Conheça grupos e indivíduos de esquerda e liberais que advogam teses, em geral associadas à extrema direita, contrárias às vacinas e medidas de proteção e isolamento social

por Danilo Matoso
Movimento antivacina, “tratamento precoce” com cloroquina e ivermectina, atos contra lockdowns, crença num golpe totalitário global por meio da pandemia. Tudo isso é coisa da extrema-direita, de trumpistas, de bolsonaristas, certo? Errado. No que concerne à Covid-19, alguns analistas e grupos políticos em princípio de esquerda abraçaram totalmente muitas das teses tidas em geral como “negacionistas”, e que para muitos estão diretamente ligadas ao obscurantismo, ao anticientificismo etc.. A partir de fundamentos aparentemente tão díspares quanto o duginismo, o trotskismo ou o liberalismo, diversos progressistas dão combate constante às medidas governamentais que vêm sendo implementadas globalmente para conter e combater a doença que assola o planeta há um ano e já causou ao menos 270 mil mortes em nosso país.
A pandemia como instrumento totalitário
“Covidiotas”. Assim a autora Clara Carluccio se refere àqueles que seguem as diretrizes de distanciamento social, usam máscaras, fazem isolamento e quarentena, num artigo publicado no site italiano — aparentemente de extrema-direita — Il Detonatore em 18 de janeiro. Em menos de dez dias, o texto foi traduzido e publicado nos sites de pelo menos duas organizações da esquerda brasileira: a Nova Resistência e a Liga Bolchevique Internacionalista (LBI).
O texto segue o mote inicial: “que fique claro: eu sou uma cabeça dura que não fica em casa, que não denuncia festas de aniversários clandestinas, mas as encoraja. Sou dessas que aperta a mão e abraça quem ainda queira sentir-se humano e, apesar disso, estou viva. Sou dessas que insulta quem a repreende por não usar máscara de manhã e de noite. Sou dessas que não aceita o sentimento de culpa que estão empurrando em nossas cabeças”. Ao traduzi-lo, a Nova Resistência acrescentou um lide ao artigo:
“Já se tornou evidente que o pânico moral lançado pela mídia e pelos governos sobre a população não passa de uma engenharia social de controle. A pandemia é grave, mas não o bastante para justificar lockdowns perpétuos e o controle de cada aspecto da vida humana. Enquanto os bilionários se divertem, os pandeminions que seguem, como religião, as palavras de um Átila Iamarino apodrecem até a morte trancados em casa, entre punhetas, maratonas de séries e pedaços de pizza entregues pelo UberEats”.
O grupo segue a orientação política formulada pelo russo Aleksándr Dugin — chamada de “Quarta Teoria Política” por se propor a superar o que considera as três ideologias políticas modernas: liberalismo, comunismo e nacionalismo. Em outros artigos, a Nova Resistência também se posiciona frontalmente contra a obrigatoriedade da vacinação. Segundo o articulista André Luís (historiador, mestrando em História pela UFRJ e cristão ortodoxo), “essas vacinas não detêm a transmissão do vírus e sim os sintomas da Covid” e sua eficiência “não está de todo demonstrada”.
Se é controverso o enquadramento da Nova Resistência dentro do que se entende tradicionalmente como esquerda, o mesmo não acontece com a Liga Bolchevique Internacionalista. De orientação política marxista-leninista e trotskista, a LBI também reproduziu o texto de Carluccio e é contra a obrigatoriedade da vacinação, alertando num artigo que “70% dos médicos e enfermeiros da França se recusam a tomar a vacina da Covid por temer seus efeitos adversos” e em outro que “vacinas ineficazes para Covid-19” alimentam “negócio trilionário”. A LBI se posiciona contra o lockdown como medida de controle da “suposta pandemia” e denuncia que a Pfizer estaria fazendo “exigências semelhantes às da ocupação nazista na II Guerra Mundial” às nações da América Latina para fornecer suas vacinas na região.
Contra a Big Pharma
A LBI presta solidariedade ainda a Gilson Dantas, um dos fundadores e dirigentes do Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), grupo político trotskista responsável pela rede de portais de notícias Esquerda Diário. Desde abril do ano passado, Dantas — que é médico — vem publicando diversos artigos em defesa da hidroxicloroquina como medicamento eficaz no tratamento da Covid-19. Foi duramente criticado pelo também trotskista David North, do World Socialist Web Site e — segundo a denúncia da LBI — isolado dentro do próprio MRT, que em outros artigos associa o movimento antivacina e a defesa da hidroxicloriquina ao neonazismo — já que Bolsonaro e Trump apostaram suas fichas políticas nesse fármaco. Os artigos de Gilson Dantas passaram a ser publicados com o prefixo Opinião em seus títulos e a advertência: “essa é uma opinião do autor, e não representa a posição do MRT sobre o tema”.
Gilson Dantas também preconiza o uso da ivermectina para o tratamento de Covid. Segundo Dantas, “desde praticamente o início desta pandemia acumulam-se evidências científicas e clínicas em favor de ao menos dois medicamentos — ambos conhecidíssimos [cloroquina e ivermectina] — no tratamento da doença do COV-19”. Em sua visão, a ausência de indicação da Organização Mundial de Saúde (OMS) ao uso desses remédios seriam fruto de pressão política das grandes indústrias farmacêuticas, a Big Pharma. O dirigente afirma que a inefetividade do tratamento preconizado por Bolsonaro se deve não à ineficácia dos fármacos, mas a sua “impotência política e social na gestão da pandemia”.
O jornal Gazeta Revolucionária — cujo editor-chefe é o uruguaio radicado no Brasil Alejandro Acosta — também denuncia a manipulação da Big Pharma na condução das políticas globais relativas ao combate à pandemia. Em artigo intitulado “Vacinas da morte”, o jornal questiona a efetividade e a segurança da vacina da Pfizer, que usa a tecnologia genética de “RNA Mensageiro”, exigindo testes de “pelo menos duas gerações” do imunizante por usar tecnologia genética, acrescentando que “sobre as vacinas russa, chinesa e cubana principalmente as informações são mais positivas”, mas requereriam “testes por cinco anos pelo menos”.
Segundo a Gazeta Revolucionária, a ideia de que vivemos uma pandemia é uma propaganda de terror “à qual adere toda a ‘esquerda’ identitária e bolsonarista”, visando a “semi-ocultar a maior crise capitalista da história”.
Militantes deste e de outros movimentos de esquerda e de direita compartilham suas visões sobre a pandemia, a Covid-19 e seus tratamentos num grupo do Facebook de 752 membros chamado Covid-19 (debate livre). O grupo é uma curiosa mistura política de bolsonaristas e militantes revolucionários que parecem ter como inimigos comuns a direita liberal e a esquerda institucional. Enquanto alguns reclamam a adoção do Tratamento precoce advogado por Bolsonaro, outros reclamam da associação da cloroquina ao presidente da República – o que a teria tornado proscrita. O cerne da questão é afirmar que, basicamente, a Covid-19 não demandaria a mobilização global que vem sendo feita, podendo ser resolvida com poucas medidas de higiene e tratamentos simples.
“O mito da pandemia”?
Também os liberais ditos “progressistas” nos Estados Unidos têm os seus negacionistas. A escritora Naomi Wolf, autora de “O mito da beleza” (1990), ex-assessora do presidente Bill Clinton e consultora de Al Gore, é adepta de longa data das chamadas “teorias da conspiração”. Em 2014, por exemplo, Wolf afirmou que as execuções de reféns pelo Estado Islâmico (ISIS) seriam encenações armadas pela Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), além de sugerir que os militares de seu país estariam trazendo o vírus do Ebola para casa de modo a criar um estado de caos capaz de justificar um golpe interno das Forças Armadas.
Para desilusão de muitos de seus milhões de admiradores – sobretudo do movimento feminista —, na pandemia de Covid-19, Naomi Wolf assumiu uma política “negacionista e antivacina”. Em entrevista para a rede de televisão trumpista Fox News, ela afirmou que a pandemia seria um pretexto para implementar um “estado totalitário bem diante de nossos olhos”. Segundo Wolf, as medidas correntes de combate à pandemia, isolamento, lockdowns, obrigatoriedade de vacina e uso de máscaras, não constam na constituição americana e atropelam completamente as liberdades individuais fundamentais dos cidadãos.
Somente o tempo dirá qual quinhão de razão cada um desses grupos têm. Fato é que hoje todos são exceções entre seus pares, e que politicamente tais posições os isolam em relação ao seu entorno mais imediato, aproximando-os de setores muitas vezes contrários à sua política em geral. O “negacionismo”, afinal, é um fenômeno discursivo que só ganha força se transformado em política real e numa efetiva negação de determinado estado de coisas. Nas palavas de István Mészáros: “no sentido marxista, negação não é apenas o ato mental de dizer não, […] mas refere-se principalmente ao fundamento objetivo desses processos de pensamento por negação, sem o qual o ato de ‘dizer não’ seria uma manifestação de capricho gratuita e arbitrária e não um elemento vital do processo de conhecimento”.