As condições precárias tornam Paraisópolis especialmente vulnerável à contaminação, afinal, muitos ali não têm água encanada e moram em quartos com três pessoas ou mais

por Danilo Matoso
Paraisópolis, em São Paulo, ganhou atenção nacional pelo menos três vezes nos últimos meses. Na primeira vez, foi palco de um massacre da polícia. Na segunda vez, mostrou-se exemplo de organização popular frente à omissão do Estado. Na terceira vez, foi alvo de um exemplo clássico de apartheid social urbano. Com seus mais de 100 mil moradores, o bairro na zona sul da capital paulista parece incorporar, amplificar e expor algumas das contradições próprias de nosso sistema, de nosso país, de nossas cidades, de nossa sociedade. Com a pandemia de Covid-19, todas as diferenças se tornam extremas, todos os conflitos se tornam vitais, tudo se polariza ainda mais em meio a uma imensa crise econômica que varre o mundo. Em Paraisópolis não é diferente, e quando o Brasil urbano olha para o bairro, se vê no espelho.
Um bolsão de pobreza encravado entre bairros de alto luxo, há algumas décadas Paraisópolis se tornou o retrato perfeito da desigualdade social e do regime segregacionista de nossas cidades. Sua imagem clássica é um emaranhado de barracos represado por um muro que os separa de duas torres brancas de alto luxo em estilo neomediterrâneo circuladas por espirais de varandas com piscinas. Chama-se “Edifício Penthouse”.
A favela e o bairro de alto padrão cresceram de modo tão irmanado quanto o são a ascensão da burguesia industrial paulistana e a multiplicação do proletariado empobrecido da capital. Quando a antiga fazenda Morumby foi loteada no final da década de 1930, os trabalhadores da construção do Palácio dos Bandeirantes teriam ocupado o bairro, que cresceu e se adensou conforme o entorno de alto padrão também era ocupado.
“Operação Pancadão”
O sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea ressaltou em entrevista recente que “Paraisópolis sempre foi o bolsão de mão de obra barata da região”. Autor de diversos estudos sobre a região, o pesquisador explica que a relação com o Morumbi foi “sempre tensa. As relações de trabalho sempre foram de exploração e a presença de projetos sociais não resolveu os problemas estruturais de Paraisópolis. Do ponto de vista do entorno rico, o maior problema a ser sanado sempre foi o da segurança. Qualquer assalto na Avenida Giovanni Gronchi fazia o entorno entrar em contato com os órgãos de repressão do Estado, pedindo intervenção na favela”.
Algo assim ocorreu na madrugada do dia 1º de dezembro de 2019, quando policiais militares cercaram um baile funk, lançaram bombas de efeito moral sobre uma multidão de cinco mil adolescentes, quebraram carros e motos, atiraram com balas de borracha. Gritavam que haveria uma “chacina”. O 16º Batalhão da PM dizia procurar dois assaltantes numa moto, no que batizara de “Operação Pancadão”.
Seguindo o nome da operação, desferiram cacetadas nos jovens. Nove pessoas morreram pisoteadas – ou espancadas e asfixiadas por gás –, dezenas ficaram feridas. A ação arbitrária – uma entre tantas na história de Paraisópolis – teve suas imagens filmadas pelos celulares dos moradores e ganhou as redes sociais, horrorizando todo o país.
O perfil dos moradores de Paraisópolis é heterogêneo e nada além da luta de classes justifica a brutalidade policial. Segundo D’Andrea, “a favela é dividida em cinco regiões. O Grotão e o Grotinho são as regiões mais empobrecidas, com a população vivendo em condições dramáticas. Nas outras regiões, a predominância é de trabalhadores de baixa qualificação, trabalhadores do setor de serviços e alguns pequenos comerciantes. Devido ao fato de que Paraisópolis é cercada por um bairro rico, a favela foi obrigada a ser autossuficiente internamente. Desse modo, o comércio é muito pujante no local. Do ponto de vista dos serviços públicos, o local é deficitário”.
Na falta de poder institucional, algum poder popular
Como se sabe, diante da pandemia a nossa classe dominante impôs ao país um “isolamento seletivo”: os ricos ficam de quarentena, a classe média luta para se isolar e o proletariado é forçado a trabalhar exposto ao Covid-19. Este é o resultado prático da política genocida do governo Federal confrontada com governadores e prefeitos que até aqui anunciaram medidas de isolamento que nunca foram realmente implementadas e já estão sendo suspensas. Além disso, as condições precárias de saneamento e de moradia tornam Paraisópolis especialmente vulnerável à contaminação. É mais difícil lavar as mãos sem água encanada. É mais difícil fazer isolamento quando se mora num quarto com três pessoas.
Diante de um poder público omisso, os trabalhadores organizados se mobilizaram pela sua própria proteção. Escolheram-se cerca de 450 “presidentes de rua” organizados em torno à União dos Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, presidida por Gilson Rodrigues. Desenvolveram um sistema próprio de informação sobre prevenção e identificação de sintomas da doença, contrataram ambulâncias, enfermeiros, médicos, treinaram moradores como socorristas e transformaram escolas hospedarias para isolar e tratar os infectados.
Além disso, ainda em abril, adotaram um programa de doação e distribuição de cestas básicas a diaristas e criaram uma manufatura de máscaras composta por costureiras do próprio bairro. Em junho, quando a média de mortos em São Paulo era de 56,2 mortos por cada 100 mil habitantes, a de Paraisópolis era de 21,7 – menos da metade. A comunidade estabeleceu um tipo de poder popular, que simplesmente se viu na contingência de fazer o que percebeu que o poder institucional pouco faria pelos trabalhadores a não ser mandá-los trabalhar em ônibus lotados. Mais uma vez Paraisópolis ganhou notoriedade nacional, tornando-se uma referência em organização comunitária – e não apenas dos pobres.
Não bastou para serem ao menos deixados em paz.
O velho normal é o “não no meu quintal”
Por serem organizados, há anos os moradores haviam conseguido da prefeitura a construção do Parque Paraisópolis numa área verde que os separava do condomínio de casas Jardim Vitória Régia – evidentemente todas de alto padrão. Seria a possibilidade de oferecer à comunidade uma área pública de lazer capaz de dar algum alento à população apinhada numa densidade que chega a 61 mil moradores/km2 em vielas sem urbanização nem ajardinamento.
Na semana passada, a Associação dos Amigos do Jardim Vitória Régia pediram em carta à prefeitura de São Paulo que o parque seja murado, com apenas uma entrada para Paraisópolis, de modo que possa ser fechada quando desejarem. Candidamente, solicitam ainda que sejam proibidas bicicletas e piqueniques. Em suma: solicitam sutilmente que seja proibida a entrada e o uso do parque à comunidade que o idealizou e o pleiteou à prefeitura. É a mentalidade que os norte-americanos chamam de NIMBY – Not In My Backyard. [Não no meu quintal]. O mesmo tipo de ação cândida que, por exemplo, boicotou a chegada do metrô a Ipanema, no Rio de Janeiro, de modo a impedir os moradores da zona norte de irem à “sua” praia nos finais de semana. Eles não fazem por mal. É a luta de classes.
Gilson Rodrigues, um dos protagonistas da União de Paraisópolis, ganhou merecida projeção nacional, e vem sendo convidado para diversas lives no Youtube. Numa delas, realizada pelo Colegiado de Entidades Nacionais de Arquitetura e Urbanismo na semana passada, desabafou. “Já temos um movimento no Brasil, criado para induzir a população a achar que tá tudo certo, chamado novo normal, esse novo normal ainda não chegou na favela porque não existe nenhum normal ainda. Porque não é normal que milhares de pessoas tenham que sofrer com falta de água, não é normal que milhares de pessoas morem em cima do córrego, não é normal que milhares de pessoas tenham que viver aglomeradas de forma desordenada onde a questão de infraestrutura e risco é grandiosa. Então nós estamos em busca do nosso normal”.