A suspeição de Moro, a candidatura de Lula e seus desafios

Esquerda enfrenta o desafio de transformar a liderança política de Lula em capacidade de organização, para que o povo possa intervir na situação política

Imagem: Intercept Brasil
por Danilo Matoso

Cada vez mais, as contradições no seio da classe dominante colocam em xeque a Operação Lava Jato, Sérgio Moro e suas sentenças – inclusive a condenação de Lula. Com isso o ex-presidente volta a ser uma possibilidade eleitoral real em 2022. Se tardou quatro anos para que uma óbvia parcialidade chegasse à cúpula do judiciário, não se trata aqui apenas de um debate jurídico, mas antes de tudo de uma disputa política que envolve forças sociais reais, e o jogo dessas forças vem mudando, colocando a todos os partidos e organizações de esquerda novos desafios. Afinal, não é só de opinião que se faz política.

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Moro é, antes de tudo, um político de direita

Era uma quinta-feira, 1º de novembro de 2018, quando o juiz federal Sérgio Moro, então com 46 anos, anunciava publicamente que abriria mão da magistratura para dedicar-se à carreira política. Naquele momento, Moro aceitava o cargo de ministro da Justiça oferecido pelo presidente recém-eleito Jair Bolsonaro. Em qualquer caso, seria no mínimo incomum um juiz abrir mão de uma das carreiras mais cobiçadas no Serviço Público, com garantia vitalícia de remuneração acima do teto salarial, para abraçar a política pela via de um simples cargo de livre nomeação. Em si, a escolha já sinalizava um horizonte de atuação mais ambicioso e longevo.

Talvez o juiz estivesse ali seguindo a recomendação do mais célebre réu que passara por seu crivo: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-presidente exortara a Moro e seus consortes, ao ser condenado em 7 de abril de 2018, “largue a toga e vá ser candidato”. Moro ainda pretende ser candidato, é evidente. Mas o problema em questão é a conduta abertamente política que exercera até ali à frente da Operação Lava Jato. Sob esse guarda-chuva, um grupo de juízes, procuradores e agentes da Polícia Federal vinham exercendo desde março de 2014 – ano das eleições presidenciais que seriam vencidas por Dilma Rousseff – uma ampla perseguição a diversas empresas, seus proprietários mas sobretudo às lideranças políticas do Partido dos Trabalhadores.

Desnecessário lembrar aqui o que já foi amplamente denunciado pelas mais diversas organizações progressistas nesses seis anos de Lava Jato: que o juiz atuava como procurador, instruindo a acusação, que os principais atores da operação tinham e têm relações não esclarecidas com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que a Lava Jato levou à lona diversas empresas nacionais, desindustrializando o país, cortando mais de R$ 142 bilhões de investimentos em obras paralisadas e produzindo indiretamente cinco milhões de desempregados. Essas denúncias vêm sendo alardeadas aos quatro ventos pela esquerda há anos – aparentemente com pouco ou nenhum efeito na opinião geral sobre Moro ou a Lava Jato.

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O que era cristalino como análise conjuntural se tornou palpável primeiro quando o próprio Sérgio Moro abandonou os tribunais para ingressar no governo eleito graças à prisão de Lula – conduzida por ele mesmo. É estarrecedor que tal atitude por si só não tenha sido suficiente para despertar ao menos uma forte dúvida em qualquer defensor de uma suposta imparcialidade do ex-juiz. Além disso, há mais de um ano, o site Intercept Brasil vem publicando uma série de diálogos internos dos membros da Lava Jato – vazados de um grupo de Telegram de que participavam. A relação, na realidade, é clara: quanto mais a carreira política de Moro avança, mais suspeita é sua atuação anterior como juiz. Sua saída do governo Bolsonaro em abril deste ano indica apenas que ele mesmo tem pretensões eleitorais talvez urgentes e amplas demais para caber num cargo de ministro.

Moro não é apenas suspeito. Moro é suspeitíssimo, é uma das lideranças políticas no combate aberto ao Partido dos Trabalhadores e usou claramente seu cargo de juiz federal para chegar a tal posição. Sua atuação parcial mostrou em diversas instâncias um grau de falência de nossas instituições: desde o conluio conservador do Judiciário até a própria legitimidade do processo eleitoral, em que a Operação Lava Jato comprovadamente teve participação ativa. Moro hoje é um candidato político relativamente popular, do ponto de vista eleitoral. E é um dos candidatos de muitos daqueles que derrubaram Dilma e elegeram Bolsonaro.

Lula candidatíssimo

Nas últimas semanas, o pedido de suspeição de Moro feito pela defesa de Lula, que estava parado desde 2018 no Supremo Tribunal Federal (STF), voltou a andar a partir de declarações favoráveis dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Declarada a suspeição, diversos atos de Moro como juiz serão anulados, incluindo a condenação do ex-presidente Lula. É uma grande vitória. O ex-presidente poderia voltar a ser candidato nas eleições de 2022. Rumores internos no PT dão conta que Lula é candidatíssimo.

Uma eventual candidatura de Lula tem potencialmente um impacto político gigantesco. Não apenas reforça o papel de sua liderança e a importância de seu apoio aos candidatos do PT nas eleições municipais. O aceno claro de uma candidatura progressista forte em 2022 pode impulsionar uma reorganização das bases do PT capaz de mudar concretamente a relação de forças políticas em jogo.

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Convém lembrar, porém, que foi no bojo dos acordos palacianos que se deu a soltura de Lula do cárcere em novembro de 2019. Sua habilidade de articulador falou mais alto que seu papel de líder de uma rebelião popular – até porque ele várias vezes já declarou não ser revolucionário. Apesar dos valorosos esforços dos militantes envolvidos nos atos por Lula Livre, a verdade é que a mobilização popular teve peso secundário naquele momento – uma mobilização que ele mesmo fez questão de conter em algumas ocasiões. Lula foi libertado pela pena do judiciário – o mesmo que o aprisionou.

O PT tem importante força institucional. Em 2016, no auge do golpe, o Partido logrou eleger 256 prefeitos – menos da metade de 2012, mas ainda um número elevado. Em 2018, apesar da derrota de Haddad, elegeu os governadores de quatro estados – mais que qualquer outro partido – e teve participação na eleição de outros tantos, como Flávio Dino (PCdoB), no Maranhão. Como partido isolado, o PT ainda é o de maior bancada na Câmara dos Deputados, com 53 parlamentares. Tal força é originária principalmente não de acordos palacianos, mas da trajetória do Partido na organização popular, uma organização popular que vem sendo duramente combatida.

“Reorganizar pela base” vem sendo uma das palavras de ordem dos partidos de esquerda desde 2016, quando foram “surpreendidos” pelo golpe orquestrado pelo grande capital internacional auxiliado internamente por ações como a Lava Jato. Mas cabe perguntar se tal reorganização vem de fato acontecendo. Salvo em casos isolados, o carro-chefe das políticas partidárias de esquerda segue sendo o processo eleitoral. Tal foco, definido pelos campos hegemônicos do PT na década de 1980, já mostrou as suas limitações justamente no golpe de Estado de 2016 e nas eleições presidenciais de 2018. O poder institucional da esquerda sempre deve ser acompanhado do fortalecimento efetivo das organizações populares. Afinal, as instituições têm dono. A burguesia segue servindo-se do Estado antes de tudo como um gabinete para gerir seus negócios.

Os ataques perpetrados contra as organizações populares desde 2016 foram amplamente denunciados quando eram urdidos e praticados. Pouco se tem falado, por outro lado, dos devastadores efeitos de tais ataques. Para ficar no campo sindical – a origem política do próprio Lula – basta lembrar que os sindicatos perderam mais de 90% da arrecadação com a reforma trabalhista de 2017. Poderosas organizações como a Central Única dos Trabalhadores, suas federações e confederações tiveram suas pernas quebradas nos últimos anos. O sindicalismo está combalido e, em que pesem os inúmeros esforços de reestruturação, está claramente nas cordas.

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Tal situação defensiva pode ser verificada também na ampla restrição sofrida por diversas outras frentes organizativas populares, como os movimentos de luta pela terra, pela moradia, pelos direitos humanos. Todos perderam significativamente voz e capacidade de negociação institucional. A virtual extinção dos inúmeros conselhos – como o Conselho das Cidades ou o Conselho Nacional de Saúde – é um indício de tal fechamento do Estado às demandas do povo e a política genocida do Governo Federal na pandemia de Covid-19 é uma expressão palpável disso, em que pese as poucas conquistas do chamado “campo progressista” (esquerda e centro-esquerda), como a Renda Básica Emergencial. A capacidade de mobilização da esquerda está seriamente comprometida e – para além da luta por emprego, salário, terra e moradia – carece de um norte político para recuperar minimamente a força que tinha antes de 2016. Talvez a candidatura de Lula dê esse rumo.

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A liderança de Lula se dá em vários âmbitos. Líder das massas, articulador político, negociador internacional, é o estadista mais completo que o Brasil produziu nas últimas décadas. A suspeição de Moro e da Lava Jato, a anulação de sua condenação e a possibilidade de sua candidatura à Presidência em 2022 são um alento e um impulso. Mantida a relação de forças atual, porém, sua vitória em 2022 seria apenas uma miragem – a permanência da força política de Moro, mesmo eleitoral, como representante oficial de um setor da burguesia é prova disso. Transformar tal miragem em realidade é o gigantesco desafio que o PT e os demais partidos de esquerda têm pela frente, e que passa por transformar a liderança política de Lula em capacidade organizativa das bases, de modo a reconstruir um poder popular capaz de exercer pressão política real.

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