Além das questões “pega-comunista”, algumas contavam com opções de resposta que, num contexto geral, estariam claramente erradas

por Luca Uras
Quem fez o Enem no último domingo, dia 21, percebeu algo curioso na prova: ou Bolsonaro deu uma repentina guinada à esquerda, ou não passava de um teste para identificar os comunistas entre a população de estudantes brasileiros. Perguntas com textos de Giles Deleuze, Friedrich Engels e Thomas Piketty, além de uma certa orientação social na escolha das questões que caracterizaram a tal “cara do governo”.
Vale lembrar, no entanto, que não faltaram polêmicas precedendo a aplicação da prova. Debandada de servidores do Inep, tentativa, por parte de Bolsonaro, de infiltrar uma professora criacionista no grupo que selecionaria as questões desse ano, denúncia de censura de questão sobre desmatamento na edição de 2020 e por último, mas não menos importante, a denúncia de uma diretora de escola estadual, Hélida Lança, de que dois dos professores que aplicariam a prova teriam sido substituídos por dois policiais federais, e que agora a PF avaliaria a ficha dos aplicadores antes de aprova-los para dar a prova.

O clima de incerteza causou medo por parte dos participantes na hora de realizar a prova. Já havia sido relatado certo receio em expor opiniões que confrontassem diretamente o governo. A redação, por exemplo, tratava de um tema delicado nesse quesito. A pandemia agravou a situação de quem não possuía documentação e muitos não receberam auxílio emergencial ou mesmo a vacina contra a Covid-19 por conta disso. Seria uma boa estratégia criticar a inação do Estado, ou seria melhor se retrair e fazer constatações menos “polêmicas” sobre o tema?
Além das questões “pega-comunista”, algumas contavam com opções de resposta que, num contexto geral, estariam claramente erradas, mas, no Brasil de Bolsonaro, nunca se sabe. Em uma questão, sobre o aumento da população encarcerada, assume-se que a resposta certa é a promoção da inclusão social, mas não assustaria ninguém se, no gabarito do governo, a solução fosse a redução da maioridade penal, a panaceia dos conservadores para qualquer problema ligado à criminalidade. Outra questão, essa sobre a participação social no planejamento da cidade, tem tudo que a direita gosta: redução de imposto, valorização dos condomínios fechados e privatização do bem público.
Não se sabe até que ponto o governo interferiu no Enem. Aparentemente, graças ao esforço dos servidores do Inep, não foi tão significativa quanto se temia, porém só o gabarito oficial poderá responder com certeza essa pergunta. Além disso, nota-se outra característica estranha da prova: não houve, dentre as 45 questões de “ciências humanas e suas tecnologias” uma sobre a ditadura militar ou sobre o golpe de 1964. Saudosista do regime militar, Bolsonaro pediu que o golpe dado pelos militares fosse chamado “revolução” e, posteriormente à aplicação do exame, admitiu que gostaria de ter interferido na elaboração da prova para tirar questões que julga “ideológicas”.
O governo, ao que parece, falhou em interferir de forma significativa no conteúdo da prova, seja na de ciências humanas, seja na de ciências da natureza, afinal, o presidente também é inimigo da ciência. No entanto, uma coisa fica cada vez mais clara: o estrago feito na educação levará um longo tempo para ser consertado. O Enem 2021 teve o menor número de candidatos inscritos desde 2005 e, ainda por cima, contou com 26% de abstenção no primeiro dia de prova. Os efeitos da política segregacionista de Bolsonaro no campo da educação serão sentidos ainda muito tempo depois de sua saída da cadeira presidencial.