Uma engenharia reversa do movimento bolsonarista permite vislumbrarmos os mecanismos mentais usados para manipular o “gado”

por Alexandre Lessa da Silva
Há pouco tempo, não era comum encontrar manifestações públicas de teses claramente defendidas pela extrema direita: racismo, fascismo, nazismo, misoginia, aporofobia e homofobia eram posições condenáveis e que pareciam enfraquecer a cada dia. Aos poucos, as mulheres conseguiam ampliar os direitos sobre seus próprios corpos, aumentavam os direitos civis de casais do mesmo sexo e o respeito às diferenças sociais começava a ser protegido de uma maneira mais efetiva. Entretanto, um pouco antes do golpe aplicado à presidenta Dilma, tudo começou a mudar. Essa mudança trouxe consigo a criação de um grupo enorme de pessoas, mais de 30 milhões de brasileiros, que hoje têm a alcunha jocosa de “gado” e que, muito frequentemente, são chamados de “bolsominions”. Mas como foi possível a criação desse grupo de extremistas?
As técnicas empregadas para a criação desse nicho da extrema direita é bastante refinada e complexa. Quem observa Bolsonaro e todos aqueles que o cercam não acredita, em virtude da minúscula envergadura intelectual de toda sua horda, que foram capazes de pensar no uso de técnicas tão complexas e que envolvem diversas áreas do conhecimento, e estão certos em não acreditar. Todo o programa para a implantação da nova extrema direita no Brasil veio, certamente, de fora, sendo Bolsonaro e seus aliados nada mais do que ferramentas que simplesmente agem conforme as regras indicadas. Até mesmo os ideólogos e aqueles que são chamados de analistas ou jornalistas não passam de ferramentas, uma vez que não têm nem sequer ideia de como tudo funciona.
Através de uma espécie de engenharia reversa epistemológica, é possível reconstruir boa parte dos passos dados para a criação (dar origem, conjunto de animais criados) desse imenso exército ideológico da extrema direita.
A filosofia, em especial autores contemporâneos, foi largamente usada. Desde de filósofos hermeneutas, como Paul Ricoeur e sua obra Tempo e narrativa, até Foucault e seus conceitos de “biopoder” e “relação de poder”, passando, também, por filósofos de esquerda como Walter Benjamin e Giorgio Agamben, especialmente no que diz respeito à noção de “estado de exceção”. Aliás, as ideias de Agamben estão ficando cada dia mais próximas do discurso bolsonarista, sendo o pensador italiano já chamado por muitos de negacionista. Entretanto, não é a parte mais teórica do plano da chamada Nova Direita que será abordado aqui. O objetivo é saber como esse plano foi posto em prática, levando em conta áreas mais aplicadas do conhecimento contemporâneo.
Uma notícia recente dá conta que a Polícia Federal, dentro de um pedido feito por ela ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), informou que as redes bolsonaristas replicam a estratégia de Donald Trump e utilizam, para isso, um modelo oriundo da psicologia cognitiva. Nas palavras do pedido da PF: “É um modelo exitoso de influência baseado na forma como os indivíduos percebem, aprendem, absorvem e difundem as informações que outros fornecem no processo de comunicação (psicologia cognitiva)”. O objetivo dos bolsonaristas, no atual estado de coisas, é “diminuir a fronteira entre o que é verdade e o que é mentira”. Esse tipo de manipulação também esteve presente, e de maneira muito mais acentuada, na criação do gado bolsonarista, e é por isso que é necessário desconstruir todo esse projeto manipulador.
Muita gente já ouviu falar do papel das redes sociais para a manipulação política. Eu mesmo já escrevi um texto sobre o assunto, por isso não vejo necessidade em voltar ao tema. Por isso, passarei sobre essa questão e irei direto para a explicação de como pessoas normais foram transformadas em seres insensíveis a qualquer argumentação racional e defensoras de todo tipo de monstruosidades.
Não só a psicologia cognitiva foi usada para construção do exército da extrema direita no Brasil, outras disciplinas também fizeram parte dessa construção. No início, por exemplo, era necessário trabalhar com as emoções humanas para preparar o terreno, e a principal delas foi o ódio. Aqui, entra em cena a psicanálise. No caso Schreber, Freud aponta o ódio como uma forma de defesa secundária contra o desejo homossexual pelo pai ou, em outras palavras, o amor pelo pai se transforma em ódio. Entretanto, em Luto e melancolia, o pai da psicanálise destaca que o ódio será investido no outro dentro de mim, na figura consolidada em meu interior. Dessa forma, a autoridade, o pai primevo, identificado com o líder em Psicologia das massas e análise do eu, pode passar a ser odiada. Não é difícil enxergar como o PT, Lula e Dilma entram nesse esquema, sendo, portanto, necessário criar um ódio ao PT, Lula e Dilma, visando a esquerda em geral, para dar início à criação de um novo líder.
Através de um processo de desconstrução da imagem positiva do PT, que já estava sendo feito pela grande mídia do país, utilizando um dos mais velhos conceitos jurídicos para atacar a esquerda, o conceito de corrupção, o ódio ao PT foi criado. O PT foi consolidado, através da imprensa tradicional, como o partido narcisista voltado à locupletação de seus membros e responsável pela castração da economia do país. Além disso, com ódio vem uma grande vantagem para os extremistas de direita. Lacan, em seu primeiro seminário (1953-1954), observa que o ódio está localizado na conexão entre os registros do real e do imaginário, não chegando, portanto, ao simbólico, registro da linguagem. Assim, o ódio é praticamente imune à argumentação racional, tornando os bolsonaristas esses zumbis que todos já conhecem, incapazes de manter um diálogo.
A psicanálise apontou o caminho do ódio, mas era preciso buscar técnicas mais práticas em outras disciplinas. O caminho era subverter essas técnicas e disciplinas, usando-as para prejudicar e dominar as pessoas, no lugar de ajudá-las. Dessa maneira, as ciências cognitivas, em especial a psicologia cognitiva, começaram a ser usadas.
Howard Gardner (A nova ciência da mente) apresenta, como uma nova estratégia metodológica para rivalizar como o behaviorismo, a ideia de que a mente humana é um “sistema equivalente” a um computador. Assim, a mente agiria como a máquina citada, respondendo a determinados estímulos através do processamento dessas informações para gerar um comportamento ou resultado. Dessa forma, bastaria saber programar para obter os efeitos desejados e jogando fora, obviamente, qualquer preocupação com a ética, no caso da extrema direita.
Procurou-se, então, apresentar a corrupção como a grande desgraça do Brasil, o maior mal do mundo, através do discurso da imprensa e das redes sociais. A seguir, associou-se a corrupção ao PT, identificado com a esquerda, pronto, boa parte dos brasileiros ficou preso naquilo que Aron T. Beck (Prisoners of hate) chamou de enquadramento hostil, vendo a esquerda como uma inimiga perigosa e má, criando uma oposição entre “os cidadãos de bem” e a esquerda. Isso, como demonstra Beck, enfraqueceu todo e qualquer tipo de moralidade, fazendo, através de um pensamento primitivo, o outro, no caso a esquerda, ser visto como o mal encarnado, dando contornos sub-humanos a todos aqueles que se encontravam nesse espectro político. A partir daí, não foi difícil ampliar todo esse ódio pelo PT e a esquerda para um ódio à política e ao Judiciário. Vale lembrar que para Beck, esse enquadramento já resultou em coisas horríveis na nossa história, como o Holocausto, o processo das Bruxas de Salém e, até mesmo, toda a Segunda Guerra.
Pronto, criada a turba raivosa que protestou pela deposição de uma presidenta legítima e, com um intervalo de um governo tampão sem nenhuma expressividade, apesar de muito prejudicial à classe trabalhadora, era necessário criar uma figura que ocupasse o lugar deixado, um líder, de preferência com as características do líder freudiano, narcisista e que não ama ninguém, o único que pode gozar. Assim, a questão passou a ser procurar um “efeito priming” (pré-ativação), um estímulo inicial que passa despercebido e modifica a conduta dos indivíduos, para que um novo líder surgisse. Essa procura levou, como no caso de Trump, à apresentação de Bolsonaro como um outsider, alguém que está fora da política, uma grande mentira, mas que foi passada através da via emocional, não sendo afetada por provas ou argumentação racional. Além disso, outras duas características foram criadas para ele: a violência autoritária, visando a construção de um pai primevo, e a noção de que é um homem do povo, característica responsável pela ligação entre o líder e a massa. O resultado final todos sabemos, Bolsonaro na Presidência, repetindo o mesmo modelo de Trump, repassado a ele e aos militares pela nova direita estadunidense.
Mesmo depois de todas as provas irrefutáveis contra Bolsonaro e seu governo, o seu núcleo duro de apoio ainda resiste. A explicação para isso também passa por novos conceitos psicológicos, em especial o conceito de dissonância cognitiva.
A dissonância cognitiva acontece quando há um conflito entre uma crença que o indivíduo considera certa e, na maioria das vezes, inabalável, e um novo conhecimento que abala tal crença. Assim, há um conflito entre aquilo que autores como Vittorio Guidano e Kenneth J. Gergen chamam de narrativas. Nesse conflito, surge um grande desconforto para o indivíduo, que responde tentando eliminar essa dissonância. Essa tentativa, na grande maioria dos casos, passa por uma série de etapas, desde a troca de algumas crenças secundárias por outras até a negação da argumentação, buscando reduzir o conflito. Em geral, somente em último caso a crença base é trocada, dando uma proteção extra a Bolsonaro e sua súcia.
Assim, os zumbis foram criados, não através de qualquer meio mágico ou químico, mas pelo uso da programação mental. Agir dessa forma para programar pessoas como máquinas só revela o quão desumano é esse governo, já que pessoas são usadas apenas como instrumentos para atingir um objetivo, o que fere toda dignidade humana que deveria existir nelas.