a mudança de ventos políticos no Brasil, todo aquele martírio do Lula – a forma como a galera foi escrota quando o irmão dele morreu, quando o netinho dele morreu – até eu que não gosto do Lula fiquei: “caralho…”. Então ele vem fazendo isso muito bem. O problema é a gente estar subordinado à construção biográfica do Lula. Essa é a questão, o problema.

Então eu não acho que o Lula vá ter um papel histórico no processo de reorganização da classe trabalhadora nem no processo de resistência a essa ofensiva. Eu acho que não. Eu acho que Lula é um dos dirigentes que não estão dispostos a mobilizar essa reserva de força social que está guardada, pra mim está muito claro. Mesmo quando Lula dá sinais de um discurso um pouco mais radical – por exemplo, Lula nos últimos tempos redescobriu o imperialismo –, ele faz isso sem nenhum chamado, sem nenhuma perspectiva de transplantar esse discurso para uma prática de rua, de política de rua.

Lula não opera nessa dimensão. Ele critica o imperialismo estadunidense, massa, só que isso não se reflete numa política partidária do PT para o enfrentamento dos monopólios, nem na difusão de uma cultura anti-imperialista nas bases petistas. Isso não acontece. Acho que Lula vai ser uma figura que vai permanecer, enquanto vivo, como elemento central na política institucional, mas que não vai ter papel significativo em nenhum processo de radicalização. E que só fica pra trás – enquanto figura política – ou quando morrer, ou quando a gente tiver uma grande ascensão de massas que passe por fora do PT. Enquanto isso ele vai ficar – eleitoralmente.

Eu venho pensando muito nisso: o quanto as massas populares da América Latina – talvez por causa da matriz católica da nossa cultura – são muito fiéis. O caso do Perón, o caso do Velasco Ibarra, o caso do Lula, o caso do Hugo Chávez. Não adianta o Jornal Nacional passar 300 horas falando mal de Lula, que Lula é ladrão, que Lula, Lula, Lula… Não adianta: a classe média até sai, a classe média se separa, um setor da classe trabalhadora até sai, mas tem um setor da classe trabalhadora que morre com o bicho. E que não adianta não, depois de tudo o que o cara apanhou, depois de ser preso, você faz uma pesquisa e o cara tem 27% de intenção de voto.

Na Zona da Mata, em Pernambuco, até hoje é muito comum você ir na casa do povo mais humilde e tem aquela foto de Jesus Cristo nórdico, albino, galego, e do lado tem a foto do Miguel Arraes. É o “Pai Arraia”, que eles chamam. Miguel Arraes morreu há sei lá quantos anos, deixou de ser governador há um tempo da desgraça, o segundo governo dele em Pernambuco foi ruim – porque o neoliberalismo, com o governo FHC e Marco Maciel, estava lá com o Governo Federal querendo sabotar o grupo Arraes aqui em Pernambuco e os repasses eram uma porcaria. Mesmo assim, por causa do governo do cara antes da ditadura Militar – que fez reforma agrária, que criou o Chapéu de Palha, que fez agricultura irrigada, que criou escola rural, que criou o primeiro posto de saúde que a galera viu na vida, e o avô sempre falava que só tem a terra porque Pai Arraia deu – numa porrada de casa até hoje tem a foto de Pai Arraia do lado de Jesus Cristo.

Eu acho que qualquer alternativa eleitoral à esquerda do PT tem sim que fazer a crítica do lulismo. Só que não dá pra fazer a crítica do lulismo querendo destruir o Lula, porque você não vai conquistar esses setores.

Então com o Lula tem um fenômeno parecido em dimensões nacionais, e não vai passar. É isso uma das coisas que o Ciro Gomes não entende – ou não quer entender. Eu acho que qualquer alternativa eleitoral à esquerda do PT tem sim que fazer a crítica do lulismo. Só que não dá pra fazer a crítica do lulismo querendo destruir o Lula, porque você não vai conquistar esses setores. O Boulos entendeu isso só que errou a mão. O Boulos pareceu um filhote do Lula. Aquela cena no debate de “boa noite presidente Lula”, aquilo foi ruim. O Boulos virou quase que um puxadinho do lulismo – e agora faz o caminho de volta. Já o Ciro Gomes faz o caminho contrário, que é tentar se colocar como anti-Lula e anti-Bolsonaro ao mesmo tempo achando que vai – e não vai.

O problema Lula inclusive é muito parecido com o problema que o Partido Comunista da Argentina teve com o Perón. O Partido Comunista da Argentina, nos anos 50, 60, 70, não conseguiu entender a força do peronismo na classe trabalhadora. Se colocou como um partido anti-Perón e foi um partido que ficou marginalizado concretamente da classe trabalhadora na Argentina. Mesmo no seu auge não era um partido que a gente poderia dizer: “nossa, que partidão de massas”, porque ele não conseguiu criar um discurso de oposição ao mesmo tempo em que dialogasse com um sentimento peronista. Ele se colocou como anti-Perón – ao ponto de, em alguns momentos, fazer alianças com a oligarquia e com o imperialismo contra o peronismo, um negócio meio estranho – e foi marginalizado da vida política. O peronismo é um fenômeno bem diferente do lulismo, mas a gente enfrenta um desafio parecido: como, sim, fazer a crítica do lulismo – porque essa crítica não pode deixar de ser feita –, como superar o lulismo mas, ao mesmo tempo – do ponto de vista especialmente afetivo e simbólico –, como não se alienar dessas massas que têm na suas casas a foto de Jesus Cristo galego e de Lula do outro lado?

OP: Os Estados Unidos estão num ano de eleição e o povo saiu às ruas desde maio – os negros, os movimentos populares. Por outro lado, temos o Trump afirmando que pode não reconhecer um resultado desfavorável a ele na eleição. O Trump perdendo a eleição, você acha que eles podem se encaminhar para um golpe? Ou para alguma situação com características revolucionárias?

JM: A Esquerda brasileira critica tanto o stalinismo mas pratica um stalinismo analítico de culto à personalidade. Quando se fala de reorganização da Esquerda estadunidense, todo o mundo fala de Bernie Sanders. Ninguém para para analisar, por exemplo, a reorganização do movimento sindical nos Estados Unidos, que é um fenômeno que vem crescendo nos últimos 15 anos. Um fenômeno muito impressionante – especialmente considerando a fraca tradição sindical dos Estados Unidos, especificamente o sindicalismo combativo. Você tem, por exemplo, nos setores de comércio e serviços, um processo crescente de organização sindical; um aumento do número de paralisações e de greves; um crescimento das tentativas de montar sindicatos onde não existe; o surgimento de várias práticas criativas para tentar furar as políticas anti-sindicais dos grandes grupos como Walmart. Há todo um processo de efervescência, de ebulição da luta de classes, que também passa pela juventude, movimento negro, movimento de mulheres, movimento ecologista.

Dá para traçar uma linha de continuidade histórica desde os protestos de massa contra a Guerra do Iraque – que envolveram milhões de pessoas, e ali vai se formando toda uma nova geração de militantes – que vem num processo crescente. Você tem nos Estados Unidos uma elevação, ainda que lenta, de um processo de reorganização significativa de vários setores da classe trabalhadora e da juventude – esse é o primeiro ponto. O Bernie Sanders é muito mais produto desse processo que produtor. Antes de o Bernie Sanders aparecer na eleição de 2016, as pesquisas de opinião já mostravam que a palavra “socialismo” era vista de maneira cada vez mais positiva no seio da juventude – antes do Bernie. É claro, uma noção de socialismo meio difusa: socialismo é saúde pública, é não pagar ensino superior, é um transporte mais barato, é casa mais fácil – uma visão muito mais de welfare state que de socialismo, mas tudo bem: é positivo, considerando que é dos Estados Unidos que a gente está falando. Há um processo de radicalização de baixo.

Houve uma tentativa de capturar esse processo de radicalização com o governo Obama. O governo Obama pra mim foi fundamentalmente isso, uma tentativa de capturar pra dentro do sistema esse processo de insatisfação, esse crescimento da organização de baixo, essa demanda por emprego e serviços públicos, por melhores salários, por melhores condições de vida. Um exemplo disso é que a reforma da saúde do governo Obama, que era muito tímida, não foi pra frente. A partir do momento em que não deu certo, o sistema político dos Estados Unidos entra numa crise de legitimidade muito grande. Você tem uma população cada vez mais empobrecida – o salário de várias categorias está congelado há 30 anos –; uma juventude cada vez mais endividada e sem perspectiva de futuro; um aumento das tensões raciais; um aumento da precariedade; uma redução da eficácia do mito ideológico, em que na América “todo o mundo consegue vencer com o trabalho – o American dream –, cada vez menos pessoas acreditam nisso.

O governo Obama pra mim foi fundamentalmente isso, uma tentativa de capturar pra dentro do sistema esse processo de insatisfação, esse crescimento da organização de baixo, essa demanda por emprego e serviços públicos, por melhores salários, por melhores condições de vida. Um exemplo disso é que a reforma da saúde do governo Obama, que era muito tímida, não foi pra frente. A partir do momento em que não deu certo, o sistema político dos Estados Unidos entra numa crise de legitimidade muito grande.

O Trump é uma solução de direita para tentar recuperar a legitimidade do sistema, e também não vem dando muito certo. A despeito dos níveis de emprego estarem altos antes da pandemia, o número de protestos, de conflitos, de mobilizações, nunca parou de crescer. A meu ver, falar de golpe talvez seja algo muito prematuro, mas para mim claramente o sistema de dominação burguesa nos Estados Unidos entrou numa armadilha de legitimidade. Ele não consegue mais se sustentar com a legitimidade que tinha em outras épocas, não consegue conter mais dentro de si as insatisfações e tensões sociais, não consegue mais criar aquele sentimento fundamental da hegemonia que é a certeza que o trabalhador e a trabalhadora têm de que a vida de seus filhos vai ser melhor que a deles. Isso é um elemento muito potente e poderoso para a reprodução de um sistema.

O que vai sair daí é muito difícil de prever. Os Estados Unidos têm coisas muito particulares. Armas para todo lado é uma delas, uma forte tradição de organizações de extrema direita armada. Tem um historiador que fala que, se não fosse a hiperinflação e toda a crise na Alemanha, as SS nazistas poderiam ser lembradas como a Ku Klux Klan. Ou seja: o que virou política de Estado, nos Estados Unidos existe há décadas e décadas – essas milícias brancas armadas até o talo. Aquilo é um caldeirão de tantas dimensões, mas ao mesmo tempo a gente nunca pode desconsiderar a força do aparato repressivo dos Estados Unidos, que é o mais eficiente do mundo. O que eles fizeram com os Panteras Negras é um negócio que daria inveja a qualquer outro regime repressivo. A galera fala muito da Stasi da Alemanha Oriental, mas o que o FBI e a CIA conseguiram fazer quando do extermínio das lideranças radicais do movimento negro revolucionário dos anos 60 e 70 é um negócio assustador. Prenderam sem julgamento e foda-se – jogaram lá para passarem 40-50 anos presos –, mataram a rodo, “suicidaram” um bocado de gente, expulsaram do país, explodiram sedes e gráficas de jornal. Criaram um um cenário de terror, efetivamente, e desarticularam aquele movimento de massas que tinha um potencial revolucionário gigantesco.

Eu sou muito cético quanto ao discurso de “não aceitar o resultado das eleições”. Acho que isso é muito mais um discurso de mobilização de bases. Agora, está muito claro que nos próximos meses, nos Estados Unidos, podemos esperar de tudo, porque estamos numa situação de crise da hegemonia naquele país e acirramento da luta de classes. Tem um dado que passou despercebido da Esquerda brasileira – porque ela só gosta de coisa fofa, um Syriza [Grécia], um Podemos [Espanha]. O PSL [Party for Socialism and Liberation] dos Estados Unidos, que é um partido de orientação marxista-leninista, faz uma leitura do marxismo muito interessante, incorporando várias coisas da América Latina, de terceiro-mundismo. É uma galera que faz formação com seus estudantes estudando Mariátegui, Fanon, Mao Zedong. Uma galera muito boa.

Eles fizeram um comício contra o racismo que reuniu quase 20 mil pessoas. Um discurso do caralho, revolucionário, falando contra o racismo liberal, empresarial. Falando de tomada do poder, que na revolução haitiana mataram os senhores de escravos e os escravos tomaram o poder. Hoje, no Brasil, a gente não consegue reunir 20 mil pessoas para um ato abertamente revolucionário. Nos Estados Unidos eles conseguem já! O PSL é um partido que surgiu no bojo das mobilizações contra a guerra do Iraque, então é um partido jovem – tem quase o mesmo tempo de vida do PSOL. Os caras conseguem reunir 20 mil pessoas para falar de revolução, de antirracismo revolucionário. Isso mostra como as coisas estão se acirrando e se acelerando lá. Então, a meu ver, o que a gente pode esperar dos Estados Unidos é muita coisa que a gente não esperaria ver.

OP: Falando em crise de hegemonia, qual o papel da China, cada vez mais protagonista?

JM: Um fenômeno tem o seu significado em si, mas a apropriação que as pessoas fazem dele não diz respeito necessariamente ao fenômeno. Milhões de trabalhadores mundo afora viam a União Soviética dos anos 30 como um potencial de despertar revolucionário, a despeito do juízo que eu ou você façamos do que acontecia no auge do stalinismo. A percepção das massas não está necessariamente ligada à objetividade do fenômeno, existe uma dissociação entre o que acontece e como o negócio corre. Eu tenho uma forte impressão de que há uma tendência em largos setores – essa tendência ainda é confusa e difusa – de ver o protagonismo da China atual como um despertar de uma imaginação anticapitalista, ainda que isso não esteja claro no discurso e na prática política do Partido Comunista Chinês.

O fato de você ter um Partido Comunista que defende abertamente o marxismo-leninismo; que ainda usa uma simbologia revolucionária; que faz anime, filme, documentário no aniversário de 200 anos de Marx; que usa como princípio de legitimidade cada vez mais um discurso social – tiramos 800 milhões da miséria, fizemos não-sei-quantos hospitais etc.; isso vem provocando um efeito muito interessante em vastos setores mundo afora.

Ao mesmo tempo a China cumpre um papel muito importante porque reduz a força do imperialismo estadunidense de esmagar projetos alternativos, pelo simples fato de ela existir. Ainda que ela não dê apoio revolucionário nenhum – não existe uma diplomacia revolucionária chinesa, tal como a soviética ou a cubana –, só o fato de a China existir e garantir crédito, apoio comercial, algum apoio diplomático, faz com que se crie uma situação geopolítica melhor para projetos revolucionários de mundo do que existia nos anos 90 com o fim da União Soviética. Não dá pra falar da sobrevivência de Cuba hoje sem a importância da parceria com a China. E não só projetos revolucionários. O próprio governo do Alberto Fernández na Argentina está se agarrando na China enquanto parceiro comercial para tentar sobreviver. Até projetos eleitorais um pouquinho de esquerda veem a China como o parceiro comercial para garantir crédito, tecnologia, investimentos, e por aí vai. A China cumpre um papel objetivo de contrapor.

Ao mesmo tempo a China cumpre um papel muito importante porque reduz a força do imperialismo estadunidense de esmagar projetos alternativos, pelo simples fato de ela existir.

Eu não gosto de comparações, mas o papel da China lembra muito o da União Soviética na era Brejnev, que perdeu qualquer encanto revolucionário – ninguém olhava mais para a União Soviética brejnevista como um exemplo de sociedade revolucionária, só os comunistas históricos defendiam aquilo ali com ardor ainda. Mas mesmo ela sendo tudo que era – com um esvaziamento da vitalidade, de um elã emancipatório da União Soviética – cumpriu um papel muito importante no mundo. Com todos os seus problemas também. A União Soviética sempre teve uma política de grande potência frente aos partidos comunistas, de controlar via Rússia os partidos, depois no campo socialista. Mas ela cumpriu um papel fundamental: no campo diplomático, de votação no Conselho de Segurança da ONU, de financiamento, de parcerias comerciais, de crédito.

De maneira diferente, a China tem uma coisa meio “Era Brejnev”, que não é uma potência revolucionária, o cavalo de batalha que vai propagar o socialismo pelo mundo, mas cumpre um papel de apoio a muitos movimentos mundo afora muito importantes. Prova disso é o papel da China durante a pandemia, que goste-se ou não da China foi exemplar. Imagina o vírus surgindo na China se ela tivesse passado pelo desmonte por que passou a União Soviética. Quantos milhões de mortos a gente não teria a mais? Não só pelo controle interno do vírus que a China conseguiu operar, mas pela política de solidariedade – luvas, equipamentos, respiradores. A China encampou um movimento de perdão das dívidas dos países do Terceiro Mundo – de paralisar o pagamento das dívidas públicas –, fez uma parceria com o Continente Africano para construir uma porrada de hospitais, centros médicos etc.. Objetivamente, a China teve um papel civilizatório e salvou milhões de vidas nessa pandemia. Os Estados Unidos, enquanto isso, estavam roubando equipamentos do resto do mundo.

Eu não veria a China como um país que, nesse momento, está cumprindo uma perspectiva revolucionária – muito pelo contrário. Eu a veria como um ponto de apoio importante para quem tem projetos revolucionários. O economista argentino Claudio Katz, autor de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo [Expressão Pupular, 2016], diz que a gente não deve seguir o caminho da China, porque aquilo não é um caminho propriamente socialista, mas China é um parceiro fundamental de projetos socialistas.

OP: Vamos falar um pouco de formação. Como tem sido sua formação política? A gente sabe que há um lado de estudar sozinho, evidentemente, mas ao entrar no Partido houve cursos mais sistemáticos? Como você descreveria essa trajetória de estudo e de formação?

JM: Eu tive uma educação formal no Ensino Superior e no Mestrado que fundamentalmente fez com que eu conheça quem eu devo ler. Fazer saber quem eram Perry Anderson, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, [Eric] Hobsbawn, Giovanni Arrighi etc.. Meu processo de formação mesmo, para pensar na política foi muito pela UJC: eu consegui instrumentalizar a teoria para pensar a política dentro da UJC objetivamente. Quando eu saí da Juventude, eu passei a ter muito mais um papel de formador que de participar de formações – embora eu ainda participe. Hoje meu processo de formação política se dá em quatro esferas.

O estudo individual. Eu tento estudar com disciplina e regularidade todos os dias e me dedico bastante.

Um processo de troca de experiências e de conhecimentos. Eu gosto muito de conversar com os camaradas mais velhos. Sempre nos encontros nos espaços do Partido, quando tem um camarada com mais tempo de experiência, eu começo a perguntar. Eu gosto de absorver a experiência das pessoas, de conversar com elas, de saber como está a militância nas suas áreas. Eu sou um ouvinte muito bom, então eu troco muita experiência com os camaradas. Por exemplo, outro dia desses eu estava conversando com o Ivan Pinheiro – bancário, dirigente histórico do PCB –, e ele falou do MR-8 [Movimento Revolucionário 8 de Outubro]. Eu pensei: “MR-8… Já li alguma coisa aqui, outra coisa ali”… Aí lembrei que tenho uma amiga que foi do MR-8. Fui puxar assunto, a gente passou horas conversando, ela me contou a história do MR-8, de como era, de como foi a militância etc. Eu gosto muito também de ouvir entrevistas, de pessoas inclusive de outro campo. O José Dirceu deu uma entrevista para a Jacobin Brasil. Eu assisti cinco vezes, tomei notas de coisas que preciso conferir e entender mais. Eu faço muito um trabalho de ouvir com muita atenção as pessoas mais velhas, as que têm mais tempo de estrada, as que têm papel de liderança em vários campos da Esquerda.

Eu tenho procurado também fazer formações que estão disponíveis na internet. O Rondó da Liberdade fez um curso sobre marxismo-leninismo e eu assisti inteiro, todos os vídeos – muito bons inclusive. Estou para fazer um curso agora do Classe Esquerda, do Humberto de Matos sobre Teoria Monetária; estou para fazer um curso do Heribaldo [Maia] sobre Hegel… Eu venho tentando fazer há muito tempo o curso do 13 de Maio [Núcleo de Educação Popular do PCB] – ia fazer esse ano só que veio a pandemia e foi cancelado, mas assim que der eu pretendo fazer – com o Mauro Iasi, o [Luís Carlos] Scapi etc..

E também tentando manter a prática política e refletir a teoria a partir da prática. É um elemento de formação muito importante. Infelizmente, durante a pandemia, a prática política vem sendo restrita mais ao trabalho de agitação e propaganda, mas eu sou orgânico ao PCB – participo de núcleos, debates, estou construindo as bases de meu partido. Eu considero esses espaços como espaços também de formação política. A experiência de, no ano passado, ir a 30 cidades de quase todas as regiões todo o Brasil – com exceção do Centro-Oeste – foi muito positiva para mim, para pensar o Brasil enquanto problema teórico. Foi uma experiência de formação política muito boa.

Imagem: Facebook

OP: É comum que os comunicadores do PCB sejam do Serviço Social e se apresentarem como educadores populares – e o apresentam também como educador popular. Como você trabalha como educador popular?

JM: Eu trabalho, na perspectiva de Educação Popular, com um processo de formação em sindicatos e movimentos populares. É uma das principais tarefas que eu cumpro no Partido, para além do trabalho de agitação e propaganda nas redes. Eu tenho uma função de formação política, de preparar cursos, de trabalhar a formação política dos sindicatos, e também na produção de material didático-pedagógico para processos de formação política. Estou envolvido em várias iniciativas do Partido, na produção de manuais de formação política, cartilhas, de meios de facilitar a formação política. Há meios de pensar um processo de educação popular no seio dos movimentos populares e um processo de produção de material didático-pedagógico. Já dei muito – em sindicatos e ocupações – um curso de introdução ao pensamento de Marx e Engels, que estou agora transformando num curso online, que pretendo lançar no final de novembro, começo de dezembro. É um curso que preparei visando um diálogo direto com a classe trabalhadora, que não tem tanta prática de leitura nem tanto tempo, e quer começar a conhecer os aspectos fundamentais da teoria de Marx e Engels. É nesse sentido de produção e de trabalho direto com as bases voltado a facilitar a socialização do marxismo.

OP: Recentemente, com o Gabriel Landi, você lançou o livro Revolução africana [Quebrando correntes, 2019]. Agora foi incluído no Ensino Médio o tema de história africana – e demorou muito para isso acontecer. Você tem acompanhado esse processo? Como o avalia?

JM: Eu acabei me desligando um pouco dos debates do ensino de História no ensino de base por outras demandas, muitas frentes de debates diferentes. O que posso dizer é que existe uma concepção que me incomoda muito: uma visão salvacionista da escola. Achar, por exemplo, que a escola vai resolver o problema da marginalização da cultura afrodescendente sem precisar tocar na comunicação, na indústria fonográfica, na criação de aparelhos culturais de socialização como teatros ou museus, na própria condição da população brasileira de maneira geral de consumir cultura de maneira mais regular. Eu lembro que, no ano passado, o senador Romário [Podemos/RJ] queria colocar o ensino de Ciência Política nas escolas básicas porque ele achava que assim ele ia politizar o povo e fortalecer a cidadania – então é “tudo a escola resolve”, uma visão meio salvacionista da escola. O impacto de uma medida como essa, embora positiva, é baixíssimo a nível de produção da cultura nacional. A escola não vai fazer milagres. A escola é, em muitos aspectos, muito mais uma caixa de ressonância da produção cultural da sociedade que um espaço produtor de cultura. Por exemplo, o que a gente ensina na escola sobre escravidão é muito mais produto do que circula na indústria cultural e do que é produzido na universidade do que alguma coisa pensada e produzida na escola. Então eu sou muito cético quanto a esse papel salvacionista da escola.

A escola não vai fazer milagres. A escola é, em muitos aspectos, muito mais uma caixa de ressonância da produção cultural da sociedade que um espaço produtor de cultura.

Um segundo aspecto é que o mercado editorial brasileiro, e a própria universidade, não incorporou como deveria a preocupação. Eu tive aula de História da África como [matéria] eletiva – uma cadeira que eu escolhi fazer. Hoje em dia ela é obrigatória, mas mesmo assim é uma cadeira. É uma concepção de currículo completamente eurocêntrico, em que em uma disciplina ou duas você tem história da África, e aí morreu. Concretamente, a formação do sujeito é muito pouca, embora os NEABs [Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros] venham fazendo um papel muito importante nas universidades – muito limitado ainda, com baixo orçamento etc.. O mercado editorial brasileiro não vem publicando com regularidade estudos de autores e autoras africanos como deveria – muito pelo contrário. Um dia desses, eu fui comprar o livro África negra [Edufba, 2009], do Elikia M’Bokolo, que é um clássico da historiografia africana, e ele está esgotado. Os textos do Thomas Sankara vieram agora para o português porque a gente traduziu e lançou no Revolução africana. As obras escolhidas do Amílcar Cabral estão em português “lusófono”, de origem portuguesa. Há uma série de autores muito qualificados que não chegam para a gente. Quando muito chega um Achille Mbembe, que fez muito sucesso e chegou no Brasil.

O mercado editorial não acompanha, a universidade não acompanha, os espaços de produção cultural em geral não acompanham. Então os professores vão tentar tirar leite de pedra e não vai dar muito certo, porque é um esforço isolado. O Mariátegui, nos Sete ensaios de interpretação da realidade peruana [última ed.: Expressão Popular, 2010], debate como no processo de libertação do Peru tinha uma ideia de fazer uma escola e uma universidade que incorporassem o espírito da técnica moderna, que preparasse para o sistema de produção capitalista moderno. E o Mariátegui fala que a escola não vai conseguir cumprir essa função porque, sem um conjunto de transformações políticas e econômicas, ela não vai nadar contra a corrente das estruturas sociais postas. A escola, e Louis Althusser estava certo, é muito mais um aparelho de reprodução das relações sociais postas que qualquer outra coisa.

OP: Recentemente, antes da polêmica recente, você divulgou que estaria de férias. Com todas as tarefas que você descreveu, afinal, o militante tira férias?

JM: No mês que vem, eu vou tentar de novo tirar férias [risos]. Espero que nem o Caetano nem outra celebridade resolva citar meu nome. Minha voz está até rouca de tanto que estou falando. Desde que o Caetano me citou no Bial que é um negócio incrível. Agora que começou a diminuir. Mas eu pretendo, no mês que vem, tirar uns dias de férias, me esconder no mato. E estou pensando em ir para um lugar em que não pegue internet porque, mesmo se acontecer, eu não vou ver mesmo… Não aguento mais falar do Stálin. Estou tendo até pesadelo com ele.

Pinga fogo

OP: Responda com uma palavra ou uma frase:

Jair Bolsonaro
-Fascista

Fernando Haddad
-Liberal

Guilherme Boulos
-Promissor

Velozes e furiosos
-É ruim, mas é bom

Xi Jinping
-O maior estadista vivo

Lula
-Uma figura histórica, mas não entregou o que poderia ter entregue

Putin
-Não é significativo, pra mim

Abre um parêntese aqui: isso é muito engraçado porque, quando começou esse negócio de Caetano, eu vi um professor famoso da UnB, uma alma sebosa acadêmica, falando que eu sou defensor do governo Putin. Eu nunca falei nada da Rússia atual pelo motivo simples de que eu não a estudo. Tenho muita coisa pra estudar, minhas prioridades, não vou perder tempo estudando a Rússia atual do Putin. O máximo que eu estudo é a política externa da Rússia, porque a gente tem que conhecer a própria influência que ela tem na Síria, na Venezuela, em Cuba etc.. Eu fiquei meio chocado, até falei numa entrevista com o Leandro Fortes. A galera mente muito, falando que eu defendo o governo Putin. Eu nunca falei do governo Putin publicamente. Tem um estereótipo do “stalinista” e “stalinista-Putin”: joga no mesmo bolo e já era. Eu fiquei muito puto com isso.

Imagem: Facebook

3 comentários

  1. Agora eu entendo porque ele faz tanto sucesso como Youtuber. É de uma análise superficial e cheia de fraseologia, própria desses tempos pós moderno.
    Um cara que diz que o PSTU virou nada e não para de citar o PSTU, é porque se sente incomodado.
    Eu diria, quem virou nada foi o PCB. Esse sim, nunca teve projeto próprio; viveu alimentando pelas ideias cepalinas e isebianas; permaneceu ligado a URSS até o final dos anos 80; perdeu toda a aura que ainda possuía; se dividiu em 2, sendo uma ala (PPS) satélite do PSDB, e a outra stalinista disfarçada.
    Um partido, que vive igual charuto na boca de bêbado, ou seja, sendo jogado as vezes para o lado do PT e outras, para o PSOL.
    E de quebra, ainda tem um Youtuber desse quilate. Só mesmo em uma sociedade de baixo nível político, para um cara desse fazer sucesso.

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    • Faltou só uma coisa: você dizer em qual aspecto a análise dele é superficial.

      Mas bons mesmos são vocês do PSTU, os “cavaleiros puritanos“ do marxismo, os únicos a não serem corrompidos, porque não colocam nem um dedo na realidade.

      Ficam encastelados no edifício teórico que criaram para si. Julgando os erros dos outros a partir de um plano superior que só vocês acessam, mas não fazem o menor esforço de compreender e se comprometer com o movimento do real.

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  2. Excelente entrevista, principalmente quando fala do PCB. Sim PCB deixou de inserir nas lutas sociais do Brasil na década achando que ia no final no colo deles, infelizmente isso era uma compreensão idealista da realidade brasileira da época. Gosto muito do PCB mas precisa sair dos ambientes acadêmicos e sujar os pés de barro. O Jones Manoel fala um pouco disso. Mas sobretudo toda esquerda brasileira precisa o grande enclat , encontro nacional da classe trabalhadora formando uma unidade de movimento sindical e popular, com humildade reconhecendo todos os erros cometidos nós últimos 20 anos e a enorme e profunda e perda de direitos dos trabalhadores a partir de 2016.

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