A direita líquida

por Alexandre Lessa da Silva

A direita tradicional, formada por partidos como PSDB, MDB, DEM, entre outros que são considerados erroneamente de centro ou centro-direita pela grande imprensa, já percebeu que está cada vez mais difícil chegar ao segundo turno nas próximas eleições presidenciais. Seus candidatos não decolam: Moro está cada dia mais perto de ser considerado suspeito, pelo STF, no caso do triplex que nunca foi de Lula, Mandetta cada vez mais esquecido, tanto que poucos ainda se lembram do segundo “t” em seu nome, Luciano Huck não consegue animar nem seu público televisivo, e João Doria desperta desconfiança até de seu próprio partido.

Percebendo, portanto, que as chances são parcas, a direita tradicional e seus aliados midiáticos tentam enfraquecer a esquerda, mesmo sabendo que isso representa o fortalecimento da necropolítica bolsonarista, o que já demonstra, mais uma vez, que Bolsonaro é considerado um mal menor em relação a uma opção à
esquerda, na visão dessa corrente política.

Com a intervenção de Bolsonaro na Petrobras, apontando um novo presidente para a petroleira e tentando controlar o aumento de preços, a direita enxergou a oportunidade de atacar a esquerda e Bolsonaro, sabendo que seus ataques não têm eficácia em relação ao comandante do Executivo. Dessa maneira, um conselheiro da
Petrobras, Marcelo Mesquita, acusou Bolsonaro de flertar com o comunismo, mostrando não ser tão diferente do PT. O general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, disse que seu antigo chefe inventou o “comunismo de direita” (seja lá o que isso for!), mesmo antes do evento da Petrobrás. Malu Gaspar, colunista de O
Globo, usou o termo “bolsopetismo” para fazer referência à intervenção citada na Petrobras. Tantos outros exemplos desse tipo de ataque, totalmente falsos, são encontrados na imprensa e podem, como será demonstrado aqui, ser facilmente desconstruídos.

A direita bolsonarista

Primeiramente, há de se notar que Bolsonaro é, e sempre foi, um político de direita. Portanto, nada mais absurdo que chamá-lo de esquerda ou comunista, uma vez que está muito mais próximo da direita tradicional do que qualquer partido de esquerda, conforme é demonstrado pela presença de partidos como o PSDB, MDB e DEM em seu governo e em sua base de apoio no Congresso. Mas, a justiça é um dos atributos da esquerda e, por isso, a análise aqui feita não pode reduzir a direita a uma coisa só, como a maior parte da direita tenta fazer com a esquerda, sem notar suas gritantes diferenças.

Conceitos como direita e esquerda não são fixos, dependem de uma série de relações para suas definições. Por isso, a análise, presente neste texto, só diz respeito ao Brasil atual. Como já foi dito, há diferenças entre a direita tradicional e neoliberal e a direita que está no poder. A primeira é a representante de uma classe, a classe que Marx chamou burguesa, a elite econômica do país. Já a segunda representa a si mesma, seus integrantes, tendo por isso uma responsabilidade menor em relação aos princípios neoliberais, mas ainda privilegiando a elite econômica, aproveitando-se de uma oposição apenas retórica entre a “a elite” e “o povo”.

Essa direita que está no poder no Brasil e em várias partes do mundo, representando um retrocesso até mesmo em relação à direita tradicional, seja ela liberal ou neoliberal, é classificada de diversas formas: extrema direita, nova direita, ultradireita, direita radical, populismo de direita, conservadorismo, fascismo, cada qual com uma pequena diferença em sua definição. Em função disso, é preciso mudar o texto para a primeira pessoa e dizer que tenho a necessidade de criar um outro conceito, aquele de direita líquida. (Criei o conceito e, logo após, percebi que a palavra “líquida” faz referência a uma série de conceitos do sociólogo e pensador polonês Zygmunt Bauman. Certamente, as características apontadas por Bauman no que diz respeito às relações líquidas estão presentes, também, no caso da direita líquida, sem, contudo, esgotar o conceito).

Características da direita líquida

Donald Trump, Viktor Orbán, Narendra Modi e Bolsonaro são exemplos dessa direita líquida que não se apega a um projeto ou a uma estrutura, colocando sempre à frente seus interesses pessoais. O egoísmo, portanto, é o principal motor de tal direita, o que a torna mais maleável para desviar dos interesses diretos da classe dominante, mas nem por isso deixando de atender, ao final, os interesses dessa classe. Assim, Bolsonaro pode usar a oposição retórica, para toda a direita, entre povo e elite para enfraquecer, por exemplo, a Petrobras diante do chamado mercado, entidade metafísica representante da elite econômica e, assim, tornando mais fácil de a privatizar, inteira ou em partes.

Quanto à pauta do ódio, chamada pela grande imprensa, de maneira eufêmica, de “pauta dos costumes”, a direita líquida a sustenta de uma forma muito mais intensa que a direita tradicional, chegando a atacar muitos princípios dela. O ódio às minorias e aos direitos humanos, por exemplo, está fortemente presente no discurso da direita líquida, o que não acontece com aquele da direita tradicional. A democracia também é odiada por essa direita líquida. Cas Mudde, um dos grandes estudiosos do assunto, afirma, segundo sua terminologia, que a extrema direita é dividida em dois grupos: a ultradireita, contrária à democracia, e a direita radical, que apenas tem problemas com a democracia, mas não a rejeita (mais no livro do autor The Far Right Today [“A extrema-direita hoje”, sem edição em português]). Entretanto, o cientista político holandês parece não ver que ambos os grupos odeiam a democracia, e que, quando não a rejeitam por completo, é apenas em função da falta de poder para fazer.

E a esquerda?

A esquerda, tomada em todos os seus matizes, representa uma classe, a trabalhadora, e por isso não pode ser confundida com o projeto da direita, responsável pela defesa da elite. Dessa forma, toda direita, líquida ou não, favorece a classe dominante, com uma adesão direta ou indireta às diretrizes dessa classe. Pode-se concluir, daí, que sempre uma direita estará mais próxima de outra do que de alguma parte da esquerda, pelo menos no que diz respeito ao capital. Todavia, isso não significa que a elite econômica ganhará mais com um governo de direita, como já foi demonstrado durante os governos petistas, pois pensar dessa forma é pura ideologia, ou melhor, “autoideologia”.

A esquerda tem uma visão histórica e dialética da realidade, diferente da direita em geral. Quando a direita líquida age de maneira aparentemente contrária ao capital, é por uma questão de poder pessoal e transitório, diferente do objetivo da esquerda de superar (Aufheben*) a realidade capitalista e, com isso, melhorá-la,
obedecendo todo o movimento histórico. Superação (Aufhebung) não é destruir, é ultrapassar e, ao mesmo tempo, trazer consigo tudo que há de positivo (6). Assim, a liberdade, pregada pelo liberalismo, deve ser superada, para que todos sejam capazes de ser livres, independentemente das amarras que a economia capitalista apresenta.

A esquerda não quer destruir, como muitas vezes pretende a direita líquida, mas superar o status quo, pois sabe que só assim a história poderá continuar seu caminhar para um mundo melhor.

*Aufheben (verbo) ou Aufhebung (substantivo) são usados, aqui, no sentido dado por G. W. F. Hegel e retomado por Karl Marx. Exemplificando: a família é superada por sua antítese, a sociedade civil e ela, por sua vez, pelo Estado (a síntese). A família e a sociedade civil são “negadas” pelo Estado, mas, nessa negação, o
Estado as engloba, ao mesmo tempo que ultrapassa ambas.

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