Sem Lula em 2022, não temos chance nenhuma, mas sem povo organizado e militância ativa, nem Lula com Boulos, em candidatura única, têm chance

por Alexandre Flach
A necessidade de construir uma frente de esquerda para 2022 já está na última hora, é para ontem! Teria feito toda a diferença em Porto Alegre, São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e por aí afora. E sim: precisamos mais uma vez de todo o poder do nosso Lula. Precisamos dele realmente livre!
Mas até mesmo uma unida frente de esquerda, com Lula e Boulos juntos na luta pela Presidência da República, poderá dar em nada se continuarmos a falhar em nossa principal tarefa: levar novamente a esperança socialista para dentro do povo.
Contra a imprensa burguesa e a tropa de choque imperialista de falsos profetas evangélicos, precisamos devolver os instrumentos de poder ao seu legítimo e único dono. Trazer de volta às periferias e aos morros a política popular e de classes.
Não importa por quais meios esta tarefa seja organizada. Pode ser ciranda, reunião de comitês, organizar jornais populares ou levar comida a quem está passando fome. O que importa é que precisamos mais do que nunca do bom e velho trabalho de base. Se falharmos, teremos que esperar o povo inventar uma nova esquerda sozinho, porque a que conhecemos hoje vai virar história.
Pra início de conversa, precisamos tirar dois bodes da sala
“A lição que fica é a da importância da unidade. E acho que a gente vai saber amadurecer.” Guilherme Boulos
Sim, temos dois bodões fedorentos na sala: a desconfiança contra Boulos e o esquerdismo histérico e sectarista contra eleições.
Quem quiser ver como a burguesia conseguiu plantar e cultivar a desconfiança burra de alguns contra Boulos, dá uma olhada nessa matéria, e veja a maneira habilidosa com que a mídia criou um Boulos para cada um, investindo pesado em nos dividir para conquistar.
Dependendo do público, o Boulos foi apresentado tanto como amigão do Lula como o novo líder hegemônico da esquerda, em oposição ao “lulopetismo”; membro da elitizinha fresca da Vila Mariana ao mesmo tempo que radicalzão comunista, invasor de propriedades; como o cara que finalmente amadureceu e “deixou de lado o figurino de agitador”, mas também o velho “aventureiro inconsequente” de sempre. Mesmo com todas essas contradições evidentes, tem muita gente que ainda está caindo nessa lorota.
Menos relevante, mas igualmente divisionista, é aquele esquerdista que fica cuspindo demagogia oportunista para todos os lados dizendo que a “eleição burguesa não resolve nada”, que a “esquerda pequeno burguesa é viciada em eleições” e assim por diante.
Batem no peito tatuado com a foice e o martelo autoproclamando-se os revolucionários, mas não têm força para levar avante qualquer alternativa real de poder para as massas. Escarram nas instituições, mas não têm a mínima perspectiva razoável de construção de um poder revolucionário. É um completo niilismo político.
Esse “esquerdismo infantil”, como diria Lênin, falha historicamente na tarefa de ligar-se ao povo exatamente por sua imaturidade sectária e sua burocracia monolítica. O povo, para eles, é reduzido a uma massa de manobra. Gente ignorante e apolitizada que deve ser educada e trazida à luz revolucionária dos iluminados bastiões da revolução brasileira.
Involuntariamente, repetem a mentalidade colonizadora do invasor europeu frente aos povos da América. Para eles, o povo é meio “índio” mesmo. E assim, trabalho de base limita-se a falar, falar, falar, sem nunca ouvir. Claro que desse jeito nunca conseguem nada. Nem um voto, em eleições.
E se não conseguem ser dignos da confiança das massas nem para conseguir um votinho, o que dirá para fazer o povo colocar a própria vida em risco e levantar armas contra a burguesia?
Sem capacidade de construir novos espaços de poder, dão de ombros aos que existem e reduzem-se, por mão própria, à irrelevância. Obviamente, isto não é um projeto político pra valer. Bom que façam alguma propaganda do socialismo e da revolução, mas é só. Não dá para levá-los mais a sério do que isso.
Bodes fora do caminho, vamos ao que mais interessa.
Urnas pandêmicas de 2020 mostram um Brasil ainda mais polarizado
Se você é daqueles que dá muita confiança para a imprensa capitalista, e sua visão política é construída pela Folha, Globo News ou Estadão, prepare-se para grandes surpresas.
Ao contrário do que estão propagando aos quatro ventos, os números das urnas demonstram, conforme os dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que a polarização no Brasil está cada vez mais intensa, e o lado burguês da luta de classes — principalmente o que apoia o fascista Bolsonaro — ganha terreno e é o grande vitorioso em 2020, estendendo raízes por todo o território nacional.
Os partidos propriamente de extrema-direita, abertamente ligados ao bolsonarismo (Republicanos, PSL, PSC, Patriotas e PRTB) tiveram um aumento de votos de 87,39%, de 2016 para 2020. Conquistaram 8,67% das prefeituras.
O “centrão”, que está na base política da extrema-direita bolsonarista (PSD, PP, PL, PTB, PROS, Avante e Solidariedade) também cresceu bastante: 24,73% em número de votos, avançando para mais 22,51% de prefeituras. Este bloco, que hoje apoia o Bolsonaro, somado ao bolsonarismo puro sangue, hoje detém quase 48% das prefeituras.
Aquela massaroca que a mídia gosta de chamar de “centro”, os partidos da política burguesa tradicional, ou seja, MDB, PSDB, DEM e NOVO, tiveram uma queda de 20,12% em número de votos. Só que aí houve um forte crescimento do DEM (mais 62,54% de votos) e do NOVO, que viu o número de eleitores aumentar em nada menos que 992,16%! Mesmo assim, com o desastre do PSDB e a forte queda do MDB, este bloco perdeu 17% das suas prefeituras.
Já em relação à falsa esquerda, PDT, PSB e REDE, setor que a burguesia luta para lançar como a “nova” esquerda, as urnas demonstram que o investimento ainda não deu muito resultado: perda de 30,49%, em número de eleitores, e queda de 24,36%, em prefeituras.
A esquerda de verdade mantém-se viva
“O fato de não termos perdido eleitorado em relação a 2016, consideramos que é um resultado razoável. Não é uma derrota acachapante, e obviamente também não é uma vitória. Isso sinaliza que o PT precisa se fortalecer, precisa se posicionar, se reorganizar pra enfrentar o que tem por vir.” –Gleisi Hoffmann
Considerando os números do primeiro turno, os três principais partidos da esquerda (PT, PSOL e PCdoB) mantiveram-se praticamente estáveis em relação a 2016, o ano do desastre do golpe. Mas ainda assim com queda: menos 4,5% de votos. Interessante notar que justamente o alvo central do golpe, o PT, cresceu um pouco, retomando 1,88% de seus eleitores. O PSOL aumentou mais: 6,53%, enquanto que o PCdoB foi o maior derrotado, caindo 38,96%.
PSTU, UP, PCO e PCB, tomados em conjunto, também amargaram uma queda de 22,53%, de 2016 para cá. A queda deste setor só não foi maior por conta do excelente desempenho da UP, que acabou de nascer mas já tem metade do número de eleitores do PSTU e mais do dobro do PCO e PCB juntos. Sem a UP, conhecida por sua ligação estreita com movimentos por moradia e de favelas, a queda deste bloco seria de 76,05%. Sinal de que trabalho de base sério funciona.
Para ter alguma chance em 2022
“Eu acho que tivemos uma grande experiência no segundo turno, em que estávamos unificados em Porto Alegre, São Paulo, Fortaleza, Belém, em várias candidaturas, em que essa frente acabou se unindo pra poder enfrentar a direita”. –Gleisi Hoffmann
Como se vê, a extrema-direita bolsonarista está bem viva e prova ser bastante resistente à investida da burguesia para empurrar o quadro político para o centro. Por outro lado, ainda mais na contramão do esforço burguês, a UP ganha espaço.
Sinal de que o grande capital pode ser poderoso, mas não pode tudo. E tanto o trabalho de base da direita como o da esquerda dá resultado, inclusive no curto prazo. A UP faz política entranhada nas comunidades proletárias, revolucionária e socialista, sem desdenhar as eleições nem se limitar a elas. Já os evangélicos, em verdade organizações políticas da burguesia, pregam a mais não poder um “antipetismo” satânico e corrupto.
Se para a direita, trata-se de uma verdadeira lavagem cerebral, para nós, o trabalho de base significa o oposto: antes de falar, ouvir; antes de pedir, oferecer; antes de querer ser a grande liderança de um suposto povo atrasado, estar junto com ele em todas as suas lutas. Tem que ser trabalho contínuo e disciplinado, mas no fim o resultado aparece: povo organizado não cai nas garras de mídia golpista ou de pastor fraudulento.
O PT precisa fazer o mesmo. Precisa usar sua enorme força para chegar de imediato em seus filiados e logo em seguida nas comunidades pobres, nas roças, nas ocupações. Ajudar o povo a se auto-organizar, investir em politização e fomentar novos quadros, mesmo que isto possa representar pressões internas no partido. Precisamos de mais e mais comitês Lula Livre, muito mais dos que já existem, não só como meio de pressão para o STF devolver a Lula seus direitos políticos, mas principalmente como forma de fomentar a organização popular. Sem Lula em 2022, não temos chance nenhuma, mas sem povo organizado e militância ativa, nem Lula com Boulos, em candidatura única, têm chance. Ou alguém quer arriscar continuar assim mesmo depois do que aconteceu em 2020?
E para chegar no povo o maior partido da esquerda brasileira precisa mostrar toda a força socialista da sua cor vermelha e saber explicar para o povo o que significa isso. Precisa tirar o seu pé do asfalto e colocar na terra dos morros e comunidades. Precisa reaprender a trabalhar unido e coeso, e conseguir sair da defensiva: menos paz e amor e mais (muito mais) antifascista e revolucionário, oferecendo mais perspectivas para o futuro do que legados do passado. Caso contrário, corre o perigo de cair de armadilhas em armadilhas centristas, roxinhas e amareladas, exatamente no abismo que a burguesia quer.
Mas ninguém se iluda: o PT é apenas o alvo prioritário. A esquerda inteira está na mira. Por isso, a estagnação política de 2020 comprova na prática que precisamos todos trabalhar como um único partido desde já. Quem estiver melhor colocado na população, encabeça chapas e tem apoio dos demais. É assim que a classe trabalhadora opera. É este o rumo da esquerda. Unir-se para conquistar o que já é seu por direito: ser a voz qualificada do povo.
O maior desafio
A década de ouro da industrialização brasileira deu nascimento a tudo o que conhecemos hoje como esquerda. Principalmente o PT. Entre 1979 e 1989, a indústria era responsável por 40% do PIB brasileiro, a mesma proporção do setor de serviços. Agora, a participação da indústria é de apenas 18% do PIB, contra 62% dos serviços. Além disso, o IPEA apontava, já em 2007, para uma crescente desconcentração e interiorização da indústria, uma verdadeira marcha para o interior: “Em 1990, as dez maiores microrregiões industriais do País concentravam 46,8% dos empregos formais no setor — esse índice caiu para 32,2% em 2007. Apenas três delas estavam localizadas no Sul e no Nordeste em 1990 — Curitiba, Porto Alegre e Recife. Esse número dobrou em 2007”.
Ou seja, a situação daquela classe operária que formou o PT — na época fortalecida e concentrada principalmente nas regiões metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte — mudou totalmente de figura. Hoje, o povo trabalhador dos grandes centros urbanos é composto basicamente por empregados do comércio ou desempregados que ganham o pão por meio de aplicativos de entrega ou transporte.
A classe operária propriamente dita caiu drasticamente em número e importância econômica e foi propositalmente dispersa pelo país. Dois fatores que criam enormes dificuldades em sua organização.
Em uma cidade pequena, o operário fica muito mais dependente de seu emprego, ao contrário do empresário, que pode mover plantas industriais menores com muita facilidade de um lugar para outro. Várias empresas, por exemplo, simplesmente se mudarem da noite para o dia, ao menor sinal de ameaça de seus empregados, em pequenas cidades do interior mineiro, como Itanhandu e Itamonte.
Com uma estrutura social praticamente oposta àquela que formou a nossa esquerda nos anos 70 e 80, é natural que tenhamos que buscar novos caminhos para voltar a ser a voz política das lutas populares.
É como caminhar por um pântano, mas na luta os caminhos se abrem
“Estamos em uma daquelas zonas cinzentas da história onde o velho está morrendo e o novo não nasceu. Tudo está apodrecendo no Brasil, da direita à esquerda.” -Breno Altman, no Bom Dia 247
A desindustrialização e desestruturação da classe trabalhadora brasileira é apenas um reflexo a mais da enorme decadência do capitalismo mundial e crescente tomada de poder do proto-socialismo chinês, fenômeno com força o suficiente para, desde 1989, colocar a classe operária mundial inteira em um longo período de refluxo de suas lutas.
A indústria mundial migrou para solo chinês. Trata-se de uma longa revolução, que alimenta e é alimentada pela crônica crise do sistema capitalista, e certamente vai se alongar por gerações. O socialismo não nasce sem enormes desafios e crescentes sacrifícios de toda a humanidade. Além disto, não só de crises agudas e tomadas de Palácios de Inverno são feitas as revoluções.
No Brasil, a burguesia prepara suas barricadas deixando a direita fascista prontinha para uso enquanto tenta amortecer a luta de classes, empurrando a política para o centro. No processo, divide e desorganiza organizações populares, enquanto sobe os morros para organizar o povo contra si mesmo, fraudando a religiosidade natural de quem já não tem outra perspectiva na vida a não ser colocar os joelhos no chão e confiar no além.
Mas se para a burguesia o nosso mundo vai acabar logo ali em uma distopia reacionária qualquer, para nós socialistas, a história é outra. Sabemos que a história não acaba agora e precisamos voltar a mostrar isso para o povo, olho no olho, todos os dia, a partir de hoje.
A luta concreta pela construção de uma nova sociedade, popular e socialista, é a única fonte de energia política vigorosa o suficiente para esquentar o coração vermelho do nosso povo e torná-lo novamente capaz de ultrapassar a longa série de obstáculos que se coloca à sua frente.