Studio Ghibli e a arte de expor os anseios da sociedade

Dizer que o Studio Ghibli é um simples estúdio de animação japonesa deveria ser crime. A equipe de Hayao Miyazaki e Isao Takahata possui a habilidade de transpor os sentimentos que rondam a sociedade moderna, com todos os seus obstáculos e vitórias, em seus animes.

Imagem: Copyright Studio Ghibli
por Bibi Tavares

Fundado em 1985 e contando com mais de 21 filmes, o Studio Ghibli é um estúdio de animação japonês sediado em Tóquio. Hayao Miyazaki e Isao Takahata são os principais diretores responsáveis por obras que misturam criaturas místicas, mulheres protagonistas e críticas a diversos contextos da sociedade. Recentemente, essas animações foram adicionadas, em sua maioria, ao catálogo da Netflix.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

Personagens femininas e a quebra de um estereótipo

Uma das principais habilidades dos diretores do Studio Ghibli é dar vida a protagonistas mulheres, fortes e que, na maioria das vezes, são suas próprias heroínas, contrastando com os clichês à la princesas da Disney. “A Viagem de Chihiro”, talvez o maior sucesso Ghibli e a primeira animação japonesa a ganhar um Oscar, é provavelmente um dos melhores exemplos de protagonista forte e independente. O filme conta a história de Chihiro, uma garotinha de 10 anos que se vê entediada e contrariada em meio a uma mudança. Nada de novo sob o sol. No caminho da nova casa, sua família se depara com um parque abandonado, porém recheado de comidas apetitosas que fazem os pais da garotinha se distraírem. A partir daí, Chihiro precisa lidar sozinha com criaturas mágicas e nem sempre amigáveis que aparecem em seu caminho.

Apesar de jovem, ela salva a vida de um grande parceiro e ainda consegue salvar seus pais de uma maldição que os transformou em porcos! Dentre outras lições que essa animação traz, o papel de Chihiro é claro: é possível retratar mulheres fora do estereótipo de indefesas e, principalmente, é possível colocar uma personagem masculina junto a ela sem a necessidade de desenvolver um romance piegas.

Leia também:  Repúblicas mínimas

Outra animação que comprova essa habilidade do Studio é “O Conto da Princesa Kaguya”, considerado mais diferentão por ter suas cores em aquarela. Kaguya, protagonista da trama, é uma princesa que nasce de repente de um bambu, onde é encontrada e acolhida por uma família simples. Ao longo da história, Kaguya herda muito ouro e sua família se obriga a mudar para a capital, para viver como alguém da nobreza e onde todas as vontades da princesa são podadas. Ainda assim, Kaguya consegue lutar para que não tenha um casamento forçado com homens que nunca nem viu. Sua vontade de viver livremente e voltar à vida simples é frisada a todo momento. Assim como Chihiro, Kaguya não segue a regra do romance e nem necessita de herói, ela mesma se encontra e se resgata daquela insanidade. 

A viagem de Chihiro. Crédito: Flickr Espaço Itaú de Cinema/divulgação

Mudanças, ganância e preservação da natureza

Outro ponto em comum em muitas das animações do Studio Ghibli é a necessidade de se lidar com mudanças e a resistência que os jovens podem ter com novas realidades. Em “Meu Amigo Totoro”, “Eu Posso Ouvir o Oceano”, “O conto da princesa Kaguya”, “A Viagem de Chihiro”, “O Serviço de Entregas da Kiki” e outros, a mudança é o estopim das histórias, fazendo com que os jovens se lembrem o quão assustadoras podem ser essas mudanças, essa troca de realidade, mas que também são extremamente necessárias para que se possa acumular experiência de vida e amadurecer diante de novos desafios, algo corriqueiro no dia-a-dia do mundo capitalista. Assim como na história de Kiki, os outros filmes também lembram da importância de se estabelecer relações sólidas com as pessoas, a fim de manter uma rede de apoio que possibilite uma adaptação melhor ao novo mundo.

Leia também:  Revolucine 1 - A União Soviética reinventa o cinema

Preservação da natureza e ganância também andam lado a lado nessas produções. Na história de Chihiro, por exemplo, seus pais encontram no parque abandonado um verdadeiro banquete, e mesmo não encontrando ninguém no local, eles devoram toda aquela comida, argumentando de forma arrogante que estava tudo bem, já que eles tinham dinheiro, cartão de crédito e cheques. O consumo em excesso e a gula fazem com que os pais de Chihiro sejam transformados em porcos, animal que faz referência aos capitalistas. Na casa de banho, a mesma coisa, os clientes são tratados de acordo com o quanto possuem de dinheiro. Em Kaguya, a cegueira que o dinheiro traz à sua família afunda a protagonista numa forte depressão, mostrando como as pessoas mudam quando ascendem de classe, tornando-se egoístas, cheias de interesses, negando a própria origem. 

Nausicaä-do-Vale-do-Vento-2-mangá
Nausicaä do Vale do Vento. Crédito: Studio Ghibli

Além da preservação da natureza, contextos de guerra também são abordados nas animações do Studio Ghibli. Em “Nausicaä do Vale do Vento” a crítica à ganância humana é direta e está representada numa grande guerra que destrói todo um vale em nome de benefícios próprios de um seleto grupo. Nessa animação, os dominadores se utilizam de uma arma de guerra grande, que cospe fogo, para dominar o vale. Pode-se facilmente comparar esse trecho aos dias de hoje, onde potências ameaçam outros países menores ou mesmo outras potências com armas nucleares.

Leia também:  A importância de entender e produzir nossas histórias

Outra referência que Nausicaä traz é a resposta da natureza à sua depredação, na história, a natureza responde à tentativa de destruição jogando uma maldição sobre o local e essa é uma realidade que a sociedade capitalista sente muito no atual contexto de epidemia e recrudescimento do aquecimento global. A natureza vem sendo cada vez mais atropelada em nome do lucro, mas a resposta não tarda. Novas doenças, epidemias, escassez de matéria prima, extinção de animais e plantas, todas essas são formas de a natureza responder aos ataques que sofre.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

O catálogo de animações do Studio Ghibli é vasto e possui um pouco de tudo. Mesmo se tratando de animações, as críticas e sacadas inteligentíssimas de seus diretores transformam esses filmes em obras para serem levadas a sério, e que instigam interessantes reflexões. Em tempos de profundo caos social, algumas lições podem ser aprendidas com esses roteiros, podendo até deixar a quarentena mais proveitosa e, quem sabe, ajudando as pessoas a se adaptarem às novas realidades que estão por vir.

Deixe uma resposta