Textos sobre pensamentos aleatórios

Textos sobre pensamentos aleatórios
Não aguentava mais ser observado. Era visível: cada passo, cada movimento, cada hesitação sua era vigiada, cadastrada, analisada, catalogada, formatada e usada como informação contra ele. Estavam contra ele o comércio, o governo, os militares, os industriais, os banqueiros. O assédio era constante. Seguiam, bajulavam, ameaçavam, ofereciam, tiravam. Às vezes se apanhava vigiando seus pensamentos. Certamente eram vigiados. Vigiados por eles. Descobriu mesmo que não eram seus, os pensamentos. Melhor ficar atento. Precisava por um fim àquilo. Não era mais ele. Não se reconhecia. Guardou o celular na gaveta. Desligou o computador e a televisão. Vestiu uma máscara: talvez assim se reconhecesse. Abriu a porta e saiu.
Entrou em sua sala na empresa e contemplou sua coleção de bonecos. Seus colaboradores não entendiam bem aquilo que consideravam uma excentricidade. Afinal, qual a serventia daquelas miniaturas de gente, vestidas a caráter, enfileiradas na prateleira. Ele sabia que todo dono de banco, todo grande proprietário de terras, todo industrial, todo especulador do mercado imobiliário, tinha a sua coleção. Nenhuma tão bonita e bem cuidada quanto a dele, claro. Mas tinham. Mais fácil ele se livrar de meia dúzia de colaboradores inúteis que esvaziar a prateleira em que os bonecos estavam. Os bonecos não questionavam, não criavam problemas, estavam sempre disponíveis quando ele precisava. Pensava enquanto vagava pela sala a passos lentos. Deteve-se diante de um boneco que caíra. Limpou-o e acomodou-o em seu lugar. Dera muito trabalho consertar o Jair, mas ele estava novo em folha agora.
Precisava de ar. Saiu de casa. Não aguentava mais. Pensou em sua segurança, de sua mulher, de sua família, mas não vestiu a máscara. Desceu as escadas, ganhou a rua. Os gramados exalavam um cheiro de terra molhada. Respirou fundo. Como era bom estar vivo. Resolveu caminhar até o centro de Brasília. Em uma hora, estava na Plataforma Rodoviária. Via rostos sem semblante, cobertos por máscaras de várias cores, estampas. Ele não, ele mostrava a cara. A Torre de TV ganhou uma altivez estranha. Era dali que brotara seu mundo nos últimos cem dias em que estivera em casa. Por entre os carros descia uma marcha de pessoas. Era um ato. Era gente. Estavam sem máscaras também. Eram milhares. Eram dezenas de milhares e rumavam sem faixas e em silêncio para a Esplanada. Algo estava acontecendo. Nunca vira tanta gente. Desceu e se juntou a eles. Eram todos mortos.
Cheguei atrasado para a reunião, liguei o computador, o programa entrou, um xadrez de rostos, o meu no meio. Me vi na tela. Os movimentos lentos, entrecortados por pausas. Fechei o microfone e comecei a falar. A falar e escrever. Boa reunião, aquela. Abri a janela do texto, estava tudo lá. À medida em que falavam, à medida em que cada um falava, o texto brotava na tela. Liguei a música, ela ocupou um cantinho da cabeça. As vozes pareciam uma colagem estranha sobre as batidas secas da música. O texto continuava correndo, deslizava em nanquim preto na tela branca, enchendo a tela até transbordar pela janela. Me assomei ao peitoril. Pela janela, voltei ao xadrez da reunião, todos cantavam juntos a música que eu ouvia. Meu fone estava desligado. Todos os rostos eram o meu. Todas as vozes as minhas. Todas palavras meus lamentos. Boa reunião, aquela. O programa saiu.
Resolveu ir às ruas. Estavam cheias. Aquele vaivém frenético típico das calçadas do centro. Interpelou um grupo. “Precisamos falar sobre política”. À medida em que movia os lábios, saltavam letras, sílabas, palavras, frases inteiras voando no ar, girando, orbitando. Elas compreendiam seu corpo como moscas, numa névoa transparentes que a mais ninguém compreendia e que o envolvia aos poucos, tornando-o cada vez mais transparente. Quando mais falava, mais se via através dele, até um ponto em que tanto havia dito o tornara completamente invisível. Mas ele continuava falando, falando, falando. E sua voz foi sumindo, sumindo, sumindo. E deixou de existir. O silêncio é pouco, a palavra era muito.
No silêncio da manhã eu ouvia aquele ruído contínuo, aquele ir e vir em estalos rítmicos. Não me lembro quando aquele oceano de pedra começara a dar com suas ondas no costado de meu prédio. Com as juntas rangendo, as paredes de concreto do apartamento ainda resistiam ante aquela força mineral, inabalável, maior que tudo, maior que a vida, era a própria matéria do tempo, esteve sempre lá, macerando-nos as costelas. Eu não via. Agora só ouço. Ele corre lá fora, esmagando automóveis, derrubando aviões, afundando navios, destruindo cidades, arrasando países, cobrando vidas. O mundo parece que vai acabar, o mundo sempre esteve para acabar. Era questão de tempo. Agora estou isolado do tempo. Ele não me atinge, não me vê, e nem eu o alcanço. Sobrevivo no isolamento sem tempo para nada. Instado a cada instante a viver uma eternidade em cada segundo. Mais uma vaga de pedra atinge a fachada do meu prédio. Acho que ele não resiste mais.
Todos os dias pareciam os mesmos. O mesmo despertar, a mesma solidão. A mesma luz branca no quarto, a mesma modorra, o mesmo banho, o mesmo café. O mesmo alfabeto, as mesmas notícias, o mesmo trabalho. A mesma comida descongelada, o mesmo cochilo, o mesmo trabalho, o mesmo anoitecer, a mesma aflição pela tarefa não terminada. A mesma comida em conserva, o mesmo filme, o mesmo programa na TV, o mesmo livro interminável. Os mesmos sonhos. Os mesmos sonhos que todos. Todos sozinhos juntos. Mas não existe “sonhar junto”. Sonhar é sozinho. O mesmo falso despertar. O mesmo despertar interminável, a mesma aflição pela tarefa não terminada, a mesma manhã, o mesmo trabalho, o mesmo cochilo, a mesma comida descongelada. O mesmo trabalho, as mesmas notícias, o mesmo alfabeto. O mesmo café, o mesmo banho, a mesma modorra. A mesma luz branca no quarto. A mesma solidão. O mesmo adormecer. Parecia o mesmo todos os dias. Há quanto tempo o tempo estava assim? Há anos. Muito antes dessa quarentena. Ela só o tornou mais banal.
Cedo ou tarde tinha que não acontecer. O encontro que não houve. O olhar que não foi trocado. O abraço que não foi dado. A carícia que não existiu. O desencontro inevitável. Era questão de tempo. O tempo devorou o que devia ser e não foi. O tempo passou e não deixou lembrança. Não houve fato a ser lembrado. A ausência matou o fato e a lembrança morreu junto. A morte, a própria morte, encontrou seu fim. Mataram a morte. A morte virou a lembrança que não vai ser. Antes virava um número. Agora nem isso. A morte é apagada também, dígito a dígito. Morre a morte, morre a vida com ela. O que não tem fim não tem começo. O caráter se dilui a cada caractere que vai ao ar, que é tirado do ar, a cada falta de ar. A realidade perde seu caráter no isolamento do lar. Deixamos de morrer a cada segundo. Deixamos, por isso mesmo, de viver a cada segundo. A estatística, essa é para poucos.
Pulei no esgoto. Não aconteceu nada. Entrei num torpor marrom e me vi na rua. Tudo funcionava normalmente. Passei no cartório, no banco, no supermercado, nas Casas da Banha. Comprei vaselina mentolada. Dizem que é bom para a gripe suína. Passei embaixo do braço para pegar mais um trem lotado. Cheguei em casa. Tudo funcionava normalmente. Minha mulher, meus filhos, a televisão. Malditos chineses comunistas. Preciso comprar mais vaselina mentolada. O tempo havia parado. Eu estava imerso em banha. Me senti um porco. Fiquei paralisado. Quanto tempo? Uma semana? Dois anos? Vinte? Lá fora o mundo fluía em movimentos peristálticos. O presidente falava. Todos digeriam. Tudo fluía normalmente. A bolsa quebrou. Era uma bolsa de colostomia enorme. Loiros de pele bronzeada de plástico e camisa havaiana me saudaram na porta do Alphaville.