Com o boicote ao gás russo, a inflação atinge a Europa. A população de baixa renda é a mais atingida enquanto a imprensa, como no Brasil, já começa a gourmetizar a fome

por Danilo Matoso
Um espectro ronda a Europa. O espectro da carestia. Não que as coisas por lá andassem boas. Na verdade, se cada problema fosse um fantasma, o continente seria um castelo mal-assombrado. Como todos os países Ocidentais — alguns mais que outros, é verdade —, eles emergem da pandemia em frangalhos; a esquerda anda esfarelada, encharcada de liberalismo; os partidos comunistas — salvo o grego e talvez o português, que não andam lá muito fortes; a social-democracia não ganha mais eleições; a extrema-direita ocupa cada vez mais território político; o neonazismo ucraniano, louvado pela imprensa corporativa como “resistência” em “defesa da liberdade” promete se espalhar pelo continente… E, bem, agora com a guerra resolveram cortar o fornecimento de gás para sancionar a Rússia, além de outros produtos importados do gigante eurasiano. Os resultados são a crise energética, a inflação, o racionamento, a fome.
No Reino Unido, pessoas com menos recursos têm levado seus filhos a lanchonetes de fast food McDonald’s para passar o dia em ambientes com calefação, wi-fi, televisão — ao custo de umas poucas libras pela refeição do dia. Elas o fazem porque não têm dinheiro para pagar o aquecimento ou a eletricidade de suas próprias casas. Segundo matéria da RT, a inflação atual no país é a maior em quarenta anos e foi impulsionada pelo custo da energia elétrica, que teve alta de 54% somente em abril. Com isso, segundo pesquisa da Ipsos UK, 65% da população deixou de ligar a calefação no frio, e 25% chegou a pular pelo menos uma refeição ao dia.
A Europa Continental, mais dependente do gás russo, já saíra na frente em abril, quando chefe da Agência Federal da Alemanha para Energia, Gás e Telecomunicações desafiou a população: “Vocês terão de se perguntar se realmente precisam tomar banho sete dias por semana — com aquecimento a gás”. Imagina-se que a dúvida se torna cada vez mais candente à medida que nos aproximamos do verão europeu. Comissária europeia para Competição, a dinamarquesa Margarethe Vestager teria também aconselhado o povo: “controlem seus próprios banhos e de seus filhos adolescentes, e quando desligarem aquela água, digam ‘tome essa, Putin'”. Fontes do Kremlin afirmam que o líder russo tem a consciência limpa, lavada e enxaguada, já que a iniciativa do boicote foi dos próprios europeus.
Espera-se, evidentemente, algum tipo de auxílio estatal para as camadas mais carentes da população do continente. Além disso, na Europa que se arroga “verde” em sua política, seria conveniente aproveitar a crise para mudar a matriz energética. E, de fato, a Comissão Europeia anunciou há uma semana o investimento de mais de 300 bilhões de euros em energia limpa, que os torne independentes do gás russo. O problema é que, mais uma vez, não é a burguesia que vai pagar a conta. Se em qualquer parte do mundo são indústrias e agricultura as maiores consumidoras de energia, água e combustível, o ônus do racionamento sempre recai numa cretina responsabilização dos indivíduos. São eles que deverão fazer “mudanças comportamentais”, vivendo uma vida de privações e menor poder aquisitivo, ao mesmo tempo em que serão obrigados a arcar com a instalação de painéis coletores de energia solar em suas residências.
No Brasil, nós não precisamos de guerra ou boicote internacional algum para chegar a esse cenário. Bastaram-nos a burrice, a insaciabilidade e o capachismo de nossa classe dirigente. Primeiro, o presidente da Petrobras de Temer, Pedro Parente, implementou uma política de preços na estatal altamente inflacionária – em suposta paridade com os preços internacionais, uma “paridade” que nunca cai. Depois veio a política cambial de Paulo Guedes, desvalorizando o Real, aumentando as exportações e fazendo faltar alimento na nossa própria mesa enquanto o agronegócio aufere recordes de lucros. Como estamos na vanguarda, foi a nossa vez de exportar para a imprensa d’além-mar uma habilidade especial desenvolvida na década de 90 e retomada recentemente: a romantização da pobreza e a gourmetização da fome.
Nos últimos anos os editores de nossos meios de comunicação indicaram arroz com caruncho, pão mofado com “fungos do bem” e a volta do fogão a lenha (“xodó nas casas” e “comida mais saborosa”), churrasco com carne de segunda, refeição com ovo e sem carne, colar os beiços com colágeno de ensopado de pé de galinha e outras guloseimas faisandées dessa turma de consciência social putréfié. Enquanto isso, tem gente brigando para conseguir comprar osso no açougue — e não é porque curtem um ossobuco, é porque é a única proteína a que conseguem ter acesso.
Em breve, parece que os europeus também terão a oportunidade de embarcar nessa nouvelle vague da gourmandise neoliberal. Na semana passada, o jornal inglês Metro publicou uma matéria ensinando táticas para cortar o custo da comida nas compras e na mesa. É evidente que recomendam evitar desperdícios, planejar, comprar em promoções e armazenar. Não faltou aquela dica de plantar legumes, ervas e frutas enquanto é primavera. E, evidentemente, mudar os hábitos alimentares: cortar na carne — do prato, não na própria ainda. Que tal virar um pescatoriano? Ou vegano mesmo? Emagrece e faz bem, além de salvar os animais. É um discurso digno, convenhamos. Se não conseguir cortar a carne de uma vez, “você pode substituir carne moída por lentilhas, por exemplo”.
Pelo menos eles ainda têm o McDonald’s, que se retirou da Rússia. Tome essa, Putin.