É hora de fortalecer disciplina e a ação racional de nosso movimento. Cair em provocações é dar ao outro lado farta munição na guerra híbrida em andamento

por Matheus Dato
O Brasil está em um momento de convulsão que pode adotar a forma de um conflito aberto de classes na luta política, parafraseando o saudoso Florestan Fernandes. Desde que a inflexão na conjuntura causada pelas manifestações contra Jair Bolsonaro e seu governo tomou conta da cena, tornou-se inevitável uma ampliação numérica e o aumento da diversidade ideológica e social dos atos. Igualmente, é nesse período específico que os monstros aparecem para assombrar o movimento popular.
As declarações recentes da direita e extrema-direita organizadas incendeiam ainda mais o debate sobre o futuro das mobilizações. Comentaremos oportunamente sobre estas falas neste pequeno texto.
Em primeiro lugar, se queremos entender se faz algum sentido a preocupação com a infiltração da direita e o sequestro de pautas no atual momento, precisamos compreender historicamente como este processo se deu e se dá na fase atual.
A classe burguesa não mais toma atitudes de maneira separada, previsível e da maneira como se costuma ler nos livros e relatos de revoluções e contrarrevoluções passadas. Hoje, o avanço das forças produtivas em tecnologia cibernética e a ultra-integração comunicacional do mundo por meio das mídias sociais implicou a geração de dados completos e detalhados a respeito de usuários de serviços online, um substancial fortalecimento dos monopólios comunicativos em posse de novos meios de influência e o isolamento dos indivíduos em grandes bolsões de conteúdo coordenados por algoritmos.
Uma realidade como essa exige um desenvolvimento das superestruturas tradicionais de dominação de classe. Seria necessário, portanto, que a burguesia capacitasse os seus agentes para guerras não-convencionais que pudessem utilizar exaustivamente toda e qualquer forma de propaganda e ação. A este conglomerado de organizações e táticas o pesquisador e analista estadunidense Andrew Korybko dá o nome de Guerra Híbrida.
Em sua obra Guerras Híbridas – Das Revoluções Coloridas aos Golpes, o autor descreve esses processos como um caos organizado, uma ação deliberada de provocar protestos e ações de grande repercussão ou cooptar e dirigir movimentos como estes já em curso para uma determinada finalidade política. Evidentemente, em um processo tal as articulações para as obtenções de finalidades de desestabilização e continuidade da dominação imperialista conta com o uso daquilo que há de mais moderno e destaca um enorme contingente de agentes nas redes sociais, manuseio de dados, mídia tradicional, sindicatos, partidos, forças armadas e demais aparelhos de poder.
Baseado nisso, podemos determinar que movimentos desta natureza são parte do cotidiano político da luta de classes brasileira há certo tempo. Não há como, portanto, tratar deste tema como se fosse mero alarmismo, estratégia da esquerda para se esquivar de críticas internas e externas ou sectarismo puro e simples. Em outras palavras, é razoável temer o avanço da direita sobre os movimentos populares.
2013
O uso da guerra híbrida como fator determinante do golpe de Estado brasileiro se desenhou de maneira extremamente complexa e organizada. Desde o completo sequestro de uma movimentação ampla para fins de ataque direto ao governo democrático do Partido dos Trabalhadores em 2013, à criação da operação Lava-Jato como arma de influência e poder do imperialismo estadunidense na política nacional, passando pela fraude eleitoral de 2018, as formas não-convencionais de domínio e disputa se tornam hegemônicas no cenário; desnecessário dizer que o apoio de diversos campos da esquerda brasileira a estas manobras, direto ou indireto, e a completa desmobilização do partido-alvo, o PT, denotam que o controle das classes dominantes sobre o debate e a organização dos trabalhadores em momento de guerra híbrida ultrapassa os limites do que era comumente considerado possível pelos analistas. Esta forma particular de luta de classes, com efeito, está em tudo.
A introdução deste conhecimento é indispensável para pensarmos o que está em jogo com a reorganização pública da direita em tempos de derretimento do apoio popular ao governo Bolsonaro, e analisarmos coerentemente o que se passa quando PSDB, MBL e outras instituições diretamente responsáveis pelo fascismo brasileiro decidem tomar parte nos grandes atos pelo fim do governo.
Cabe ressaltar que o aumento massivo da adesão das classes populares ao movimento e a presença cada vez mais constante e organizada do PT nas mobilizações enquanto partido popular de massas, polarizando diretamente com a situação do país, não se dá ao acaso frente às novas tentativas da direita em crescer nestes espaços. O crescimento das lutas implicará, necessariamente, em uma movimentação implacável da burguesia brasileira e do imperialismo para impedir que este movimento tome contornos cada vez mais reivindicativos acerca do impeachment de Bolsonaro, a urgência de vacinação e fim da política neoliberal, bem como a respeito da candidatura de Lula em 2022. Em que pese haver desconfiança nas esquerdas com as preocupações eleitorais no atual momento, garantimos que este tópico não é negligenciado em momento algum pelos inimigos do povo brasileiro.
Quanto às possibilidades de que a situação se desenvolva em crise revolucionária, hipótese ainda distante no quadro corrente, devemos esperar da burguesia e de seus aliados e agentes uma atitude enormemente mais severa. Os sinais dados pelas Forças Armadas nas últimas semanas não deixam dúvidas de que nenhum esforço será poupado para lutar contra a união do povo.
Infiltrados de hoje
Indo ao que interessa, é muito claro que os sinais de infiltração verificados com o elemento falso anarquista responsável pelo incêndio de uma agência do Santander no último dia 3 de julho, em São Paulo-SP, não é mero acaso e deve ser visto em conjunto com a presença aberta de elementos do PSDB e as tentativas de descaracterizar o caráter popular e de esquerda das ações de massa. As agências de inteligência federais e as secretarias de segurança locais atuam diuturnamente colhendo informações e plantando crises nos espaços de organização dos explorados; seria de uma ingenuidade criminosa acreditar que a direita e a extrema-direita decidiram se somar aos esforços atuais por convicção democrática ou desejo de derrubar o governo com o qual até hoje colaboram.
A detenção de verdadeiros ativistas e militantes, a repressão violenta e o espiral de silêncio midiático sobre os atos têm ocorrido desde o primeiro momento em que nossos setores ganharam as ruas. Recife-PE, São Paulo-SP e Rio de Janeiro-RJ registram ocorrências desta natureza com frequência e crer que tais ações irão cessar ou diminuir por adesão do PSDB ou quem quer que seja não procede. É preciso ter muito mais cautela e clareza política de entender quem são os amigos e inimigos do povo em períodos de guerra do que em períodos de paz, demarcando um espaço claro entre nós e eles.
Repudiar toda violência e desunião entre os nossos não pode significar a confusão de quem realmente atende aos interesses da classe trabalhadora e quem atende aos interesses do império e da burguesia. A estes, toda forma de luta deve ser avaliada e empregada por justos meios.
Por fim, cabe o alerta de que, sendo justo temer a direita, é mais justo ainda fortalecermos a disciplina e a ação racional de nosso movimento. Cair em provocações, ações desordenadas e desmedidas sem qualquer análise da conjuntura e construção coletiva, a violência por violência e a fomentação da separação é dar ao outro lado farta munição; a guerra híbrida, como qualquer guerra, possui dois lados e ambos devem agir. Fortalecer os partidos, sindicatos, movimentos sociais sem exaltações sectárias e pautadas em um programa de lutas comuns, com caráter marcadamente popular e de esquerda aliado à agitação e propagandas são as armas que os explorados têm à sua disposição neste momento tão candente.
Temer com razão, desesperar jamais. A única luta que se perde é aquela que se abandona.