As manifestações do último sábado foram tão vigorosas quanto as anteriores, mas a imprensa corporativa, e algumas vozes da própria esquerda, dizem que não foi bem assim

por Danilo Matoso
Aqueles que foram aos atos do último dia 2 em todo o país viram mais uma forte manifestação popular pelo Fora Bolsonaro. O movimento foi um sucesso. Não foi, porém, o que a imprensa corporativa noticiou. Aparentemente, a diretriz política da classe dominante foi de jogar os efeito político dos atos para baixo. De modo curioso, aparentemente essa narrativa de “fracasso” foi adotada por alguns comunicadores, formadores de opinião e lideranças políticas da própria esquerda.
Após pelo menos quatro atos nacionais bem-sucedidos desde maio, se o movimento não era maior – como em Belo Horizonte – era pelo menos igual aos anteriores em capitais como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília. Este ato tinha ainda um sabor especial por ser o primeiro ato de esquerda após a tentativa golpista de Bolsonaro no 7 de setembro e o malogrado ato pelo impeachment do presidente realizado pela oposição de direita no dia 12 do mesmo mês. Era nossa chance de mostrar que, na semana em que o país conta mais de 600 mil mortos e a inflação bate a marca de 10% ao ano (oficialmente), é urgente depor Bolsonaro. É importante ainda mostrar o mando de campo da esquerda na realização de atos de rua.
E foi o que aconteceu. A esquerda foi às ruas como o fizera em 29 de maio, 19 de junho, 3 e 23 de julho – além do Grito dos Excluídos confrontando a tentativa golpista em pleno 7 de setembro. Foram centenas de milhares de pessoas nas ruas em mais de 200 atos em todo o Brasil e em 16 países. Enquanto ainda voltam para casa, porém, os militantes se depararam com uma narrativa diferente.
Enfim, o PIG
Partindo da projeção de uma falsa expectativa de crescimento das manifestações pela direita, a Folha de S. Paulo já anuncia às 18h55 do próprio sábado que os “Atos anti-Bolsonaro puxados pela esquerda têm adesões tímidas e nova ausência de Lula”, explicando no “olho” que as “manifestações esbarram em presença aquém do esperado à direita; único presidenciado na Paulista, Ciro é vaiado”. A notícia seria capa da versão impressa de domingo do jornal que se diz “a serviço da democracia”. O Estadão tocou o mesmo bumbo um pouco mais tarde, como que para confirmar que se tratava de uma linha política articulada, estampando às 21h56 “Oposição volta às ruas em ato contra Bolsonaro, mas com pouca adesão além da esquerda”. Ou seja: quem não fora chamado, não comparecera – afora Ciro Gomes, claro. A cereja do bolo seria a contagem oficial da Polícia Militar de São Paulo do público presente nas ruas da avenida Paulista: 8.000 pessoas. Uma mentira deslavada.
É fato que, cada vez mais, se torna politicamente inviável o impeachment de Bolsonaro pelas vias normais. O tempo restante de mandato torna-se cada vez mais exíguo para permitir os dez meses de tramitação regular no Congresso Nacional. O centrão cada vez mais se acomoda ao governo, nos espaços conquistados pela inviabilização do impeachment e, convenhamos, será difícil manter o povo nas ruas repetidas vezes por muito tempo. Os atos anteriores e as denúncias escandalosas de corrupção e higienismo que vieram à tona na CPI da Pandemia no Senado parecem ter surtido pouco ou nenhum efeito na ala fisiológica da base governista na Câmara. Mas é fato também que a mesma esquerda, que tem ido às ruas pelo fora Bolsonaro ao longo deste ano, esteve nas ruas em 2 de outubro. O ato não foi em nada menor que os anteriores. Aqueles presentes na capital mineira afirmam que talvez tenha sido o maior deles.
A minimização de atos da esquerda nas ruas não tem nada de novo. Quem esteve presente, por exemplo, nos atos contra o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 se cansou de ver números absurdamente inflados e fotos favoráveis aos atos da direita nas manchetes d’O Globo, da Folha ou do Estadão, enquanto os massivos atos contra o golpe eram tratados como “reuniões de petistas” na rua. Enfim, era o PIG sendo o PIG – Partido da Imprensa Golpista. Porém, como amplos setores da burguesia – representados pela Globo e pela Folha – vêm fazendo oposição aberta ao Governo Bolsonaro, a imprensa vinha sendo mais realista e eficiente na cobertura dos atos pelo Fora Bolsonaro de 2021. O que aconteceu, afinal? Eles acusam abertamente em sua narrativa três pontos: a baixa adesão da direita, a ausência de Lula, a rejeição a Ciro Gomes em São Paulo.
A direita e a mobilização de rua
Aparentemente, o projeto da direita era de simplesmente fazer de escada os atos de rua organizados pela esquerda, dando a suas lideranças uma projeção política que não corresponde a seu apoio popular – como se os manifestantes estivessem ali para vê-los. Evidentemente, foram mal-recebidos por quem está nas ruas há mais de cinco anos tentando lutar contra o golpe que eles ajudaram a dar. Eles ainda tentaram – e talvez tentem de novo – uma espécie de pink washing da direita por meio de da candidatura de um Eduardo Leite (PSDB-RS), que providencialmente “saiu do armário” às vésperas do ato de 3 de julho.
Fato é porém que – sem botar dinheiro nisso, como fazem nas eleições – a capacidade nula de mobilização popular de um Ciro Gomes ou um João Dória ficou patente no fiasco monumental dos atos da “oposição de direita” de 12 de setembro, chamados em julho pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Afinal, quem puxa a mobilização de rua hoje é quem está organizado ou radicalizado: ou é o campo popular de esquerda ou é a extrema-direita. Aparentemente, os de extrema-direita – aqueles que apoiam o MBL e votam em suas lideranças – estão com Bolsonaro e não contra ele.
Segundo Ciro Gomes e demais adeptos da chamada “terceira via”, cerca de 40% da população não se interessa por política e nem pela disputa entre direita e esquerda. Que seja. Tal despolitização, evidentemente, é simplesmente um reflexo do fato de que, como diziam Marx e Engels, “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”. Isto é, “não pense em crise: trabalhe”. Essa galera está cuidando de sua vida e nem passa por sua cabeça ir às ruas pela defesa de um líder político ou pela deposição de outro. Eles não estão nem aí. O resultado prático da tática política falsamente centrista e equilibrada da direita da “terceira via” é que não vai ter quase ninguém militando por eles, embora possam ter um certo apoio e até votos. Foi o que ocorreu no ato do dia 12. E se Ciro ainda tentou retomar a tática de sequestro dos atos de esquerda, as vaias que tomou já mostram que não vai dar.
Fracassada a tentativa de usurpação dos atos de esquerda e fracassada a tentativa de organizar movimentos “de rua” de direita anti-bolsonarista, restou à direita retomar o seu papel tradicional: minimizar ou condenar as ruas. É o que a imprensa tenta fazer aqui, apontando a ausência de Lula ou a baixa adesão de lideranças de… direita!
Comprando a narrativa da direita
É compreensível que a imprensa corporativa retome seu modus operandi tradicional. Mas não deixa de ser surpreendente que figuras influentes na própria esquerda tenham comprado sua narrativa. O historiador Fernando Horta (PT-DF) sentenciou em seu Twitter antes às 20h57 do sábado – depois da Folha e antes do Estadão: “Nossas manifestações floparam. É preciso entender isso”. Segundo ele, “a explicação é uma mescla de cansaço, falta de recursos e o reflexo do distanciamento que tanto Bolsonaro quanto a oposição tomam da política. Todos indo pela via institucional… e levam ao ralo os sonhos de mudança das pessoas, enquanto seguem pedindo sacrifícios”.
Já Breno Altman (PT-SP), editor do Opera Mundi, chegou a postar no sábado “Paulista cheia contra Bolsonaro”. No dia seguinte, voltaria atrás: “O realismo obriga a reconhecer: o 2 de outubro foi fraco. A razão principal é simples: os setores populares não acreditam que o impeachment seja possível e se voltam para as eleições de 2022 como saída para a crise”. Já Rogério Tomaz Jr. articulista de esquerda e militante brasileiro radicado em Buenos Aires, iria além. Ao testemunhar ao vivo uma marcha local da oposição de esquerda trotskista na capital argentina, se entusiasmaria com o número de pessoas e diria: “colocaram mais gente na rua num dia de semana contra um governo progressista do que os atos em qualquer cidade do Brasil no #2OutForaBolsonaro”.
Não cabe aqui tentar entender as motivações que levaram alguns comunicadores, lideranças e militantes da esquerda a adotar a narrativa do fracasso de 2 de outubro – desinformação, influência do que leram por aí, uma agenda política preferentemente eleitoral, a simples constatação de que não temos apoio político suficiente para levar adiante um impeachment, a conjunção desses fatores… Fato é que seu ponto de vista é indício visível de que a narrativa da imprensa corporativa tem seus ecos dentro da própria esquerda, e distorcer a realidade para ajustá-la a uma ideia não costuma ser boa política.